A Igreja Bolsonarista dos Últimos Dias e seus enganos
Robert & Shana ParkeHarrison, ’Burn Season’, 2003 (Foto: Reprodução)
O bolsonarismo teve mais uma semana ruim. Há duas semanas enfrenta o revés da Amazônia em chamas e das reações de Bolsonaro à condenação internacional aos incêndios e às ações e inações do presidente e do seu ministro do Meio Ambiente. Depois, um revés ainda maior em decorrência do modo como Bolsonaro reagiu à crítica estrangeira, descendo ao nível da ofensa pessoal ao presidente francês e à sua mulher, ou recusando, com draminha e tudo, a ajuda financeira internacional como se o país não precisasse desesperadamente de qualquer dinheiro de fora e ele pudesse se dar ao luxo, em nome do próprio ego, de rejeitar qualquer auxílio.
Convenhamos que a Bolsonaro falta cultura política até mesmo para uma distinção básica entre interesse nacional e vontade do governante, entre governo e Estado, entre a coisa pública e o que pode ou não fazer com ela alguém a quem se entregou um mandato eleitoral, que por definição é limitado por uma série de amarras constitucionais e cercado por outros Poderes da República que necessariamente o devem controlar. Bolsonaro acha que ganhou um direito divino a não apenas dizer o que quiser, mas a fazer o que lhe der na telha, simplesmente porque “ganhou uma eleição”, como se ganhar uma eleição em uma democracia fosse ganhar uma herança e passar a tratar o patrimônio herdado como propriedade pessoal.
Os discípulos de Bolsonaro, para quem ele fala e faz pose, pensam o mesmo que o seu líder. E daí vem o segundo problema. Tudo o que o presidente, seus filhos e ministros fazem e falam se dirige cada vez mais exclusivamente ao seu público: os bolsonaristas. E este é um engano. Primeiro, porque há pelo menos 75% de brasileiros que não fazem parte da igrejinha e que não vão ficar aplaudindo a floresta pegar fogo apenas porque Bolsonaro diz asneiras como “a reação internacional é porque querem solapar a soberania brasileira sobre a Amazônia” ou “reservas indígenas, quilombolas e ONGs servem apenas para impedir a exploração do subsolo da Amazônia”. E continuará a ser assim: quanto mais os 20% dos congregados o amarem fervorosamente, mais os 75% dos outros brasileiros o vão repelir, com a cruz ao diabo.
Segundo, porque ao contrário do que pensam Bolsonaro, Ricardo Salles, Weintraub e Ernesto Araújo, os garotos do presidente e os mais chegados, o Twitter, o Facebook e o YouTube, por meio do qual eles pregam diuturnamente para os seus convertidos, não é a sua igrejinha. Um tweet ofendendo grosseiramente a mulher de Macron pode alcançar imediatamente 126 milhões dos formadores de opinião no mundo que estão nesta plataforma. De fato, no caso do tweet mencionado, apenas algumas horas depois, jornais do mundo inteiro replicavam assombrados a mensagem do brasileiro e publicavam a reação geral, inclusive a do presidente francês. Uma declaração de algum dos seus ministros céticos do aquecimento global, terraplanistas ou paranoicos de uma conspiração mundial contra a soberania brasileira na nossa parte da Amazônia, no Facebook, pode correr o mundo em segundos e potencialmente chegar aos 2,13 bilhões de usuários daquela plataforma. A nata do jornalismo, da política e dos formadores de opinião em todo o mundo acompanham em tempo real tudo o que os líderes da Igreja Bolsonarista dos Ultimos Dias publica o tempo todo para reforçar a doutrina, para manter o rebanho unido e mobilizado e para atacar os infiéis da crença que eles praticam.
Para que essa prática de falar para a congregação as coisas que só os congregados compartilham (e me refiro às ofensas, à satanização de divergentes e adversários, à formulação de princípios incompatíveis com a ciência ou o humanismo), para que tudo isso funcionasse, seria preciso que ficasse em segredo, intramuros, ou que o mundo todo se convertesse à fé dos conservadores de extrema-direita. Nem uma nem a outra coisa vai acontecer. De sorte que esta espécie de choque e estupor mundial ante o que o Bolsonaro diz ao seu rebanho, mais que todo mundo lê e vê em mídias digitais, pode vir a ser muito mais comum doravante. Ainda mais que agora aumentou imensamente mundo afora o número das pessoas que sabem que o Brasil está sendo governado por um bruto e risível, inimigo do Meio Ambiente, cercado por falanges de imbecis e adversário de todas as pautas modernas e progressistas de que a parte mais sofisticada da opinião pública mundial nem cogita em negociar quanto mais em ceder.
Quem diria, pois, que a Amazônia e o Meio Ambiente seriam o osso em que o bolsonarismo iria começar a quebrar os dentes?
Dado este passo, o mais provável é que Bolsonaro fará parte de agora em diante da caixinha dos chefes de governo considerados a escória da civilização, a ponta de lança da barbárie. Aquele conjunto exótico e grotesco de que todos se lembraram para ridicularizar nos programas de humor, para ilustrar trabalhos escolares infantis sobre inimigos da humanidade e para as menções do jornalismo e das redes sociais digitais como exemplo que todo mundo reconhece de bichos-papões da civilização. Bolsonaro queria entrar para a história. Acho que está começando a conseguir.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)