Uma ação livre do pensamento

Uma ação livre do pensamento
O escritor Gonçalo M. Tavares, que lança 'Investigações. Novalis' pela editora Chão da Feira (Foto: Arlindo Camacho)

 

 

“Leio Novalis”, “Escreve Novalis”, “De Novalis esta frase” etc. Assim, Gonçalo M. Tavares entabula uma conversa direta, a de um excelente leitor, com um dos mais interessantes poetas-pensadores do romantismo alemão. Publicado em Portugal, pela primeira vez em 2002 e, agora, em 2020, um bocado reconfigurado, nesse anagrama infestado, lança no Brasil pela editora Chão da Feira, de Belo Horizonte, através das mãos de Carolina Fenati, mais um de seus inteligentes e arejados livros de anotações de leitura reinventadas: Investigações. Novalis. Sabedor da dimensão aberta e infinita que é montar uma série, este volume faz parte exatamente da série “investigações”, junto ao Livro da dança, de 2001 – reeditado no Brasil em 2008, pela Editora da Casa, e em Lisboa, em 2018, pela Relógio D’água, com partes refeitas a cada edição – e Investigações geométricas, de 2005, que depois se reabre como O senhor Swedenborg, em 2009.

Esse modo de escrita, um procedimento que tem a ver com uma poética do movimento, uma dilação do corpo, é o risco que Gonçalo sempre procura a cada projeto de livro. Basta reparar na tetralogia de guerra sem fim, O reino, e na impensada biblioteca de notas, O Bairro, composta de inúmeros “senhores”, refazimentos, ritornelos e disposição para alterar alguns imperativos canônicos da modernidade ocidental, praticamente. Na metade desse Novalis surge um rasgo nesse sentido de escrita: “Da Linguagem? / Apenas o que Novalis queria da palavra: / ‘atingir diversas ideias com um só golpe’.” Assim, se imaginamos que os textos de Gonçalo, nessa trinca de investigações, podem ser chamados de poemas é porque, em algum momento, o desenho e o contorno das linhas remetem a um uso de sentido que até, supostamente, lembraria um poema. Tal como também é seu 1 (2004), que se assinala na catalogação como “poesia” e, ao mesmo tempo, assemelha-se muito a este Novalis.

Uma questão modular tem a ver com este indicativo do golpe singular, inusitado, certeiro, preciso e, se possível, errante, para atingir várias ideias. Daí que estas linhas beirem muito mais o princípio da anotação de leitura, numa luta franca com a respiração, ampliando sensivelmente o sentido do que se toma como “poesia” ou “poema”, até sugerir uma rarefação de certo imperativo, modo único, do que aparentemente se espera de um livro de poemas. Este princípio, o de anotar, é certamente o jogo da literatura que Gonçalo tenta imprimir, como um gesto político, no mundo e no presente. Seus romances e os pequenos livros da série O bairro são interrupções projetadas pelo uso recorrente da frase curta, direta, com fechamentos abruptos, lances de curto-circuito. As imagens que se disseminam nessas frases têm sempre uma sugestão que margeia a arguição e o contradito filosófico e, são ainda, sempre e costumeiramente, uma maneira de reparação cuidadosa, a partir da anotação de leitura, das formulações de pensamento que elas desenham.

Dividido em duas partes, Investigações. Novalis é uma armadilha arguta de um escritor que está sempre em processo de enfrentamento com a vida, o mundo e a biblioteca, sem estabelecer nenhuma hierarquia, daí que apareça também junto à anotação, como procedimento, o impasse das “ligações”. O que também já é um método de Gonçalo, tanto em suas Breves notas (2006 a 2018), quanto em Histórias falsas (2005) ou em O homem ou é tonto ou é mulher (2002) etc. Nessa composição, é o filósofo Jean-Luc Nancy quem lembra que anotar é tomar o fora, o exterior, como exposição de uma singularidade. Diz que com a anotação estamos diante de um contágio, uma ligação, entre um EU, que pode não ser sujeito, e o mundo, que pode ser paisagem. Anotar não é para cumprir a verdade de uma sentença, mas sim, diz ele, um deserto que pode vincular, de um lado, a anotação a um sublime matemático, do incomensurável, da desmesura; e, do outro, a um sublime natural, do desastre, da destinação, do relevo. Imagina que, dessa maneira, cumpre-se a tarefa do pensamento em liberdade, porque anotar é uma ação livre do pensamento.

A certa altura, lemos: “A grande inteligência é sobreviver. / As tartarugas portanto não são teimosas nem lentas, / dominam, SIM, a ciência. / Toda tecnologia é quase inútil e estúpida, / porque o artesanal tartaruga, / a espontânea TARTARUGA, / permanece sobre a terra mais anos que o homem. / Portanto, / como a grande inteligência é sobreviver, / a tartaruga é Filósofa e Laboratório, / e o Homem que já foi Rei da criação / não passa, afinal, de um crustáceo FALSO, / um lavagante pedante; / um animal de cabeça dura. Ponto.” Daí que muito se possa extrair, também como leitura, ligações e anotação, do que Gonçalo imprime na carne de seu texto a cada linha, frase, respiração. Em três ou quatro linhas, por exemplo, podem vibrar, de repente e de uma vez, Kierkegaard, Sêneca, Ashbery etc. Nessa ação livre do pensamento, ou seja, gesto, o que se tem a cada livro de Gonçalo M. Tavares – e por isso a importância fundamental dessa reedição –, é uma literatura construída com imensa ética criativa: a da vida como uma tarefa para o estudo, ou seja, deixar-se jovem, com frescor, até porque “todos somos uns resíduos imperfeitos”.

Investigações. Novalis
Gonçalo M. Tavares
Chão da Feira
122 páginas – R$ 42

Júlia Studart é professora da Escola de Letras, UNIRIO. Publicou, entre outros, O dançarino subtil – Gonçalo M. Tavares entre as esferas O Bairro e O Reino (Editora Leya/Caminho, Lisboa, 2016); Logomaquia (Editora 7Letras, RJ, 2015); Nuno Ramos – Ciranda da Poesia (EdUERJ, 2014).


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