Kevin Spacey e a nova Inquisição

Kevin Spacey e a nova Inquisição
O ator Kevin Spacey (Foto: Reprodução)

 

Depois de acabar com o crime e dar fim a todas as injustiças, a nossa geração pôde enfim se dedicar inteiramente à nobre missão de pavimentar o mundo de santidade e virtude, erradicando da face da Terra o pecado e os últimos pecadores.”

Sim, a sentença acima contém muita ironia, mas poderia muito bem ser a lápide a ser colocada no túmulo da nossa época quando ela, enfim, descansar em paz.

Todo pecado será castigado

Na verdade, nem os crimes nem a injustiça parecem ter particularmente cedido nos dias que correm, mas os guerreiros da justiça que dominam a esfera pública certamente acreditam que a prioridade agora é que todo pecado seja exposto e severamente punido. Claro, não o chamam mais de “pecado”, como os caçadores de bruxas, as beatas, os moralistas e os puros de que descendem o faziam no passado. Os que agora empunham o chicote moral são leigos e praticantes de uma religiosidade civil, sem transcendência nem divindade, embora com o mesmo fervor no coração e a certeza de que o mundo precisa ser purificado. O pecado agora é chamado de má conduta, comportamento inapropriado ou qualquer outra forma de traduzir algum vocábulo inglês. Aliás, não sei se já mencionei, mas as Confrarias do Enfrentamento do Mal pensam em inglês norte-americano mesmo quando parecem falar outras línguas vulgares.

Os novos inquisidores, os cátaros do século 21, os novos martelos da fé que usam machados e tochas em nome da única virtude sequer têm as desculpas da ignorância, de uma interpretação fundamentalista de algum livro revelado, da crença em alguma transcendência que exija de nós a obediência, mas não a racionalidade. Entretanto, compartilham com os puros de antanho a certeza de que todo pecador pode ser identificado e deve ser sumariamente punido. A fé é cega, a faca permanece amolada.

De todo modo, o importante é que todo vício seja castigado para que a virtude floresça, e uma coisa depende da outra. Quanto mais pecadores forem trazidos à fogueira mais resplandecerão, nas chamas em que se purga a malignidade, a inegável piedade, a elevada fé e a inquebrantável virtude dos que acenderam o lume.

Se preferirem uma linguagem mais sociológica, digamos que a virtude se transformou, em certos ambientes, em um capital social extremamente valorizado. E que os meios reconhecidos de acúmulo desse capital passam pela identificação e punição dos pecados, vícios e erros dos outros.

Hoje, as punições mais rentáveis para acúmulo de prestígio e distinção no “campo social da virtude” são correlacionadas a relações de poder, gênero e sexo: assédio e abuso sexual. Quantos mais predadores, abusadores e assediadores — definidos em sentido cada vez mais lato — forem identificados, marcados e punidos, mais capital acumula quem denuncia e quem executa a sentença. E se os pecadores forem poderosos e dos grupos “historicamente hegemônicos”, maior o capital simbólico em jogo. Como cada vez há mais competidores disputando este capital, que é um mercado de bens limitados, as lutas concorrenciais se tornam mais frenéticas, ferozes e aceleradas. É preciso rastrear o máximo possível de pecadores, encontrá-los com celeridade e rapidamente estraçalhá-los em praça pública, pois execuções que não se dão à vista de todos não são rentáveis. É tudo muito urgente, pois o infrator que você deixa escapar pode ir parar na conta do seu concorrente.

Kevin Spacey e o mercado de virtudes

Na última quarta-feira (26), o premiado ator Kevin Spacey foi absolvido por um júri londrino da acusação de ter agredido sexualmente quatro homens. Desde 2017, o ator vem sofrendo sucessivas ondas de acusações de má conduta sexual e até de assédio, o que reduziu a pó a sua reputação, fez com que fosse demitido da última temporada da série House of Cards e ainda lhe obrigou a pagar dezenas de milhões em indenizações aos produtores da série. Não foi a primeira vez que um júri o considerou inocente, mas dado o peso das acusações neste julgamento do Reino Unido, estava em jogo nada menos que uma possível sentença de prisão perpétua.

Spacey levou nos peitos a onda que, impulsionada pelo movimento #MeToo nos últimos meses de 2017 — em que vítimas compartilhavam suas experiências de abuso sexual —, provocou uma inundação de alegações de assédio sexual realizado por homens poderosos da indústria do audiovisual. Muitos foram derrubados. Desde então, Spacey transformou-se em  um cobiçado troféu.

Não quero discutir aqui méritos e deméritos do #MeToo, que devem ser intensos e muitos, mas a dimensão sociológica de uma fúria moralizante — da qual o #MeToo é apenas um sintoma — que não distingue entre alegação e condenação e que expede a sentença e executa a pena antes do devido processo. E sobretudo que usa os expedientes arcaicos, mas repaginados, de mobilização de pessoas furiosas, amedrontadas, fanatizadas e ignorantes dos fatos para destruir imagens, reputação, honra, empregos, patrimônio, relações sociais e a vida, em suma, de acusados: tudo em nome da virtude e tudo já na fase da acusação.

São os novos “aldeões com tochas”, na expressão da colunista Lygia Maria, da Folha de S.Paulo. São os novos apedrejadores de pecadores, na expressão bíblica. Que não só atiram a primeira pedra, e as seguintes, como se nunca tivessem pecado, como também atiram primeiro a pedra, antes de perguntar ao justiceiro ao lado o que foi que o apedrejado fez para merecer isso.

Mas depois que o devido processo legal estabelece a inocência do acusado, o que acontece? O mal realizado se desfaz? Na verdade, a carreira destruída no seu auge, os amigos que se foram, os anos de aflição, a dor da injustiça, as oportunidades perdidas, nada disso se recupera.

Além disso, pensam que o Torquemada da era digital, o novo Grão Inquisidor, coloca-se em penitência quando os seus erros aparecem e a crueldade dos seus processos são demonstrados? Não. Passou esses dias gritando que não, não é porque um júri popular absolveu um acusado que ele não é culpado. Um argumento que é uma versão da “teoria do descondenado”, que os bolsonaristas ainda usam contra Lula, ignorando o fato de que todos são inocentes até que uma condenação — e não uma acusação — diga o contrário.

Ou, então, recorre à tese de que homens poderosos sempre escapam impunes, negligenciando o fato de que este movimento vive exatamente para obter condenações exemplares de homens brancos poderosos. Ou seja, para o novo inquisidor, mesmo quando alguém é declarado inocente das acusações, são as acusações que devem prevalecer — e para sempre —, não a declaração de inocência dada por quem de direito.

E amanhã, de novo, recomeça a jornada pela busca e pela punição de pecadores, pois como o mal nunca repousa, tampouco há de descansar ou se distrair o santo justiceiro. Afinal, na competição por virtudes é melhor queimar na fogueira mil inocentes do que deixar escapar um único pecador. Como se sabe.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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