A liberdade criativa de KL JAY

A liberdade criativa de KL JAY
Foto: Marcello Preto

 

CULT: Foi o Milton Salles quem juntou vocês quatro, no fim dos anos 1980. Como foi esse encontro e que referências individuais vocês trouxeram para o grupo?

KL JAY: Rolou uma identificação de pensamentos. Nós pensávamos nas mesmas coisas. O Edi Rock foi o primeiro cara que eu encontrei e o Brown tinha dupla com o Ice Blue. Conheci o Brown na São Bento, nos encontros de hip hop, de break. A gente começou a conversar, éramos jovens, tínhamos vinte anos. Queríamos fazer música para protestar e para enfrentar o sistema. Éramos perseguidos, até hoje somos, aliás, pela “Matrix”. Nós olhávamos para o mesmo lado, pensávamos igual. E aí começamos a andar juntos. Eu trabalhava como office boy numa empresa no centro e consegui um emprego para ele no mesmo lugar. Apresentei o Edi Rock para ele e ele me apresentou ao Blue. O Milton Salles ajudou nessa junção. Ele era um agitador cultural da época, que ia na São Bento e era envolvido com o Thaíde. Ele viu em nós uma diferença, um futuro, e ajudou a nos unir.

E como era fazer rap no Brasil há vinte e cinco anos?

Era novo, embora já tivesse Pepeu e Thaíde [precursores do rap no Brasil]. Nós dividimos as águas do rap por aqui falando de racismo, política e polícia explicitamente, coisa que os outros não faziam. Nós éramos vistos como loucos. Ao mesmo tempo riam, ridicularizavam, desacreditavam. Até hoje existe preconceito, mas há uma estrutura. O Racionais era mal visto e os demais lavavam as mãos caso fossemos presos. Mas havia pessoas que se identificavam com a gente e que também eram perseguidas. Foi crescendo devagar.

Qual foi o momento em que você percebeu que o Racionais havia crescido e tinha força?

Aconteceu algo uma vez, em Mauá, acredito. Acho que nunca falei isso para ninguém. Estávamos eu, o Brown e o Blue num show. Eu estava no toca discos e o Brown falou, no microfone, alguma coisa sobre a polícia. Em dois minutos, os policiais mandaram parar o show e o Brown e o Blue desceram para o camarim eu ainda estava no toca discos, de costas, guardando minhas coisas. Os policiais foram falar com eles e toda a multidão que estava no salão os rodeou. O Brown e o Blue debateram com eles e a multidão gritava “Solta os caras!”. Ali eu vi que havia algo diferente. Houve vários episódios, mas essa foi a primeira demonstração em que eu pensei que aquilo não era brincadeira. Vi as pessoas se identificando, defendendo o Brown e o Blue e nos apoiando. 

 O Blue nos disse que o movimento negro no Brasil não tem a força e o poder de organização que poderia – e deveria – ter. O rap, nascido nos guetos, teria algum poder de influenciar nisso?

Eu não vou falar do movimento negro, eles chegaram antes e têm a luta deles. Vou falar do Brasil e do que o Racionais fez. O rap, no mundo, resgatou os pretos de um genocídio espiritual e mental. Deu um levante. Aqui no Brasil, com o Racionais falando como se eu não fosse parte disso ele deu a dose de autoestima de que o preto precisava: “eu gosto de mim, tenho orgulho do que sou, da roupa que visto, do meu cabelo, da cor da minha pele”. A mensagem foi convincente e as pessoas começaram a se identificar. O orgulho, a autoestima, o levante que aconteceu na década de 1990 se deu também por conta do Racionais. Depois, outros grupos vieram falando. Mas as meninas com cabelo afro, assumindo isso, começaram a aparecer nas ruas depois do Racionais. E isso foi decorrente do rap mundial.

 Vocês fizeram um show histórico na Virada Cultural de 2013, depois daquele 2007 na Praça da Sé em que polícia e público entraram em confronto. Neste ano, o rap teve um destaque muito grande na Virada. Qual é a importância de o rap voltar a ocupar os espaços públicos longe desse estigma da violência?

É muito importante que isso aconteça. É a cultura. O dinheiro do Estado, destinado à cultura, tem que vir para a gente. Nós fazemos música. Quem faz o confronto não somos nós. Tem vândalos, loucos por aí, mas isso não está ligado à gente. O rap não é violento. Os moleques que estavam fazendo bagunça já estavam atuando. A polícia fez vista grossa e esperou o Racionais entrar no palco para oprimir os caras. Por que não fizeram isso antes? É planejado. Mas não vai haver mais.

E como você vê a atuação da polícia, hoje, no Brasil?

O buraco é mais embaixo. O que é a polícia? A representação armada do Estado. Por que a polícia é violenta e racista? Porque o Estado é assim. A polícia faz o que o Estado manda. Tem policial violento? Sim, mas a corporação inteira? Claro que não! Eu não tenho vergonha de dizer que levou anos para que essa ficha caísse. O Spike Lee, que esteve no Brasil gravando um documentário, nos perguntou: “Por que a população negra na Bahia é de noventa porcento e o negro não representa nada?”. Eu fiquei de cara no chão. É porque o Estado comanda o país, e ele é racista. Para mim está claro como o sol. Mas toma um enquadro da polícia e trata o policial com dignidade: dá boa noite, mostra os documentos, olha no olho e conversa. Puxa um assunto, começa a trocar ideia. O Brown mesmo é super respeitado por eles. Toma enquadro, mas eles dizem “Se soubesse que era você, nem parava”, porque eles nos ouvem também. É o Estado que passa essa mentalidade e esse comportamento para a polícia. E isso passa batido, ninguém questiona.

Como se muda isso?

