Frida Kahlo, uma desconstrução
A pintora mexicana Frida Kahlo em retrato de Guillermo Kahlo, em 1932 (Foto: Domínio Público)
Frida Kahlo é personagem histórica, sociopolítica e literária de vigor incontestável. Mas qual é a verdadeira dimensão da sua obra visual? O que ela fazia nas telas com tintas e pincéis consegue ser maior do que a personagem que inspirou livros, filmes e peças teatrais? Esta é a questão. Para avaliar a pintura da pintora é preciso estar disposto a um exercício radical: colocar‑se diante de suas telas, ao vivo, sem trazer da memória qualquer informação sobre a autora. Simplesmente olhar as imagens à frente e ver se elas se destacam por méritos próprios.
Sim, fazer tabula rasa da hagiografia oficial é tarefa difícil, quase impossível. A biografia heroica santificada pelo calvário (bem ao gosto da cultura cristã) se consolidou na segunda metade do século passado nos ombros do movimento feminista norte‑americano quase como seu emblema máximo. Daí irradiou‑se à mass media e à cultura pop, ganhando nesse percurso uma leitura cada vez mais simplificadora até desembarcar nas lojas de bugigangas artsy. Frida foi, assim, quase reduzida a mera ilustração vistosa para uma tese meritória. Algo como um Van Gogh de saias tehuanas, com o icônico corte da orelha substituído pelas também icônicas sobrancelhas hirsutas e buço marcado, detalhe de sabor transgênero avant la lettre. O mito da loucura do holandês substituída pela demonstração fática da quebra das normas e convenções do feminino.
O destaque ao martírio físico e à crônica da vida amorosa bissexual da artista novamente parece estar à frente das conquistas estéticas na exposição Frida Kahlo: conexões entre mulheres surrealistas no México, que esteve em cartaz em São Paulo (Instituto Tomie Ohtake), no Rio de Janeiro (Caixa Cultural) e em Brasília (Caixa Cultural).
Certamente houve nessa exposição esforço honesto para tentar resgatar a pintora por trás da pop star. O mérito maior é trazer ao Brasil, pela primeira vez, mais de uma dezena de telas de Kahlo ao lado de alguns desenhos. Ela produziu apenas 143 pinturas ao longo de sua curta vida entremeada de intervenções cirúrgicas. A tese da curadora Teresa Arcq sobre o fio condutor surrealista, porém, não chega a ficar comprovada. Aliás, a própria Frida negava esse rótulo a seu trabalho a ninguém menos do que o teórico do movimento, o crítico francês André Breton, que o adotou mesmo assim.
O contato de Kahlo com Breton, como sabemos, derivou de um convite do pintor muralista Diego Rivera para que o francês os visitasse no México e, em conjunto com outro hóspede famoso, o líder russo no exílio Leon Trotsky, redigisse o Manifesto por uma arte revolucionária e independente, contra o dirigismo cultural promovido por Stálin. Tarefa cumprida, Breton ficou fascinado com a produção artística da anfitriã e resolveu escrever também sobre ela, o que forneceu o salvo‑conduto da artista amadora local para o circuito profissional de arte internacional.
A primeira individual de Kahlo no exterior foi na galeria Julien Levy (Nova York, 1938), com 25 telas, ocasião em que a artista foi apresentada como surrealista no ensaio de Breton para o catálogo da mostra. No ano seguinte, ela faria individual em Paris, também com abre‑alas de Breton. Mais tarde, Kahlo alertaria que o carimbo de ocasião não era adequado para leitura da sua poética visual: “Nunca pintei sonhos e fantasias: pinto minha realidade”. Ou ainda: “Pinto a mim mesma porque sou o assunto que conheço melhor”.
Como bem observou o escritor mexicano Carlos Fuentes na introdução à edição fac‑similar de O diário de Frida Kahlo (Ed. José Olympio, 1995), a obra da artista estaria melhor situada no âmbito do realismo mágico, linguagem que surgiria três décadas mais tarde, em 1967, com o livro Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. O que parecia surreal ao francês era cotidiano à mexicana e à América Latina inteira. Nas palavras de Fuentes, trata‑se de “uma espontânea fusão de mito e fato, sonho e vigília, razão e fantasia”.
Por certo que não há abordagem surreal em Kahlo como vemos nos pintores característicos do movimento, René Magritte e Salvador Dalí. Ao contrário deles, mergulhados na cultura europeia e focados na percepção de mundo inaugurada pelas teorias freudianas, Kahlo queria sua linguagem intimamente ligada à simbologia da cultura mexicana desde seus primórdios maias e astecas. Queria uma arte mestiça, que buscasse no passado arcaico os elementos para construir uma arte afirmativa da liberdade de criação, antistalinista e rumo à revolução socialista mundial. Ou seja: tinha o mesmo ideário que seu marido Diego Rivera mas em diapasão oposto. Enquanto Diego era grandiloquente e retórico, Frida adotava o registro intimista e bordado de sutilezas. Não, nesse aspecto Frida não quebra os clichês de gênero. Até porque jamais teria vigor físico para encarar a execução de um mural, claro.
