José Rufino: traduzir o mundo e assumir a precariedade do gesto, da imagem e memória
O artista paraibano José Rufino (Foto: Reproducão/ Youtube IPPTV)
É a partir de um poema de Paul Celan que o fantasma do contemporâneo se inscreve: “A morte é uma flor que só abre uma vez / mas quando abre, nada se abre com ela / abre sempre que quer e fora da estação”.
Sou tomada de assombro e emoção pelo trabalho de José Rufino: sua partilha se efetiva em tempo real, pelas redes sociais, durante a pandemia. Na série “Fantasmagoria”, além de um arquivo psíquico incontrolável e que se deixa manifestar, há a necessidade interna de reavivar o território da memória. Diferentemente de trabalhos anteriores – em que a memória era um ponto fulcral, mas a maneira de construção dos trabalhos era regida por outra métrica e outra temporalidade –, agora não há nenhuma regra externa senão a do próprio impulso subjetivo, que é quase uma incorporação, um estado de sideração como aquele sentido por Roland Barthes após a morte da mãe, em 1977, quando entregou-se a organizar os arquivos de família, remexer objetos e rever fotos. Agora isso acontece em um só golpe. Quase em estado extático, Rufino se dirige às telas como num transe em que visa dar destino ao real, libertando seu próprio corpo como um efeito de mancha, como enigma em pura voragem. A travessia que ele empreende fala do desejo de ultrapassagem, como proposto por Jacques Lacan, no atravessamento da fantasia ao longo de um processo de análise.
Objetos e partes estilhaçadas de um todo são incluídos em pinturas que tornam-se veículos para o fantasma. O artista parece saber que é pela imagem e pelos fragmentos de memória que podem ser impressos algo que da epifania se encarna, como mancha ou fulguração, como perplexidade ou aberração. Liberar o fantasma implica colocar o corpo no vórtice de uma fantasmagoria que é subversiva e informe, como relata Barthes: “Eu sabia que, por essa fatalidade que é um dos traços mais atrozes do luto, eu consultaria imagens em vão, não poderia nunca mais lembrar-me de seus traços (convocá-los inteiros, a mim).”
O trabalho de Rufino é reinventado, estraçalhado em seu sistema de organização. Ele agora acontece no abismo de uma madrugada e nas suscetibilidades abertas por um luto inominável, por uma espera incerta, pela fissura aberta da mortalidade e da vulnerabilidade que guarda o traço de um real e de um inassimilável.
Ao remontar os escombros do passado, ele constrói uma margem que faz do instante algo infinito: reproduz mecanicamente, nas telas, algo que não mais poderá se reproduzir existencialmente. São trabalhos que guardam uma perda e produzem uma escrita que escava o tempo e o corpo do mundo com estilete. Cada obra é um acordar, registro de um instante único e intempestivo.
Seus gestos de precisão irreversível recordam o dizer de Georges Didi-Huberman, que considera que a obra é sempre portadora de algo já visto que volta subterraneamente como fantasma, atravessando e mesclando diferentes temporalidades pelos arremessos fragmentários da memória. Suspensa entre dois começos, a imagem se refere tanto àquilo que se faz bloco de afecções e sensações num dado momento, como também ao que é trazido pelas forças pretéritas que não cessam de retornar como sobrevivência póstuma ou potência associada ao rebatimento do passado no presente, questão que confere à imagem um caráter de espectralidade.
Os trabalhos da série “Fantasmagoria” transmitem a força ambivalente de um acontecimento que não se dará novamente, portanto único e, por outro lado e concomitantemente, o acontecimento que está ali, registrado diante de seus olhos, evoca vozes e gestos de eterno retorno. São trabalhos que habitam a tenra fronteira entre o que se vê e o que se esconde, encarnação do visível e do invisível, inscrição que promove um corte, um dilaceramento, de modo que seu corpo, engajado na obra, se reescreve junto dela.
Em meio às imagens fantasmagóricas de Rufino, relembro com estranheza e fascinação Didi-Huberman, que compara a definição benjaminiana de aura – “única aparição de uma lonjura, por mais próxima que esteja” – ao significado do Unheimlich freudiano (o estranhamente familiar ou familarmente estranho), referindo-se ao retorno de algo que deveria permanecer em segredo, na sombra, e que dela saiu. Essa sensação inquietante possui algo recalcado que retorna. São imagens que o artista faz brotar em telas imensas e que poderiam ser apreendidas através das experiências da aura e do estranho, por serem elas mesmas lugares que se abrem e nos incorporam.
