O polígono

O polígono
Bolsonaro em encontro com deputado Vitor Hugo (PSL/GO), líder do governo na Câmara (Foto: Marcos Corrêa/PR)

 

Desde o princípio desta nova fase da política brasileira, venho sustentando a tese de que o bolsonarismo é uma peculiar convergência de alguns segmentos sociais distintos que passaram a compartilhar alguns sentimentos e percepções da política. A força social e política que formou o bolsonarismo juntou, de um lado, negociantes, empresários urbanos e agrícolas, gente do mercado financeiro e grupos formados por organizações e centros de estudos ultraliberais de São Paulo. De outro, as pessoas que foram convertidas à ideia de que a corrupção da política era o principal problema nacional, os líderes religiosos das igrejas neopentecostais reativos às mudanças culturais brasileiras das últimas décadas e os respectivos rebanhos, e os ultraconservadores formados por gurus ideológicos como Olavo de Carvalho, lunáticos proponentes de teorias da conspiração, delirantes guerreiros do anticomunismo. Por fim, embarcaram grupos profissionais que trabalham na área de segurança pública e privada, gente das Forças Armadas, adeptos do período militar que passaram três décadas no armário da restauração democrática sem coragem de assumir sua identidade. Tudo isso devidamente temperado com doses generosas de antipetismo e antipetistas de todas as extrações. 

Há enormes variações em ideologia, preferências de pauta e temperamento no interior dessas tribos que formaram a grande coligação do bolsonarismo em 2018. É praticamente como se cada grupo olhasse Bolsonaro e visse apenas o ângulo que lhe parece conveniente segundo os próprios interesses. O pequeno empresário viu uma tela em branco o suficiente para projetar seus sonhos de um mundo em que o Estado não onere a sua vida; mulheres conservadoras viram um homem capaz de liderar um movimento de reação às feministas que, no seu sentimento, as desvalorizavam; o jovem ultraliberal que sonha com um escritório na Faria Lima viu uma força capaz de, enfim, libertar o país da agenda de esquerda; o advogado, o médico e outros profissionais liberais tinham certeza de ver um político diferente, autêntico, sem complacência com a corrupção e disposto a realizar os seus sonhos de, ao mesmo tempo, ter segurança pública e de ver os políticos na cadeia. Bolsonaro é a projeção de muitas expectativas, cada uma delas proveniente de um ângulo diferente, cada uma delas devidamente ignorante de qualquer outro aspecto não visível da sua perspectiva. 

Bolsonaro é um polígono, uma figura geométrica com múltiplos ângulos, e o bolsonarismo é composto por diferentes públicos que aderem ao seu líder a partir de ângulos muito precisos, desprezando todo o resto. Isso explica, a meu ver, um paradoxo que deixa perplexos a todos que acompanham a política nacional: o bolsonarismo está sempre em crise, mas parece não haver crise suficientemente forte para produzir a dissipação total do apoio a Bolsonaro

Que o bolsonarismo esteja sempre em crise, me parece muito claro. A impressão que se tem é que os quatro Bolsonaros e o seu ciclo mais íntimo vivem de produzir crise e de tentar contornar crises em moto contínuo e de forma histérica. Usem a metáfora que quiserem (cobertor curto, saco de gatos), mas a linha de frente do bolsonarismo é um espetáculo constante de tensão e colisão entre as placas tectônicas profundas que sustentam o governo na superfície. O grupo militar colide com o olavismo que colide com o morismo. O morismo colide com os interesses do grupo familiar de Bolsonaro que colide com o guedismo. Os evangélicos colidem com a bancada da bala. E a cada colisão cargos são perdidos por uns e ganhos por outros, pessoas são demitidas e contratadas, alianças são desfeitas e outras realizadas, no primeiro e segundo escalão do governo. 

Naturalmente, além da crise como estado permanente, há as supercrises, como agora, cujo último ato consistiu no sacrifício do ministro Mandetta, que ousou pensar que era possível criar o mandettismo como mais uma face dentro do já sobrecarregado poliedro do bolsonarismo, juntando-se ao guedismo, ao morismo e ao olavismo, por exemplo, lá acomodados.

O estado constante de crise é criado involuntariamente pela tensão permanente entre as irredutíveis faces do poliedro. Como se viu no episódio desta semana do sai-não-sai do ministro Sérgio Moro por conta do conflito entre os interesses do morismo, que é a pauta anticorrupção, e os interesses da família Bolsonaro, que consiste em proteger o ninho dos avanços e constrangimentos da Justiça e da CPMI das Fake News.

Por outro lado, não importa o quanto este estado permanente de crise estresse o próprio país e a suas instituições, e confunda a sociedade, além de tornar o Estado brasileiro ingovernável: Bolsonaro continua apoiado por entre 20 e 30% dos brasileiros. É o que eu já chamei de “a minoria que nos governa”. Além disso, como vemos neste momento, nem mesmo as supercrises, como esta do novo coronavírus, parece ser capaz de reduzir o apoio a Bolsonaro a pó. Duvido que, a este ponto do baile, Dilma Rousseff ou Michel Temer ainda estivessem de pé.  Mas Bolsonaro continua nos ombros de 20, 30% que não arredam dali, não importando evidências nem consequências, como se fosse questão de fé. O que é justamente o que ainda lhe dá suficiente respaldo para que, apesar de tudo, continue remando.

Deserções estão acontecendo a olhos vistos. Parte da turma que acreditava em Bolsonaro como um impoluto cavaleiro da antipolítica e da anticorrupção já tomou prudente distância dele. Com a gestão alucinada da crise da Covid-19, uma base de apoio importante para o sucesso de Bolsonaro na classe média, os profissionais da área de Saúde, não devem estar se sentindo confortável no bolsonarismo. Mas eis a lógica do polígono em ação: os que aderiram ao bolsonarismo por afinidade ideológica e pessoal com o conservadorismo moral e as posições políticas de extrema-direita não apenas continuam no bolsonarismo, como ficaram mais compactos e ativos na defesa da sua posição. Além disso, os comerciantes, industriais e empresários preocupados com o colapso econômico resultante do flagelo da Covid-19 agarram-se ao bolsonarismo como se fosse uma tábua da salvação. E dá-lhe fake news, complôs, construção de inimigos globais, paranoias sociais, satanização dos dissidentes e crença para segurar esse rojão. 

Em suma, não é que o bolsonarismo não abandone Bolsonaro e, portanto, não possa ser anulado como força política e eleitoral. Na verdade, é que a forma poligonal da adesão ao presidente leva a crer que sempre haverá bolsonarismo o suficiente para a sobrevivência política do movimento. Pois o mesmo motivo que leva alguns segmentos a desistirem do bolsonarismo pode ser justamente a razão pela qual outras facções reforçam as fileiras e confirmam a própria fé.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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