Foucault no século 21
O filósofo francês Michel Foucault (Reprodução)
Poucos pensadores exerceram maior impacto sobre as ciências humanas que Michel Foucault. Vinte e cinco anos após sua morte, ocorrida no dia 25 de junho de 1984, o caráter generoso de suas ideias inovadoras se manifesta na renovação do campo de investigação da psicologia, da psiquiatria, da história, do direito, da arquitetura, da filosofia, da sociologia e da educação, entre outras disciplinas. Dos anos 1960 ao começo da década de 1980, Foucault formulou conceitos e abordagens teóricas que descortinaram novos objetos e demoliram velhas questões ao demonstrar que a história não é o palco pelo qual desfilam os mesmos problemas singulares de sempre. Como poucos dentre seus contemporâneos, Foucault soube apropriar-se do projeto nietzscheano de destruição e transvaloração dos valores vigentes, ensinando-nos a desconfiar da herança metafísica incrustada em conceitos supra-históricos como ‘o’ Homem, ‘a’ verdade, ‘a’ natureza, ‘o’ poder, ‘a’ razão, ‘o’ sexo, ‘o’ corpo, etc.
As marcas de sua genialidade intelectual já se anunciavam em sua primeira grande obra, A história da loucura na idade clássica, publicada em 1961. Abria-se ali o espaço de pesquisas que Foucault denominou como uma arqueologia das ciências humanas, e que culminaria em obras fundamentais como As palavras e as coisas, O nascimento da clínica e Arqueologia do saber. Nelas, o autor empreendeu uma crítica não epistemológica da razão, isto é, um questionamento que não visava avaliar a evolução histórica da cientificidade das ciências, mas trazer à luz os pressupostos profundos que permitiram à modernidade entronizar a razão como critério absoluto a partir do qual se poderia determinar, por exemplo, o ser da loucura. Assim, ao elaborar sua peculiar história da loucura, Foucault abriu mão da ideia de que a relação histórica entre razão e loucura se dera a partir da contínua e gradual conquista das luzes sobre as sombras, roteiro em que a psiquiatria representava a conquista da suposta verdade da loucura enquanto doença mental e a consequente libertação do louco em relação a velhos preconceitos.
Silenciamento da desrazão
Por outro lado, e de maneira mais ambiciosa, Foucault se perguntou como foi que se definiu a moderna decisão que apartou a razão de seu outro, contando-nos uma história na qual o saber psiquiátrico era compreendido como a etapa derradeira de um longo processo de silenciamento da desrazão, cujos primeiros sintomas já se deixariam evidenciar em acontecimentos do século 17 como a instituição do Hospital Geral, o grande internamento e a metafísica de Descartes. Segundo Foucault, Descartes teria excluído a loucura do processo da dúvida metódica que leva à descoberta do cogito, explicitando assim a decisão fundamental da modernidade em opor a ordem da razão à desordem da desrazão: se duvido, penso, e se penso não posso ser louco.
Em As palavras e as coisas, Foucault formulou o polêmico conceito de épistémè. Aludia-se com ele a uma ordem ou princípio de ordenação dos saberes anterior a qualquer enunciado visando o conhecimento, de modo que a épistémè epistémé seria a instância arqueológica profunda que tornaria qualquer enunciado possível: tratava-se de nomear o solo fundamental que conferiria legitimidade e positividade ao saber de cada época. Em outras palavras, Foucault não se propunha a fazer uma história das ciências ou uma história das ideias, mas procurava descrever a configuração e as transformações históricas das diferentes épistémès, as quais marcariam diferentes possibilidades de pensamento e conhecimento, sem qualquer linearidade progressiva na passagem de uma épistémè a outra. Subjacente a toda cultura e, portanto, a toda forma de conhecimento, Foucault detectava a existência de uma ordem, de um espaço de identidades, de similitudes e de analogias por meio das quais classificamos e distribuímos os objetos do conhecimento. A obra era polêmica e despertou grande interesse e muitas críticas, pois Foucault foi acusado de hipostasiar a história e a práxis humana por detrás da ação silenciosa de estruturas anônimas.
Saber-poder-verdade
Em 1970, Foucault foi eleito para o prestigioso Collège de France e sua aula inaugural, A ordem do discurso, sinalizou uma virada em suas reflexões. Por certo, a política não estivera ausente das pesquisas arqueológicas, como testemunha seu acirrado embate com Sartre, a fenomenologia francesa e com os marxistas. Entretanto, agora Foucault não mais se contentava em avaliar as condições arqueológicas de ordenação dos enunciados, mas começava a interrogar os sistemas de exclusão e rarefação que envolvem toda enunciação discursiva. Sob forte inspiração nietzscheana, Foucault passava a questionar certas figuras histórico-políticas da vontade de verdade e da vontade de saber que permearam a história ocidental, perguntando-se, então, quem pode dizer algo e sob quais condições institucionais. Iniciava-se assim o período de suas investigações genealógicas, centradas no questionamento específico das relações intrínsecas entre saber-poder-verdade. Foucault insistirá em que não há verdade fora do poder ou sem o poder, pois toda verdade gera efeitos de poder e todo poder se ampara e se justifica em saberes considerados verdadeiros.