Na mediação infinita das telas, no isolamento de outros corpos, o caráter de inquietante estranheza de “Fantasmagoria” reside na capacidade de promover uma cisão aberta pelo olhar: um gesto subversivo que provoca fissuras, pois não se acionam algumas névoas impunemente. Sua impressão e seus gestos sobre a tela são a metáfora de seu próprio corpo, um Santo Sudário que é também a possibilidade viva da ficção que sustenta a chama do desejo.
A dimensão política da obra de Rufino e de seu percurso acentuam-se agora de maneira incontornável. Em um estado totalitário, é preciso que possamos encontrar uma maneira de romper com o previsível, o explicável e a ordem estabelecida. E é preciso que cada um coloque algo de seu, tomando posição a partir daquilo que sempre excede, a partir do real. Precisamos, antes de mais nada, tomar a dimensão política da palavra e do corpo no sentido de resgatar sua espessura. Em tempos de exceção é preciso lidar com coragem e fulgor, com o intolerável, e talvez tenhamos que perseguir as pequenas revoluções como um corte no totalitarismo do Um. Desse ponto mínimo – e, no entanto, grandioso – em que opera o trabalho do artista, um sentido de resistência pode fazer vicejar a subversão do sujeito, o ponto luminoso que preserva a possibilidade sempre em aberto de que alguém possa se contar fazendo do íntimo força política em direção ao comum, numa política em que a precariedade se torne força de invenção. No contágio entre uma obra e outra, uma escrita que se faz da ferida, uma relação com o traumático que insinua um corpo que se escreve e se deixa atingir pelas coisas a ponto de sentir suas frestas e fraturas.
Assumir a precariedade é guardar da criação sua vibração íntima, apostando num território em que a fragilidade aflora junto da imagem, revirando-a por dentro e propiciando, assim, um acontecimento que encontra força na indeterminação, nas coisas que estão em contágio com o mínimo, acolhendo as contradições e limites que podem iluminar a escuridão do tempo, aceitando o risco, o corte, o rasgo, um grito para além do sentido, um estado febril para o qual não existe significação e onde as imagens e as palavras emergem como na poesia, rompendo o real, pulsionalizadas, vibrando no campo do vazio em vias de nascer como um fazer poético em um tempo de desencantamento, no qual não é mais possível construir uma imagem do mundo orientada por pontos fixos.
“Fantasmagoria” permanece nessa fissura instável e intolerável, que é o espaço de uma violência contra a linguagem, violência que, como intuiu Georges Bataille, é sagrada porque inútil, dispendiosa, excessiva, insignificante. Violenta porque investe contra os limites do interdito e abre espaço para uma festa transgressiva. E religiosa porque pretende “saltar” para fora de si na tarefa de articular o inarticulado, recuperando uma experiência de sacralidade nova, elevando a língua “à dignidade do indizível” em seu efeito sublimatório que se sustenta sobre nada.
As imagens fantasmagóricas sustentam a poesia em sua abertura e no encontro com o impossível. São escoamentos ou jorros no encontro-limite com a impossibilidade de dizer.
Jacques Lacan nos apresenta uma abordagem que confere à arte um lugar destacado, como a única articulação discursiva capaz de salvaguardar o vazio da coisa. Mas Rufino, como escavador de mundos, reinventa também uma ideia de ciência e religião, extraindo dos discursos todos os restos, equívocos, lapsos e fraturas, como os objetos que desregulam o modo operacional e previsível das coisas. Ele faz o enlace da pulsão com o impossível, subvertendo e reinventando o lugar do religioso e o discurso da ciência na medida em que recusa tanto a promessa de vida eterna – e faz aparecer a fragilidade e a finitude – como também incorpora no trabalho seu percurso como geólogo, de maneira sinuosa e indireta, sem rejeitar o vazio e sem tentar explicar a dimensão do corpo, sustentando uma inquietação febril, uma incurável perplexidade, driblando a pulsão de morte e o aniquilamento.
A série abismal instaura a diferença, a divergência, a descoincidência do eu com o si mesmo e provoca, como dito por Lacan sobre a arte e a poesia, “efeito de sentido, mas também efeito de buraco”.
E a isso chamo acordar a língua e o corpo pela obra, como no poema de Herberto Helder: “Há que se pensar com delicadeza / imaginar com ferocidade”.
Bianca Dias é psicanalista, crítica de arte e escritora