Quando a guerra chega, a primeira baixa é sempre a verdade

Quando a guerra chega, a primeira baixa é sempre a verdade
(Foto: Naaman Omar/Apaimages)

 

É famosa no jornalismo a frase que o senador Hiram Johnson proferiu em um discurso no Congresso Americano em 1917, em plena Primeira Guerra Mundial: “The first casualty when war comes is truth”. Quando chega a guerra, a verdade é quem morre primeiro.

O linguista William Lutz confirma e corrige o seu compatriota num editorial de 1991:

O senador Hiram Johnson estava errado quando, em 1917, observou que na guerra a primeira vítima é a verdade. Na guerra, a primeira vítima é a linguagem. E com a linguagem vai a verdade. Foi o “conflito” do Vietnã, não a Guerra do Vietnã. Foi a “ação policial” na Coreia, não a Guerra da Coreia. Foi a “pacificação” da Gália por Júlio César, não a subjugação brutal e sangrenta da Gália. “Onde fazem um deserto, chamam de paz”, observou o líder britânico Calgacus sobre a conquista romana da Grã-Bretanha. A guerra corrompe a linguagem.

Ambos estão cobertos de razão, na verdade, e cada guerra nos inunda de exemplos que confirmam a intuição. Não só cada guerra, mas cada crise política, cada momento da vida pública em que os ânimos se exaltam, as partes se conflagram e uma polarização se forma.

O conflito Israel-Palestina é o professor da vez. Aliás, “conflito” seria já um desses eufemismos que escondem para o ouvinte as reais intenções dos falantes. Na verdade, o Hamas, que governa a Faixa de Gaza pela força desde 2007, chacinou e sequestrou cidadãos israelenses civis e desarmados com o intuito de provocar uma previsível resposta brutal do Estado de Israel, governado há anos pela extrema-direita, que vai encher o território palestino de corpos e sangue e fúria e revolta e desejo de vingança. Não é guerra, é matança, carnificina.

No estarrecedor ataque terrorista da semana passada e na retaliação do governo de Israel que apenas começou, a verdade e a linguagem comum e honesta já morreram mil vezes. Resta-nos a linguagem corrompida por intenções inconfessadas que disputam o modo como denominar as coisas. O massacre de civis foi “terrorismo” ou “reação esperada do oprimido”? Israel tem um “direito de autodefesa” ou “permissão para um banho de sangue”? Os palestinos da Faixa de Gaza são “vítimas do Hamas e da opressão israelense” ou “cúmplices do Hamas”? O Estado de Israel é ou não “genocida”? O Hamas é ou não “terrorista”? Cada uma dessas expressões, que de neutras nada têm, é parte de uma segunda guerra que se trava através da linguagem e por meio dela: uma guerra moral e política, em que cada um já estabeleceu seu lado, cavou suas trincheiras e escolheu suas armas.

A este ponto e para os combatentes da guerra moral, a verdade e os acontecimentos pouco importam. Muitos dos que hoje exigem que se declare que Israel é um Estado genocida, por exemplo, são os mesmos que na guerra entre Rússia e Ucrânia já escolheram o lado da Rússia, sem um instante de hesitação sequer ao considerar o que a Rússia fez na Chechênia nem faz tanto tempo assim. 260 garotos numa festa no sábado foram simplesmente abatidos a tiros por gente do Hamas, mas um site de notícias brasileiro entrevistou o porta-voz do Hamas não como representante de uma gangue de assassinos ainda com os fuzis fumegantes e sangue de garotos nas mãos, mas como um ministro de Estado com direito a dar a sua interpretação sobre política internacional.

Os que defendem que Israel precisa de uma imediata resposta e a perda  de vidas palestinas é aceitável, não explicam por que dessa vez matar palestinos às centenas e milhares mudará alguma coisa, uma vez que isso tem acontecido há décadas e as coisas nunca melhoram. E qual será o tamanho da pilha de mortos considerada uma “resposta à altura”?

Em Gaza, como em Israel, e em todos os países envolvidos, a verdade virou um suprimento escasso, pois as máquinas de propaganda de governos, partidos e ideologias funcionam a todo vapor. Nem o jornalismo de referência parece isento de partidarismo ou imune à propaganda de governos interessados ou livre da influência da correlação das forças ideológicas pelo campo de batalha. Estadunidenses e antiestadunidenses já posicionaram a sua propaganda por meio de notícias, boatos e, agora, vídeos, fotos e posts que inundam as mídias digitais. A esquerda, a direita e a extrema-direita já ocuparam as suas posições no terreno e disparam verdades e certezas sobre os neutros, os ainda confusos e os que só gostariam de saber o que de fato está acontecendo.

O próprio jornalismo patina em gelo fino, na escolha das fontes que escuta, dos relatórios que repercute, das fotos que republica, das declarações de autoridades que acolhe, dos testemunhos que relata e até dos especialistas que ouve, porque não tem sinais seguros que lhe permita distinguir entre especialista e propagandista, entre sinceridade e manipulação, entre testemunhas e porta-vozes, entre dados e propaganda. Isso quando jornais e sites de notícia não simplesmente escolhem um lado e militam por ele.

Mas o pequeno militante inflamado é todo certezas. Pelo nível de convicção que exibe sobre os fatos da guerra, parece até que tem uma equipe pessoal de jornalismo investigativo em Gaza apurando tudo em velocidade supersônica e com um padrão de isenção digno de monges castos e puros.

Sim, na guerra a verdade é sempre a primeira vítima, mas, convenhamos, esta morte é um alívio para quem já tem todas as certezas de que precisa e só quer que os fatos que as desafiam sejam removidos do caminho.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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