Quando a pintora mexicana decolou para o estrelato, no final dos anos 1930, Nova York despontava como centro artístico mundial emergente. As aproximações com outras culturas conferiam vibração à metrópole, que começava a valorizar o que depois ficaria conhecido como multiculturalismo. Era ainda uma sociedade porosa ao outro. Estava a anos‑luz da mentalidade fascista que promove a construção de muro na fronteira dos EUA com o México. Isso era um pesadelo guardado para o futuro distante, no outro século.
A mitologia pessoal de Kahlo e a constelação de celebridades culturais que articulou a sua volta foram as ferramentas adequadas rumo à visibilidade. Em que medida Frida alimentava essa mística pessoal com seu figurino tehuano, mistura fashion de tradição e exotismo aos olhos norte‑americanos e europeus? A índia que pintava, vale lembrar, era também a filha de uma família de classe média alta da capital, status econômico que lhe proporcionou amplo acesso à cultura erudita. Kahlo era sincrética, leitora exigente, adepta de Marx e Lenin, mas também radicalmente ligada ao arcabouço de signos da cultura que criou o mito da Serpente Emplumada, Quetzalcoatl, deusa da paz e da criatividade. Sem esquecer de cultuar (como Rivera) os mitos guerreiros de Pancho Villa e Emiliano Zapata, heróis da Revolução Mexicana.
É exatamente sobre os exércitos camponeses de Villa e o contraste com as amenidades da vida social na capital que Frida armou sua tela Pancho Villa y la Adelita (c.1927), uma das obras mais antigas presentes na mostra itinerante e que revela a pintora aos vinte anos de idade, ainda no aprendizado do ofício. Ali ela experimenta o que imaginava ser uma mistura viável da representação convencional do espaço tridimensional somada à linguagem cubista de multiplicação de planos. O resultado é pouco mais do que escolar: é incongruente. Há uma oscilação entre figurativo e abstrato que não se resolve. Em uma das “janelas” da composição, há recortes de planos que quase seriam abstratos não fosse a recorrência residual da perspectiva. Mesmo considerando as dificuldades de comunicação da época, não dá para relevar: o movimento tinha surgido há duas décadas em Paris e não em algum rincão perdido do planeta. Frida não entendeu os fundamentos da linguagem cubista ao tentar exercê‑la.
Muchacha plueberina (Garota caipira), de 1925, é ainda mais desprovida de domínio técnico, mas aí os tenros 18 anos de idade da autora explicam a ingenuidade de uma figuração que migra sem escalas do bordado caseiro à tela, sem as adaptações necessárias à troca de meios e intenções. Impossível ao público brasileiro olhar esse trabalho sem lembrar que, também com esses elementos essenciais da cultura popular, Tarsila do Amaral criou, em 1924, uma série de desenhos em que apenas um traço contínuo delimita a anotação de paisagens rurais. Mas é uma comparação injusta, já que Tarsila estava em plena maturidade de linguagem polida em Paris com mestres da estatura de André Lhote e Fernand Léger e em 1923 tinha pintado A negra, prenúncio do quadro/revolução Abaporu (1928).
Comparar a plena maturidade artística de Frida Kahlo com o legado de Tarsila também não garante ganho de causa à mexicana. O que é a pintura de Frida, afinal? Pintura é criação de linguagem. Sem os recursos biográficos, a obra de Frida perde espessura e revela enfim o que a mitologia esconde: apesar da atraente poética mestiça, não há densidade de invenção de linguagem pictórica. Senão vejamos uma de suas mais célebres telas: Las dos Fridas (As duas Fridas), de 1939, em que ela sobrepõe à figura realista de seus autorretratos a representação científica de seu sistema cardíaco. Ou seja: a Frida vestida com trajes de índia tehuana (única sociedade matriarcal do México) “alimenta” (dá o sangue) à Frida urbana. Do ponto de vista semiótico, perfeito. Do ponto de vista de invenção, é apenas o uso de uma convenção científica no arcabouço artístico de figuração clássica. Operação estilística ou ilustração? Abaporu é criação de linguagem.
Os pincéis de Kahlo são quase tímidos se comparados, por exemplo, aos da pintora espanhola Remedios Varo (1908‑1963), integrante do círculo de artistas que imantava a Cidade do México na metade do século passado e que teria em Kahlo seu epicentro. Varo dominou com total propriedade e inventividade a linguagem surrealista. A figuração que cria é rica em camadas de leituras e permeada de uma atmosfera onírica. Seus personagens são quase etéreos e habitam arquiteturas de materialidade ambígua.
É de justiça afirmar que uma das telas de maior potência tanto poética quanto estilística presente na mostra não é da artista que a protagoniza. É de Remedios Varo: Mulher saindo do psicanalista (1960). Nela, Varo expressa o efeito das teorias freudianas de ego, id e superego, plasmadas em máscaras que emergem do panejamento do traje ou são descartadas como peles mortas pela personagem‑título da obra, com os cabelos/ideias desatados pelo vento/mudança. Isso é surreal na acepção da palavra. Isso é polissêmico e aberto a múltiplos significados como define o status de excelência de uma obra de arte. É “obra aberta”, segundo nos ensina Umberto Eco.
Frida? Respeitabilíssima trajetória de vida e exemplo incontornável no panteão do feminismo. Pintora? Sou mais Remedios Varo e Tarsila, desculpem. Continuo acreditando que qualidade pictórica não é matéria politicamente correta. É esfera do verbo haver, existir.