Imagens de pandemia: trauma, luto, arte
Cemitério N.S. Aparecida, em Manaus (Foto: Fernando Crispim/Amazônia Real)
Em A partilha do sensível (2000), Jacques Rancière parece prever a proliferação pulverizada de imagens que em nossa cultura se tornaria moeda corrente: se por um lado o filósofo nos lembra em que medida essa partilha se refere à existência de uma junção de partes e sua separação intrínseca no interior de um todo, por outro carrega a premissa de que o compartilhamento de atos estéticos opera a partir de configurações de experiências que “ensejam novos modos de sentir e induzem novas formas da subjetividade política”, de tal modo que as imagens acabam sendo inelutavelmente subjetivantes ao condicionar determinadas políticas, assim como os modos do ver e do viver.
Na pandemia, as imagens de enterros feitos em massa e às pressas ficaram mais evidentes a partir da situação descontrolada na Itália – a primeira grande onda de contaminação no Ocidente –, onde agentes funerários acabavam sendo vistos como “amigos” ou substitutos da família no momento do último adeus. Lá, pessoas mortas pela Covid-19 foram enterradas com as roupas que os familiares, já impossibilitados de vê-las, apenas remetiam, deixando isso como última lembrança na mente dos vivos.
Em reportagem feita pela BBC logo no início da contaminação italiana podemos encontrar depoimentos marcantes: “Enviamos aos entes queridos uma foto do caixão que será usado, depois pegamos o cadáver no hospital e o enterramos ou cremamos. Eles não têm escolha a não ser confiar em nós”. Cerato, um agente funerário que exerce a profissão há 30 anos, foi capaz de perceber, no calor da hora, o quanto esses pequenos gestos são importantes para os enlutados: “Acariciar sua bochecha pela última vez, segurar sua mão e vê-lo parecer digno. Não ser capaz de fazer isso é muito traumático”. Os familiares ainda tentavam enviar bilhetes ou outros objetos de valor sentimental, tais como desenhos e poemas, na esperança de serem lacrados junto aos seus entes queridos, mas nada é posto nos caixões: “Uma ou duas pessoas podem estar lá durante o enterro, mas isso é tudo”, testemunha o trabalhador. “Ninguém se sente capaz de dizer algumas palavras; resta apenas o silêncio”.
Outra cena que merece destaque é o memorial promovido pela ONG Rio da Paz na praia de Copacabana, que acabou vandalizado por um apoiador do presidente. Não é nem preciso ter grande empatia para perceber o quanto esse tipo de violência representa uma das maiores crueldades humanas, isso “desde” Antígona: a impossibilidade, ou em casos mais infames, a proibição de enterrar os mortos com justa dignidade. Com efeito, trata-se de um dado antropológico essencial, etológico até: somos, há mais de 130 mil anos, a única espécie que enterra seus mortos de forma ritualizada. Embora estejamos bastante acostumados a respeitar essa tradição, não me parece absurdo dizer que talvez seja sem precedentes o destaque político que o fenômeno do enterro em massa ganhou neste momento, particularmente em nosso país.
Sobre o luto e suas impossibilidades
Como indicou Freud, caberia lembrar que o luto é já um mistério em si mesmo porque ele permite verificar uma incapacidade com a qual padecemos a cada perda: ainda que no luto a libido se veja “obrigada” a se libertar do objeto (uma vez perdido), isso não quer dizer que o sujeito se sentirá necessariamente livre para fazer essa obturação, seja com a maior ou menor habilidade, apoiando-se num outro objeto que lhe possa ser substituto.
A citação de Freud a seguir, retirada de Luto e melancolia (1917), é longa, porém incontornável:
Então, em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Creio que não é forçado descrevê-lo da seguinte maneira: a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso se levanta uma compreensível oposição; em geral se observa que o homem não abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um substituto já se lhe acena. Essa oposição pode ser tão intensa que ocorre um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose alucinatória de desejo. O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido. Por que essa operação de compromisso que consiste em executar uma por uma a ordem da realidade é tão extraordinariamente dolorosa, é algo que não fica facilmente indicado em uma fundamentação econômica. E o notável é que esse doloroso desprazer nos parece natural. Mas de fato, uma vez concluído o trabalho de luto, o ego fica novamente livre e desinibido.
A lógica freudiana do luto pode parecer um tanto óbvia à primeira vista, mas, efetivamente, como isso se dá? A resposta trazida pelo psicanalista chega a ser surpreendente: “o luto leva o eu a renunciar ao objeto, declarando-o morto e oferecendo-lhe como prêmio permanecer vivo” (p. 38). De acordo com Freud, a possibilidade de viver já seria uma espécie de beneficio secundário. A pandemia pelo mundo, e em especial no Brasil, parece não obstante produzir um abalo egoico colossal quando se trata de lidar com o luto, ou seja: se num luto “normal” espera-se que haja uma “elaboração” da perda do objeto, a atual banalização estatística e normalização de mortes acabam induzindo o eu a uma forte dissociação como defesa para não desmoronar de vez. O noticiário, que não cansa de acumular números, talvez já não assuste mais frente a um espectador cada vez mais indiferente.
