Lendo Lasswell com a esquerda

Lendo Lasswell com a esquerda
O teórico da comunicação e cientista político Harold Lasswell (Foto: Reprodução)

 

Devo estar lendo demais os autores de um século atrás, que escreveram sobre opinião pública e propaganda na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) – principalmente Harold Lasswell, A Técnica da Propaganda na Guerra Mundial, 1927 -, mas tendo a pensar que o PT e a esquerda deveriam compreender que entre 2015 e 2018 houve um grande e acirrado conflito político no Brasil, quase uma guerra política, e que eles saíram derrotados. Não foram eliminados, mas perderam feio uma série de combates sucessivos em 2015 e 2016 até vitória final do adversário em 2018.

A este ponto, como derrotados e enquanto assistem aos vencedores destruírem suas catedrais, deveriam estar se preparando para uma nova batalha. Precisam de exércitos de militantes, de aliados, de dinheiro e, sobretudo, precisam de propaganda, aquele tipo de comunicação persuasiva com que você controla a opinião pública, junta e mobiliza pessoas, formula as histórias que emocionam e envolvem, e fornece as interpretações dos fatos políticos que considera apropriadas.

O PT e a esquerda foram surrados ferozmente em uma guerra de propaganda que foi sendo travada durante muitos anos. Antes de tudo, cuidou-se de determinar que o PT era culpado pela corrupção que assola o país, pela crise econômica, pelo tanto de gente que voltava à pobreza e a miséria em 2014 e “por tudo isso que está errado”, como dizia a meninada de 2013.

Estabelecido o culpado pelo que estava errado e que deveria ser objeto do ódio geral, cuidou-se de levar o máximo possível de pessoas a entender que todos tinham entrado em guerra contra o PT e que esta era uma guerra em defesa da honestidade, da segurança, do crescimento econômico e dos valores nacionais.

Não basta, contudo, mostrar que o inimigo é culpado pela situação em que nos encontramos, nem demostrar que o objetivo da guerra contra ele é restaurar a felicidade geral, é preciso ainda satanizá-lo, isto é, encher a mente da nação com exemplos de como ele é soberbo, abusado, sórdido, imoral, traiçoeiro, mentiroso, corrupto e degenerado. E dá-lhe narrativas das suas atrocidades, não importa se inventadas, exageradas ou distorcidas: a destruição do país, o roubo dos cofres públicos, o absurdo montante do desvio de dinheiro e de privilégios para a família de Lula, as políticas imorais, desviantes e corruptoras da inocência infantil, o conluio com artistas e intelectuais desviantes e moralmente corruptos, o vício e outras aberrações do líder inimigo (a cachaça, a ignorância, a avidez de Lula,  a incompetência, a orientação sexual e a incapacidade de falar de Dilma).

A propaganda criou e ampliou o catálogo de atrocidades do petismo, repetindo-o até que, para uma boa parte da população, tornou-se verdade incontestável.

Com a satanização, veio a autorização social para odiar. E o ódio, quando em enormes quantidades, move a massa e anima os corações, na política como na guerra. A batalha de 2018 foi, vista do lado da maioria, um combate épico do bem, vitorioso, contra o mal, justamente derrotado.

Mas não pensem vocês que a obra de destruição de imagem e reputação parou depois do êxito de 2018. A máquina de propaganda continua funcionando à toda, nas ações e discursos dos homens e mulheres que governam com Bolsonaro, no gabinete do ódio, na milícia digital que atua sem cessar, levando e repetindo por todos os cafundós digitalmente alcançados a mensagem do bolsonarismo: a esquerda não presta, o PT te roubou, Lula é corrupto. A demonização do PT e da esquerda é atividade em moto contínuo e ubíqua, de forma que mesmo quando há dissidências no bolsonarismo, como assistimos recentemente, a parte desgarrada rompe com tudo, menos com o antipetismo que compartilhava com o ex-aliado.

Passado o choque da refrega, feito o inventário das perdas, e lambidas as feridas, esperava-se que o PT e a esquerda se preparassem para enfrentar o inimigo justamente onde foram derrotados. Entretanto, o que fazem hoje os vencidos na guerra de 2018? Estão ainda mais fragmentados, não têm uma propaganda eficiente para enfrentar o inimigo, estão escrupulosamente afastando os neutros e chutando os aliados. Estão perdidos. Na verdade, parece que ainda não entenderam o que lhes aconteceu.

A esquerda continua culpando a chuva, a temperatura, o alinhamento dos astros, a mídia e a elite por tanto ódio e desamor social que brotou na terra, mas sem fazer a sua parte. Um olho na articulação, outro na comunicação política seriam essenciais, mas não se faz a primeira coisa direito e se esquece que foi a comunicação estratégica do bolsonarismo quem a colocou e a mantém justamente onde está. Lamenta-se da mídia, como se lamentava desde a época em que Lula tinha o latifúndio de sete sonoras semanais no Jornal Nacional, mas Bolsonaro tem a mídia contra e ganhou uma eleição e se encaminha para ganhar a 2ª, quiçá a terceira. No Brasil, no que se refere à comunicação política, a esquerda continua no século 20, a extrema-direita é que já chegou no século 21.

Em vez de organizar e financiar uma comunicação horizontal digital, coordenada e planejada, para enfrentar o bolsonarismo, a esquerda despende uma energia intensa reagindo às insanidades de Bolsonaro, seus filhos e ministros, assinando petições, rebatendo fake news, em lutas internas de narcisismos das pequenas diferenças, e, sobretudo, sofrendo.

A tarefa de enfrentar o bolsonarismo não significa ficar nessas escaramuças de assédio e provocação. Trata-se de provocar o dissenso, estimular a divisão, incentivar traições, conseguir novos aliados, mudar imagens, produzir narrativas, disputar os frames, os enquadramentos da realidade. Em suma, fazer aquilo que há 100 chamava-se “propaganda”. Será que a esquerda não aprendeu nada com a eficácia da propaganda digital de direita que a reduziu a pó em apenas 5 anos?

A cada dia me convenço que não. Mas agora deveria bastar de “é tudo culpa da mídia e é tudo culpa da elite”, pois o bolsonarismo não é mídia nem elite e mete uma goleada de propaganda na esquerda, todo dia, desde pelo menos 2016. Ninguém vai reagir?

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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