Nas pesquisas genealógicas dos anos 1970, Foucault analisou a constituição histórica das relações de poder em seu caráter produtivo e eficaz em obras fundamentais como Vigiar e punir e o volume I da História da sexualidade. Nelas, ele questionou a concepção filosófica moderna do sujeito constituinte e substituiu-a pela concepção de que o sujeito é constituído historicamente, simultaneamente à constituição das práticas e dos discursos que se multiplicaram nas diversas instituições sociais nascentes a partir do século 17, tais como a escola, o hospital, o quartel, as fábricas.
Quanto à análise das relações de poder, observava-se uma dupla inovação: por um lado, Foucault desviava os olhos da relação jurídica entre o Estado e o cidadão para lançar seu olhar microscópico sobre as múltiplas relações de poder presentes nas instituições sociais nas quais se forjou o indivíduo disciplinado e normalizado. Por outro lado, fugindo à tópica do poder repressor, Foucault descobriu que os micro-poderes disciplinares exerciam seus efeitos positivos e discretos sobre o corpo dos indivíduos visando transformá-lo num corpo dócil e útil, segundo a conhecida fórmula de Vigiar e punir. Com as pesquisas genealógicas, Foucault se propôs a investigar como se produziu o indivíduo moderno, o sujeito sujeitado e disciplinado em seus gestos, comportamentos, discursos, etc.
Biopolítica
Se o ponto de partida da genealogia foucaultiana do poder foi a descoberta dos micro-poderes disciplinares que visavam à administração do corpo individual, seu ponto de chegada foi a descoberta do biopoder e da biopolítica. Tratava-se de uma nova forma de exercício do poder soberano, nascente na passagem do século 18 para o 19, cujo alvo não era mais a produção do indivíduo dócil e útil, mas a gestão calculada da vida da população de um determinado corpo social. Foucault chegou à descoberta do biopoder ao analisar o que chamou, em História da sexualidade, de dispositivo da sexualidade, isto é, a sexualidade como o produto de discursos científicos e morais pautados pela vontade de saber, pelo ideal de normalidade e pela obsessão em esconjurar e escrutinar a anormalidade. Foucault descobriu que o sexo não era apenas a matriz privilegiada para o exercício dos poderes disciplinares, pois também constituía o foco por excelência para o gerenciamento planificado de fenômenos populacionais como as taxas de nascimento e mortalidade, as condições sanitárias das cidades, os índices de contaminação, etc.
A partir do século 19, interessava ao novo poder estatal estabelecer políticas higienistas por meio das quais se poderia sanear o corpo da população, depurando-o de suas infecções internas. Novamente se evidencia a genialidade de Foucault: ali onde nossa consciência iluminista nos levaria a louvar o caráter humanitário de intervenções políticas visando incentivar, proteger, estimular e administrar as condições vitais da população, Foucault descobriu o elo fatal entre higienismo, eugenia, racismo e genocídio. Em uma palavra, ele compreendeu que a partir do momento em que a vida passou a se constituir no elemento político por excelência, tal cuidado político da vida trouxe consigo a exigência contínua e crescente da morte em massa, pois é apenas no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população. Eis, portanto, o motivo pelo qual o século 20 pôde testemunhar o advento do nazismo e do stalinismo, para não mencionar os inúmeros casos em que democracias liberais valeram-se do racismo e do extermínio para lidar com suas ‘enfermidades’ e ‘patologias’ sociais.
O conceito de biopolítica é um dos principais legados teóricos de Foucault, tendo sido retomado e revisado pela reflexão de Giorgio Agamben (leia artigo neste dossiê), Roberto Esposito, François Ewald, Michel Sennelart, Michael Hardt e Antonio Negri, dentre outros. Com ele, Foucault não apenas nos ofereceu uma ferramenta para pensar os fenômenos extremos do nazismo e do stalinismo, como também nos concedeu um importante instrumento para pensar as novas formas biopolíticas de controle neoliberal de populações. Em Nascimento da biopolítica, curso de 1979, Foucault já indicava que o mercado competitivo tornar-se-ia a instância da produção de uma nova figura subjetiva, aquela que procura responder da melhor maneira possível às exigências e demandas variadas do próprio mercado econômico, tornando-se, para tanto, um empreendedor de si mesmo. Com muita perspicácia, Foucault compreendeu que o mercado das sociedades empresariais seria o lugar privilegiado ao qual nos reportaríamos a fim de nos tornarmos agentes econômicos competitivos. A profecia parece ter se cumprido, pois cada vez mais tornamo-nos presas voluntárias de processos de individuação e subjetivação controlados flexivelmente pelo mercado e seus ideais normativos.
ANDRÉ DUARTE é professor de filosofia da UFPR. É autor de O pensamento à sombra da ruptura. Política e filosofia no pensamento de Hannah Arendt (Paz e terra, 2000) e de Biopolítica e resistência: o legado de Michel Foucault (in Figuras de Foucault, ed. autência, 2006)