Guerras e outros léxicos
(Foto: Unsplash)
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Nós, mulheres feministas e outras populações que entendem os impasses do mundo a partir de óticas afins, nos vemos, mais uma vez, coagidas a nos dobrar e discutir dentro de um jogo cujas peças não fazem parte do vocabulário que queremos fazer valer: Hamas, Israel, antissemitismo, colonialismo, genocídio, guerra, terrorismo. Todas as mídias concedem espaço e lucram com a espetacularização das tragédias provocadas por homens usurpadores e genocidas em guerra ou por terroristas assassinos e suicidas.
A verve sagaz dos políticos de extrema direita, como são os de Israel e de outros tantos lugares deste globo, só visa a dilapidar recursos de outros povos, roubar outras terras, explorar outros corpos e lucrar com outros trabalhos. Mas essa verve atinge também aquelas(es) que ingenuamente ainda se convencem de que essa gramática é a única válida, mesmo que se coloquem em posição antagônica a ela.
Dentro desse quadro desesperador, vale um grito: há muitas outras gramáticas em circulação. Há muitos outros jogos que podem ser jogados. Há muitas outras peças para outros tabuleiros. São peças de gramáticas do feminismo marxista, do feminismo negro, do ecofeminismo, de perspectivas não binárias de gênero e tantas outras. Cada uma delas mereceria amplos espaços, pois são promessas para a construção de novos mundos.
Por outro lado, aquilo que se enquadra como valor no registro dos direitos humanos desde o século 18 e, institucionalmente há 75 anos com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, deveria ter validade prática com as instituições nacionais e internacionais por eles responsáveis. Elas deveriam simplesmente assumir, de uma vez por todas, seus lugares de poder, julgando, cuidando, punindo, prendendo quem quer que viole os preceitos básicos de tais direitos.
Sem perceber realmente os limites desse quadro gramatical que agora vemos, uma vez mais, em intensa circulação e discussão e que se estabeleceu na história de uma civilização patriarcal e escravagista, caminhando cada vez mais em direção ao pior na dinâmica dos poderes e distribuições materiais, estamos girando infinitamente em círculos.
Enquanto isso, o planeta está por um fio – a solução para a catástrofe ecológica e material, na gramática dos machos que agora acumulam poder pelo mundo e dinheiro nos bolsos, é colonizar Marte ou explodir tudo com uma derradeira bomba-atômica. Vejam bem aonde vamos chegar com eles (poderia ser risível o que certas estruturas de poder propõem, não fossem os efeitos terríveis que elas efetivamente promovem).
Em outro tabuleiro, bem distante das guerras e genocídios, da exploração e violação de corpos, dos roubos de terras e bombas explosivas, há estruturas que almejam consolidar-se com base no erotismo em amplo sentido. Uma feminista que estabeleceu de forma irretocável o léxico e a semântica dessa outra arquitetura de poder foi Audre Lorde em Os usos do erótico: o erótico como poder:
Há muitos tipos de poder: os que são utilizáveis e os que não são, os reconhecidos e os desconhecidos. […] Para se perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer as fontes de poder inerentes à cultura das pessoas oprimidas, fontes das quais pode surgir a energia da mudança. No caso das mulheres, isso se traduziu na supressão do erótico como fonte de poder e informação em nossas vidas. Fomos ensinadas a desconfiar desse recurso, que foi caluniado, insultado e desvalorizado na sociedade ocidental. De um lado, a superficialidade do erótico foi fomentada como símbolo da inferioridade feminina; de outro lado, as mulheres foram induzidas a sofrer e se sentirem desprezíveis e suspeitas em virtude de sua existência. Daí é um pequeno passo até a falsa crença de que, só pela supressão do erótico de nossas vidas e consciências, podemos ser verdadeiramente fortes. Mas tal força é ilusória, porque vem maquiada no contexto dos modelos masculinos de poder.
Nossa depreciação dos poderes políticos e da força do erotismo que atravessa a formação que recebemos como mulheres ocorreu como estratégia ideológica daqueles que ocupavam o poder e colocavam essa potência em lugar de desconfiança (puta, vulgar, sedutora, mentirosa, fraca, burra, ardilosa etc.). Isso serviu para que o saber erótico, que tradicionalmente acumulamos, estivesse dedicado ao mundo masculino e servisse a ele sem resistências.
Entretanto, já é hora de percebermos o risco de subestimar nossos poderes. Chegamos ao limite. Considerar que nossas forças e nossos poderes são irrelevantes ou menores e que servem apenas para agradar ao poder instituído pelo patriarcado ou servi-lhes de modo submisso significa também dar aval ao horror. Também somos responsáveis, também somos coniventes se não dermos consistência e não abrirmos espaços para nossas próprias vozes, que falam outras línguas.
Alessandra Affortunati Martins é psicanalista, doutora em Psicologia Social pela USP e autora de Breve história da carne (Iluminuras, 2023), entre outros livros e artigos.