Quando Frida Kahlo e Leon Trótski tiveram um romance
A artista mexicana Frida Kahlo e o político soviético Leon Trótski, em 1937 (Fotoarena/Reprodução)
Em 1937, o político soviético Leon Trótski (1879 – 1940) e sua companheira, Natalia Sedova (1882 – 1962), fugiam tanto da perseguição stalinista quanto da fascista. Asilados no México, onde o então presidente Lázaro Cárdenas abrira as portas para refugiados políticos, os dois encontraram abrigo na Cidade do México, em uma residência célebre: a Casa Azul, lar de Frida Kahlo (1907 – 1954) e Diego Rivera (1886 – 1957). Entre reuniões de intelectuais mexicanos, refeições típicas e obras de arte surrealistas, floresceu uma relação improvável: um caso amoroso entre a jovem Frida, então com menos de 30 anos, e Trótski, que já beirava os 60.
É a história deste relacionamento que o recém-lançado romance Frida e Trótski (Planeta) se propõe a contar. Escrito pelo tradutor literário, ensaísta e poeta francês Gerárd de Cortanze, autor da biografia Frida Kahlo: La beauté terrible (2011), o livro baseia-se em cartas e diários de Frida e de Trótski – além de textos jornalísticos da época – para reconstituir, entre ficção e realidade, a curta e intensa relação.
“Aquilo [ o romance] foi uma colisão de dois universos, dois cometas que nunca deveriam ter colidido. Acho essa história de amor, que pode ser a história de todos, particularmente interessante – em geral e neste caso específico, dado o contexto político e cultural em que está inserida”, diz Cortanze à CULT.
Apesar de “arrebatador”, o caso durou apenas seis meses. Tudo teria começado assim que Trótski colocou os olhos em Frida, quando desembarcou do navio petroleiro em que veio com a companheira da Nuerga, onde se refugiavam até então. Uma vez na Mesoamérica, os russos foram recebidos calorosamente apenas por Frida, já que Rivera se recuperava de uma cirurgia. Foi a partir dali que um interesse mútuo começou a nascer: Trótski, fascinado pela personalidade e pela inteligência da artista; ela, em um primeiro momento querendo se vingar das inúmeras traições de Rivera, mas depois se apaixonando pelo homem que chamava, em cartas, de meu Piochitas (algo como “meu pequeno cavanhaque”).
No livro, Cortanze mostra como Trótski e Frida se aproximaram por meio de discussões sobre política e o futuro do mundo, que então vivia a ascensão do fascismo na Europa e do stalinismo na União Soviética. Depois, os dois passam a expor suas vidas pessoais e a compartilhar intimidades: Frida, por exemplo, teria mostrado a Trótski o desenho O acidente (1926), feito um ano depois do famoso acidente que quase a matou, aos 18 anos, e que a deixou estéril. “Nunca mostrei a ninguém. Nem a Diego. Foi a única vez que desenhei o que aconteceu comigo”, diz a pintora na romantização de Cortanze.
Aos poucos, Trótski e Frida começaram a se enviar bilhetes escondidos em livros que emprestavam um ao outro, como História da eternidade, de Jorge Luis Borges, Canção de mim mesmo, de Walt Whitman, ou A serpente emplumada, de D.H. Lawrence – uma estratégia para fugir não só dos olhares cheios de suspeitas de Natalia e Rivera, mas também da vigia dos guarda-costas de Trótski, que o monitoravam dia e noite para evitar atentados. Nos meses seguintes, os amantes passaram a se encontrar disfarçados em bairros afastados e até em outras cidades e no campo. Frida chegou a presentear Trótski com um de seus quadros, a miniatura Autorretrato dedicado a Trótski (1937).
“Frida dirá que esses momentos foram os mais felizes de sua vida e aqueles em que ela pintou mais quadros, e os mais importantes. Leon [que não abandonou Natalia] sustentará que esse amor foi o último grande amor de sua vida e o mais intenso”, afirma Cortanze. Embora não seja possível dizer com certeza que o caso com Trótski foi o que inspirou Frida, é certo que, na época do relacionamento dos dois, a pintora finalizou quadros famosos, como A minha ama e eu e Minha boneca e eu (ambos de 1937); já ele trabalhou em sua biografia de Stálin (publicada, incompleta, em 1941) e deu o pontapé inicial na Quarta Internacional – organização comunista internacional trotskista.
“No centro desse amor, nutrindo-o e continuando a alimentá-lo mesmo depois de seu término, havia algo a mais: a possibilidade de Frida transformar a dor em criação artística e de Leon transformar seu desespero em pensamento”, completa Cortanze.
Além de humanizar as duas figuras históricas, a narrativa sobre a relação entre Frida e Trótski está inserida em um contexto histórico, cultural e político conturbado, que Cortanze usa como pano de fundo da obra: “De um lado, o México pós-revolucionário; de outro, uma Europa prestes a mergulhar na Segunda Guerra Mundial, rodeada por uma incerta União Soviética”.
Nas páginas do romance, o autor mostra como o marxismo moldava a intelligentsia mexicana da época, quase toda ela comunista, e aborda a cisão da esquerda, entre stalinistas e trotskistas, anos após a Revolução de 1917 – até para contextualizar as discussões políticas na casa de Frida e a incessante fuga de Trótski e Natalia pela Europa até o México.
Ao lado de Lênin, Trótski foi uma das figuras centrais na revolução de outubro. Mas, ao se opor às ideias de Stálin quanto à expansão do regime socialista para o resto do mundo, acabou se tornando um perseguido político até ser assassinado em 1940 na própria Cidade do México. Já Frida, que ingressou aos 21 anos no Partido Comunista Mexicano, era comunista declarada, e mostrou isso em muitos de seus quadros, como O marxismo dará saúde aos doentes (1954).
Apesar da contextualização rica, Frida e Trótski não se propõe a ser apenas um registro factual dos meses que os amantes passaram juntos. Ao contrário: é um romance ficcional, amplamente imaginado e floreado, ainda que com alguma base histórica. “A arte do romancista é intervir e penetrar as dobras e faltas de um tempo que não é dele, mas que ele recria e revisita”, diz o autor. “Meu papel, estou convencido, é preencher as impossibilidades narrativas deixadas pelos historiadores.”