A guerrilha informacional do 2º turno e a contraofensiva antibolsonarista
Até o primeiro turno dessas eleições parecia que a epidemia de fake news que transtornou as eleições presidenciais de 2018 havia perdido grande parte da sua capacidade de causar danos à vida pública e ao ambiente democrático.
As razões disso? Antes de tudo, os efeitos do Inquérito e da CPI das Fake News, que permitiram uma maior compreensão de como são geradas e administradas as campanhas de falsas informações digitais, quem as financia e quem as dissemina. No caso do Inquérito conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, tivemos ainda prisões de membros importantes dos cartéis de falsários de notícia, além das investidas até mesmo contra os grandes financiadores das fábricas de fake news. O fabrico e a distribuição foram, portanto, afetados.
Além disso, o fato de o responsável pelo Inquérito do STF haver-se tornado, por feliz coincidência, o presidente de turno do TSE durante o período eleitoral, sinalizava para todos os envolvidos no provimento e no tráfico de fake news que essa ilegalidade não seria tolerada. Ameaças de perda de mandatos foram explicitadas e as ofensivas contra ao menos um tipo de fake news, aquelas que conspiravam contra a credibilidade das urnas eletrônicas, foram muito firmes e efetivas. Por fim, viu-se pela primeira vez carregamentos inteiros de fake news serem interceptados e sua distribuição proibida pela Justiça Eleitoral, como aquelas que associavam o PT ao crime organizado ou à morte de Celso Daniel.
Até aquele momento, portanto, parecia haver menos fake news nos fluxos de informação política nacionais em 2020 do que tivemos em 2018 e 2020/21. Entretanto, do final do primeiro para o segundo turno as coisas mudaram radicalmente para pior. O simbolismo do ato do presidente da República, que teve o desplante de levar um carregamento de fake news para distribui-lo durante o debate presidencial na TV, em claro desafio às autoridades eleitorais, ao jornalismo ali representado e aos cidadãos que foram convocados para um confronto de argumentos e propostas, parece ter sinalizado que, novamente, valia tudo na guerra de informação.
E foi essa exatamente a mensagem recebida por quem estava envolvido na luta para reelegê-lo: a política, a eleição são uma guerra e as batalhas fundamentais são travadas com informações, principalmente com as falsas e inventadas.
De fato, voltamos ao patamar de 2018. O TSE, o jornalismo profissional, as agências de checagem, a ação das empresas de plataformas, as campanhas oficiais, a militância do campo democrático, nada tem sido suficiente para conter a distribuição de fake news em todos os níveis dos fluxos de informação. Assim, temos fake news em boca de políticos, alguns recém-saídos das eleições, consagrados pelas urnas. Mas também as temos nos circuitos tradicionais da opinião pública digital em canais, perfis, grupos e sites em plataformas, e na logística semipública de distribuição do Telegram e do WhatsApp.
Na guerra, diz-se, a primeira vítima é a verdade, mas não a informação. Luta-se munidos de informações, como já se lutou com paus, pedras, flechas e tacapes, espadas e lanças, canhões, aviões, navios e tanques, armas químicas e bombas nucleares. A informação, forjada para fins bélicos, são as novas armas letais e limpas com que se combatem as batalhas eleitorais.
Mas há uma novidade acontecendo e ainda não se tem certeza do que ela significa nem do seu alcance. Pela primeira vez, a ofensiva bolsonarista por meio de fake news está enfrentando uma contraofensiva digital de porte, por parte de uma reação antibolsonarista levada a termo por quem, de fato, entende dos recursos do mundo digital.
Fala-se do deputado André Janones, mas há outros atores importantes fazendo a sua parte em um projeto que consiste em não apenas reagir às iniciativas de guerrilha informacional do bolsonarismo, tentando minorar danos, fazer gestão de crise ou documentar o espanto, como soe acontecer no campo progressista. Consiste sobretudo em tomar as rédeas da situação e em fazer investidas que levem o campo conservador a despender tempo e energia para lidar com isso, como na notícia de que Bolsonaro era maçom ou no vídeo em que ele conta ter pintado um clima com menores venezuelanas.
O que muda aqui basicamente é a atitude, ativa, tomando a iniciativa e dirigindo de maneira proativa a atenção pública para os temas que se deseja, em vez do tradicional seguimento da pauta bolsonarista e das suas manobras diversionistas.
A respeito dessa nova atitude, o “janonismo” como vem sendo chamada, e que consiste em sair da defensiva para o ataque, é importante notar algumas coisas.
Primeiro, essa contraofensiva representa a grande novidade nessa campanha eleitoral. Os antibolsonaristas simplesmente se cansaram de apanhar calados sem reagir e de assistir perplexos aos absurdos da guerra suja de informação bolsonarista.
Segundo, não é necessariamente, como os que gostam da retórica das “duas posições erradas”, uma guerra de fake news. A rigor, fake news não são essenciais para esse tipo de luta, a não ser que você não tenha de fato nada contra o adversário para precisar inventar e mentir. Mas quando são abundantes os podres, os descalabros, os malfeitos, é bastante os expor, de forma didática e eficiente, e maximizar e intensificar a sua distribuição.
Terceiro, não é verdade que estão usando “a estética e a linguagem bolsonarista”. Não confundam as coisas. Os bolsonaristas usam esses recursos porque são nativos digitais; essa é a linguagem das quebradas digitais que os bolsonaristas aprenderam a usar e não algo que eles inventaram. Janones, Patrícia Lélis, Felipe Netos, os Anonymous da vida também nasceram nessas quebradas e conhecem suas regras, por isso as usam. O PT não costuma usá-las porque é um partido de velhos, cintura dura, que ficaram na Era da Televisão. Estão nos ambientes digitais como patos no asfalto, enquanto essa garotada está em seu ambiente natural.
Quarto, não é “a nova campanha do PT”, está mais para iniciativas própria (freestyle, como se diz). A campanha do PT não faria essas coisas nem se quisesse, por razões de inabilidade digital. Fazem vídeos de TV, não memes.
Por fim, não se trata de participar de campanhas de “desinformação” (sic), mas de propaganda negativa clássica, usando os recursos digitais disponíveis neste momento. O janonismo até então consiste simplesmente em levar a guerra à casa do inimigo.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)