Gianni Rodari e a fantasia como projeto

Gianni Rodari e a fantasia como projeto
A base do talento de Gianni Rodari consistia em uma excepcional habilidade de dialogar com a infância (Foto: Reprodução)

 

“O que aconteceria se um crocodilo batesse à sua porta pedindo um pouco de alecrim?” Cada qual imagine ou adapte essa provocação rodariana, já que inspirações bizarras não têm faltado nesses tempos de 2020. O ano em que fomos impelidos à criatividade, obrigados a deslocar o nosso olhar e percepção sobre as coisas, todas elas, é também aquele em que se comemora o centenário do escritor italiano Gianni Rodari (1920-1980), o pai da fantasia: uma espécie de utopia posta em prática por meio de procedimentos criativos, a partir da literatura e suas relações com o mundo concreto.

Rodari nasceu no norte da Itália, região particularmente atacada pelos bombardeios na 2º Guerra Mundial. Perdeu o pai (um padeiro de Novara) bastante cedo e teve sua formação marcada tanto pelas dificuldades do período quanto pelas maneiras de enfrentá-las, tendo visto de perto a ascensão nazifascista e os movimentos de resistência, que o levarão mais adiante a integrar o PCI (Partido Comunista Italiano).

Autor e jornalista, Rodari escreveu seus textos mais conhecidos entre as décadas de 1950 e 1980 (ano em que morreu), transformando-se em narrador de referência na literatura infanto-juvenil e figura querida nas escolas da Itália sobretudo a partir dos anos 1970. Primeiro italiano a ganhar o conceituado Prêmio de Literatura Hans Christian Andersen (considerado o Nobel desta categoria literária), em 1970, Rodari alcançou fama pela Europa e suas histórias foram traduzidas e editadas em várias línguas, inclusive em russo. Na então União Soviética, chegou a ser recebido com júbilo e pompa pela grandeza do seu trabalho.

O autor falava em igualdade, paz e desarmamento. Nas palavras da crítica italiana Giulia Massini, cada um de seus contos “é um pequeno ato revolucionário”. Massini refere-se a Fábulas por telefone, curiosamente o primeiro livro do autor a ser publicado nos Estados Unidos, em setembro deste ano, mais de meio século após sua primeira edição. No Brasil, a primeira publicação de Fábulas aconteceu em 2006, pela Martins Fontes, e outra, recentemente, em 2018, pela Editora 34.

Gianni Rodari tornou-se um dos mais importantes autores do século 20 e embora tenha sido um grande intelectual, como afirma Pino Boero, rodariano estudioso de literatura italiana, sua atuação o distancia da imagem do intelectual que parece aderir melhor à figura de outros grandes autores, como Italo Calvino, seu contemporâneo, também literato e de esquerda.

A base do talento de Rodari consistia em uma excepcional habilidade de dialogar com a infância, no sentido de conseguir se colocar no lugar das crianças e trabalhar estetica­mente a partir do que de mais libertário distingue a natureza da inteligência infantil — que um dia, transformada pela experiência, pode se tornar criatividade e senso crítico na fase madura do individuo.

 

Aliando à escrita uma experimentação
de educador informal, Rodari foi
compondo o repertório para construir
uma proposta original, bastante
coerente e vigorosa.

 

 

Nessa construção, forjou sua literatura, que inovou tanto no território da narrativa quanto da educação. Como na história do “Senhor maduro com um Orecchio Acerbo (ouvido verde)”, que conseguia escutar as árvores e as nuvens e entender as coisas ditas pelas crianças que aos adultos parecem misteriosas, Rodari queria escrever para todos, e acreditava que na brincadeira de ler com os filhos, adultos podem ganhar um espaço de liberdade e resgate das opressões do cotidiano. Assim acontece em “Fábulas por telefone”, em que até as atendentes da central telefônica aguardam chegar uma determinada hora do dia para ouvir a breve história que o senhor Bianchi conta toda noite à filha, que também espera ansiosa a ligação do pai, sempre em outra cidade a trabalho.

É com esse propósito de criar espaço para uma escuta dupla que Rodari escreve nos anos 1950 sua coluna para adultos e crianças no jornal italiano L’Unità, na qual mantém correspondência com os pais, criando filastrocches (poeminhas rimados) a partir das diversas situações encontradas nas cartas que recebe, e subtraindo, como diz Pino Boero, “a relação adulto-criança àquelas pesadas hipotecas pedagógicas que restringem a comunicação verbal a ‘informações úteis’ ou advertências ameaçadoras”.