Não seria uma situação fortemente análoga ao desaparecimento de corpos na ditadura? Paulo Endo, psicanalista que conduziu uma extensa pesquisa sobre o assunto, afirma, em “Sonhar o desaparecimento forçado de pessoas: impossibilidade de presença e perenidade de ausência como efeito do legado da ditadura civil-militar no Brasil”: “alienar-se da possibilidade da morte, como fazemos em nossa vida cotidiana, torna-se muito difícil e raro após experiências traumáticas duradouras que exigem atenção diuturna. Esses traços permanentes de percepção de uma situação de perigo, e o medo que os acompanha, podem ser compreendidos a partir da experiência do tempo que escoa rapidamente diante da tarefa e da urgência de preservar a vida. A vida em risco e o tempo que resta, vivido como insuficiente para manter-se vivo, podem perdurar como uma luta pessoal contra a passagem do tempo”; desse modo, o que “funda o traumático, não raro, é a urgência da tarefa de manter-se vivo diante de forças que impõem (e desejam) o aniquilamento do sujeito” (p. 9). Sua análise se aplicaria como uma luva ao que estamos assujeitados agora: “A perenidade da tristeza que se exige social e psiquicamente”, acrescenta, “faz par com a negligência política de Estados incapazes de ultrapassar a herança dos mecanismos de terror e morte, e o desprezo pelo futuro dos que perderam e perderão seus entes de modo violento e arbitrário e tem de conviver com isso como uma condenação perpétua”.
Cruzando todos os dados, penso que vivemos uma dupla violação da experiência do luto: por um lado, tem-se a violência própria da pandemia que encerra nossos corpos, e, junto a ela, a morte que nos espreita à distância de um espirro. Por outro, a impossibilidade de as famílias velarem seus entes queridos revela a profanação de um traço simbólico muito caro à nossa cultura. A impossibilidade de enterrar dignamente seus próprios mortos deixa os brasileiros em situação análoga a essa herança maldita do período militar, uma verdadeira tática que condena os vivos a um luto impossível e à consequente subjugação melancólica que, neste caso, é forçada pelo vírus e imposta oficialmente pelo poder central em sua altíssima cota de negligência e de denegação intencional da realidade.
Nesse sentido, somos também condenados a funcionar como “sismógrafos” ambulantes, de modo a lidarmos não com um “estresse pós-traumático”, por assim dizer, mas com uma espécie de ameaça pré-traumática: “chegamos ao pico?”, “houve achatamento?” e “quando poderemos finalmente sair de casa?” são as perguntas que mais se ouve no momento. Diferentemente de uma catástrofe, na qual a situação traumática se coloca de pronto, o enfrentamento da Covid-19 deixa o trauma circunstanciado à indefinição, em suspenso, ou seja, “chega e não chega” – gerando assim um impasse de significativa complexidade, uma vez que esse estado iminente para que o traumático advenha já é, por si mesmo, traumático. As imagens de Manaus e do cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, são altamente representativas da conjuntura: covas abertas às pressas à espera dos mortos. Eis, enfim, o estado de exceção em que vivemos en souffrance, como diria Lacan.
Em paralelo, não se observa também, nesta situação de grande incerteza, uma espécie de “neurose de confinamento” a transmitir-se junto com o sars-cov-2? Mistura de fobia (com a devida contrapartida de ansiedade e medo diante da contaminação) e neurose obsessiva (uma angústia somada à “fritação” acerca do porvir, isto é, do que será feito com o “novo normal”, para não deixar de usar esse clichê), sua “nosografia” não deixa de ser atravessada por sintomas mortificantes de depressão cada vez mais comuns no isolamento. Nessa perspectiva, a reflexão de Freud sobre a transitoriedade nunca foi tão atual ao nos mostrar em que medida a escassez do tempo nos é cara.
Entre 1915 e 1916 Freud andava bastante preocupado com a situação europeia, embora suas linhas possam servir como um diagnóstico cortante para o aqui-agora: a guerra, declara, “destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que considerávamos imutáveis”.
Resta mais o quê?
Nesse clima de intenso desolamento, não vejo alternativa que não seja engajarmo-nos em algum manejo criativo frente às dificuldades de metabolização psíquica produzidas pela suspensão das demandas subjetivas, situação que se aproxima, por assim dizer, de uma experiência-limite, isto é, de indesejada familiaridade com a condição de pura necessidade e, por conseguinte, de relativa abolição da grandeza desejante da vida – estado esse que não é novo na história, diga-se de passagem, embora ele esteja sendo vivido em 2020 numa escala inequivocamente microscópica. Mas com isso também nos restaria constatar, apesar de tudo, que numa sociedade pandêmica nada é mais essencial do que a arte: “A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição”, alegava Freud naquele mesmo texto sobre a transitoriedade, a ponto de contra-argumentar suas próprias afirmações iniciais e concluir com um surpreendente sopro de esperança: “Creio que aqueles que (…) parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo” – é preciso indicar, novamente, que este ensaio é anterior à Luto e melancolia. “Quando renunciou a tudo que foi perdido”, acrescenta, “então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (…) para substituir os objetos perdidos por novos, igualmente ou ainda mais preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes”.
Não deixa de ser curioso o fato de que essa mesma humanidade sempre reagiu esteticamente frente a situações extremas, tal como se dera nos momentos posteriores às sociedades concentracionárias ou às guerras de conquista. Profunda, em certa medida essa arte parece nascer em razão do desamparo ou como resistência direta contra a morte. Pelo momento, creio que a nós caberia perguntar, enfim, se podemos ter esse mesmo otimismo de um século atrás. Espero que sim.
Gustavo Henrique Dionisio é psicanalista, professor no departamento de Psicologia Clínica da UNESP-Assis e integrante da Troça Coletiva: psicanálise, arte e política