Fomentando ideias. Uma coisa puxa a outra, então temos que incentivar isso: “Não vamos votar em ninguém”. Tem que falar, falar, até as pessoas verem o que está certo. É isso que muda, essa é a ação. E o rap tem que fazer isso com mais ênfase, com mais força, potencializar o discurso. Colocar a ideia no ar, ter credibilidade para falar e convencer as pessoas com o seu jeito. 

Quem faz isso no Brasil, hoje?

 Ninguém faz isso no Brasil. Talvez nós. Pouquíssimos fazem isso no espaço alternativo, mas não vejo vontade política em nenhum deles. Tem que começar agora para o país melhorar daqui a vinte anos. O discurso é fajuto. Nas manifestações, por exemplo, as pessoas estão questionando, mas não é isso que ajuda. O que vai mudar é falar em política toda hora. É boicotar o governo, não votar, mas passar informações para frente.

O Racionais tem grande apelo junto à periferia, mas vocês também conquistaram muitos fãs do outro lado da ponte ao longo desses vinte e cinco anos. Como você vê essa relação?

A música é abstrata, está no mundo. Você ouve no rádio, no CD, com seu amigo. Você pode estudar numa escola de gueto, num bairro pobre, e ter um amigo no Jardins. A música se espalha como um vírus. Se a música é boa, não importa quem vai ouvir. O rap é música, ela vai para o mundo. A maioria do pessoal da classe média, para mim, não se importa com as questões sociais do rap. Eles ouvem, gostam, mas não mudam, e não são obrigados a mudar.

Mas quando vocês tocam numa casa de shows como a Royal, por exemplo, que tem um público mais elitizado, você não acha que essas pessoas compreendem o que vocês estão dizendo?

Sempre vai ter um ou dois que compreendem, mas a mensagem é captada na música, ouvindo sozinho, e não no show. Show é para você curtir, bater palma, tirar foto. Eles se identificaram, foram no show porque gostam.

E quanto à polêmica imensa que esse show gerou – se justifica?

A gente foi lá buscar o money, é o nosso trabalho. A mentalidade aprisionada, que o nosso próprio rap tem, pobre, rasa, que diz que dinheiro é ruim, faz com que as pessoas nos critiquem dessa maneira. E uma parte é inveja, de quem queria estar lá, mas não consegue, porque não faz música boa. Quem não tem a mente aberta, fica preso na “revolução”. A periferia gasta quanto para ir ao jogo do Corinthians, São Paulo, Santos? Vai ao bar e enche a cara de cerveja, mas não quer ir num show do Racionais e pagar trinta reais? É a mentalidade da pobreza que não tem nada a ver com dinheiro. Mas você também não pode se corromper. O cara diz “Olha, Racionais, MV Bill, Emicida, Flora Mattos, vocês têm que vir aqui no meu salão, colocar a roupa azul e cantar tal música, mas não pode fumar, falar palavrão e o som vai ser baixinho”. Aí não vale. É diferente se vender e se corromper.  Eu vendo meu show! Nós nos vendemos toda hora, é o nosso trabalho.

 Qual é o limite?

 Fazer show em puteiro [risos]. Nós vamos lá fazer nosso trabalho. Às vezes os caras não têm dinheiro para me pagar. Eles são honestos, dizem “KL, a entrada aqui é cinco contos, nós não temos duzentos reais para te pagar”. Para a Royal, onde a entrada é cem, duzentos reais, meu cachê é cinco mil. A mentalidade é essa. É ir, mostrar e divulgar sua música, não importa para quem. Nós tínhamos essa mentalidade presa. Há quinze anos, não iríamos, mas também estamos quebrando isso. Graças a Deus, nos libertamos.

E hoje vocês podem contar com uma estrutura, montaram uma produtora, a Boogie Naipe. Vocês estão em outro momento. O que ele significa?

Todos os moleques novos têm produtora. Emicida, Criolo, os caras revolucionaram isso também. Nós sempre fomos muito desconfiados de tudo e de todos. Quem cuidava das coisas éramos nós quatro. Era mambembe, porque a nossa função é cantar, fazer música, não somos nós que temos que cuidar dos negócios. Claro, nós supervisionamos, mas nossa função é outra. Nós ainda fazemos isso, mas a carga diminuiu. Já sabíamos o tamanho do Racionais e essa estrutura só veio confirmar. E a produtora ajuda muito.

Por conta dessa abertura e desse novo momento que o grupo está vivendo, há quem questione se vocês ainda são uma referência para a periferia…

 Sinceramente, eu não nasci na periferia, não sei o que é passar fome, não sei o que é favela. Nunca fui rico, mas tive pai, mãe e uma estrutura mínima. Morei num bairro de classe média baixa. Essa ideia é uma prisão de valores materiais. O Brasil e a religião ensinam as pessoas a sentirem culpa, a quererem ser pobres e a acusarem quem ganha dinheiro. Isso é planejado! A imagem do rico é de alguém que não presta, que explorou alguém. “É mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no céu”. Eu fiquei sabendo, esses dias, que o buraco da agulha era uma região estreita do Oriente Médio, onde as pessoas passavam e o camelo tinha que abaixar para passar. A vida inteira eu achei que essa frase era literal e dizia: “Os ricos não prestam!”. Há essa mentalidade da culpa, que a religião nos impõe desde pequenos. Pessoas enriquecem roubando, sendo contraventoras, mas noventa porcento dos ricos são honestos, ajudam as pessoas, e por isso o dinheiro volta, porque há uma energia. Eu já tive preconceito com o rico. Graças a Deus, à leitura, à informação, à expansão da minha mente, eu vi que não era nada disso e que era tudo mentira. (A. M. e P. H.) 

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