Se o aspecto da dúplice leitura, como jogo criativo de comunicar tanto com as crianças quanto com os adultos, é tradicionalmente explorado na estratégia da boa literatura para a infância, conforme nos lembra Umberto Eco a respeito do clássico Pinocchio, de Carlo Collodi, as histórias rodarianas trazem um alinhamento novo entre o adulto e a criança, mais paritário e leve, em que, pela via do brincar, realidade histórica e social andam de mãos dadas com a experimentação herdada das vanguardas artísticas, como o jogo do deslocamento, da invenção e do nonsense — tudo posto em ação pelos exercícios de uma fantasia lógica que Rodari cultiva e pratica, acreditando na possibilidade de um “mundo melhor”.

A gramática da fantasia

O ideário deste legado da fantasia encontra-se nos registros metodológicos do famoso ensaio “A gramática da fantasia: introdução à arte de inventar histórias”, publicado em 1973 pela Editora Einaudi, texto escrito com o mesmo espírito descontraído e direto com que Rodari trabalha a poética entre real e imaginário, como nos revela um de seus personagens mais conhecidos, Giovannino Perdigiorno (Joãzinho Perdidia), sempre a perder-se pelo mundo fantástico de países e figuras que não existem, mas que de algum modo nos são familiares.

Sobre o título do ensaio é interessante notar o uso da palavra gramática, o sentido oximórico ou paradoxal atribuído por Rodari a esse termo, associando-o ao de fantasia. A palavra gramática assume um caráter jocoso e provocador quando associada ao que imaginamos ser a fantasia: a “sisudez” do sentido da primeira emprestando seriedade “científica” ao sentido “anárquico” da segunda — trata-se dos “binômios fantásticos”, capítulo importante do seu trabalho. A configuração semântica  rodariana resume a maneira  de o autor se aproximar da  literatura para a infância.

Desta fantasia e suas construções, no plano das imagens, se ocupou, também, outro grande autor, o artista e designer Bruno Munari, ele próprio intérprete visual das histórias de Rodari, com quem colaborou em notório projeto editorial promovido pela mesma Einaudi, uma das mais importantes editoras do cenário cultural italiano. Os giocattoli poetici (brinquedos poéticos) de Rodari dialogam com os livros-objeto de Munari, como os Prelibri (Pré-livros): por meio de uns e de outros seria possível perder o medo das palavras, assim como dos livros. Essa aproximação ao literário pela via do jogo, da brincadeira e do estímulo à criatividade por um método lógico baseado em experimentar corresponde à antítese da escola “chata” (por excesso de normatização ou de burocratização), tão combatida por Rodari, que defendia princípios de atuação hoje assimilados pela pedagogia contemporânea, embora ainda pouco desenvolvidos na prática.

Anotações e desenhos dos cadernos de Gianni Rodari (Foto: Reprodução)

Daquele efervescente cenário político e cultural europeu dos anos 1970 para cá, correspondendo ao período da ditadura no Brasil, sabemos, os tempos mudaram. É neste ponto mesmo que o olhar lançado por Rodari, a partir do deslocamento e da transgressão para fins de criação artística parece renovar o sentido da proposta em torno da fantasia, colocando em confronto paradigmas distintos, histórica e esteticamente, uma vez que deslocamento pressupõe identificar um ponto de partida, a identificação de algum tipo de contraponto, como nos “binômios fantásticos” de Rodari.

Ao mesmo tempo, o caráter instigante do exercício que a qualidade de sua prosa poética propõe, nos estimula a construir novas combinações de sentidos a partir do contexto atual, em que nos achamos particularmente privados de utopia e de humor. “Sem utopia não dá para ser seriamente realista, porque acabamos por sucumbir às fadigas de todos os dias. É preciso ter um projeto grande, para dar um sentido aos projetos pequenos e garantir o seu êxito”, diz ele.

Rodari traz por meio de sua obra uma oportunidade para pensar alguns espaços de liberdade e as possibilidades de projeto que estejam ao alcance de nossa inteligência e consciência política. Nos oferece também uma chave para perceber a língua como fator de emancipação a que todos têm direito, que não se limita ao verbal e linguístico, mas se estende às tantas outras expressões que integram o universo maior da linguagem – de que a literatura, e especificamente aquela para a infância, é grande depositária. E a compreensão viva de que, efetivamente, a escola continua sendo o maior projeto de todos.

Michaella Pivetti é designer gráfica e foi diretora de arte da Cult. Doutora pela FAU-USP é autora do livro A fantasia, o design e a literatura para a infância (Editora Limiar).


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