O Foro de São Paulo, a democracia e o PT
(Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
O Foro de São Paulo foi um dos maiores espantalhos usados pela direita bolsonarista durante os seis anos da sua consolidação e hegemonia. Fazia parte de um repertório de bichos-papões empregados na comunicação política bolsonarista em seu proselitismo político, para propagar o horror ao PT e à esquerda em geral. Foi um dos trilhos principais usados na satanização da esquerda, ao lado, por exemplo, do assim chamado kit gay. Enquanto o kit gay servia para incutir o pânico moral ante a informação de que a esquerda queria corromper as criancinhas induzindo-as à homossexualidade, o Foro de São Paulo era o argumento central para disseminar o pânico anticomunista, por meio da ideia de uma organização secreta, clandestina e poderosa que levava a cabo um complô continental para a implantação do comunismo na América Latina, tendo como consequência a abolição das fronteiras nacionais, o expurgo da religião e o fim da propriedade privada.
A ideia era estapafúrdia e desprovida de qualquer evidência empírica, mas foi eficiente. Há de ter sido relevante no recrutamento de novos bolsonarista e certamente teve um peso na radicalização dos bolsonaristas. Bebeu no imaginário da Guerra Fria que toda direita de baixa convicção democrática adora, além de ter servido aos incautos uma assustadora e irresistível teoria da conspiração. Até hoje há quem creia nessa fantasia.
Para sermos justos, contudo, é preciso dizer que a maluquice do Foro de São Paulo como uma organização secreta e superpoderosa foi uma dessas quimeras inventadas pela mente conspiratória de Olavo de Carvalho, o mentor da extrema direita falecido em 2022. Carvalho era um embusteiro e um guru e, como tal, era sagaz na compreensão da mente conspiratória e em como conduzi-la através da reiteração de premissas e narrativas eficientes. Ele sabia que nunca houve revolução sem a crença em um grande complô, em que o inimigo do povo desempenha um papel importante e nocivo que só será vencido pela adesão de massa a um novo partido ou nova seita, que não só desmascarou a maquinação silenciosa em curso, mas tem a coragem de enfrentá-la, mesmo que a ferro e fogo. O Foro de São Paulo, por ele transfigurado nessa ordem clandestina dedicada à dominação comunista do continente, foi a sua grande contribuição para a criação do imaginário anticomunista que confluiu no bolsonarismo.
Cortemos para o fim de junho e o início de julho de 2023, e eis que o Foro de São Paulo, o verdadeiro, está realizando a sua 26ª reunião em Brasília, com nada menos que 150 delegações de partidos e movimentos sociais da América Latina e do Caribe. O Partido dos Trabalhadores tomou providências, em um vídeo estrelado por sua presidente, Gleisi Hoffmann, para didaticamente explicar e elogiar o Foro: uma organização criada em 1990, “inspirada numa conversa entre Lula e Fidel Castro”, para que partidos e movimentos de esquerda da região discutissem agendas comuns que incluíam, segundo ela, a luta por “democracia, soberania e Justiça Social”.
Hoffmann explica o que seria uma agenda de esquerda: “é antes de tudo se posicionar contra a exclusão social, contra a exploração das pessoas, contra a fome, a pobreza”. Bem, esquerda é basicamente isso mesmo. Depois disso, ela toma todos os cuidados para usar com frequência a palavra “democracia” e explicar como é da agenda da esquerda a defesa do “aprofundamento verdadeiro da democracia com participação cada vez mais efetiva da população nas decisões e maior igualdade social”.
O tema da democracia é hoje obrigatório, claro, afinal ainda se está vivendo neste país o rescaldo de uma tentativa real de golpe de Estado em janeiro. Ou de dois golpes de Estado, segundo a versão do PT que considera o impeachment como um golpe efetivamente aplicado. Por outro lado, muitas das delegações presentes ao Foro de São Paulo representam partidos e movimentos que são parte de engrenagens ditatoriais no nosso subcontinente. Sem contar que desde o início, sob inspiração de Lula e Fidel, os partidos e movimentos da organização resolveram ignorar se os signatários e os participantes do Foro eram autocratas ou democratas, considerando que o único critério que importava é se eram ou não de esquerda.
Ora, se isso poderia ser ainda aceitável em 1990, quando a organização foi fundada, e talvez já não o fosse, no Brasil em que a democracia política vem sendo fustigada e testada em sua resistência há sete anos, não parece ter cabimento. Na Brasília em que ainda se notam os estragos físico e políticos da mais recente tentativa de acabar com a nossa democracia, o fato é ainda mais assombroso.
O PT tenta, então, de forma pouco graciosa, equilibrar-se entre a cobrança externa por um posicionamento forte e incondicional em favor da democracia e a pressão interna da organização de não melindrar os participantes que apoiam e são cúmplices de tiranetes e ditadores no subcontinente.
Qual a solução?
Usar um velho truque verbal da esquerda que vem ainda do século 19: dizer que a verdadeira democracia é a democracia social, não a democracia política. Em palavras simples, argumentar que democracia de verdade é igualdade social – no entendimento socialista da igualdade como justiça social – e não a igualdade política com todas as suas consequências, a saber, as exigências de respeito por eleições livres e limpas, por liberdade de opinião e partidária, por imprensa livre, por liberdade de consciência, divisão dos Poderes e por todo o pacote dos direitos e garantias fundamentais. Em suma, essas coisas da democracia que as ditaduras de esquerda não são capazes de atender.
Sim, Gleisi chega a dizer que “A democracia é para nós um valor essencial, em todos os países, assim como a busca da igualdade e do desenvolvimento com Justiça Social”, mas como se depreende do enunciado talvez o que ela entenda por democracia não seja exatamente a noção de democracia que o PT reivindicava em 2016 – respeito pela soberania popular manifestada na eleição da sua presidente – nem em janeiro de 2023 – respeito ao Estado de Direito, à divisão de poderes, ao resultado de eleições livres e limpas. O PT finge elogiar a democracia, num país em que recentemente os democratas saíram de todos os cantos para salvar a República e o mandato do presidente eleito, mas está na verdade fazendo as loas da tal “verdadeira democracia”, dos marxistas do século 19, a “democracia social”, a da comida no prato mesmo que com fome de direitos e liberdades.
Por um lado, a atual direita brasileira, que acabou de atentar contra a ordem democrática em conformidade com o seu DNA, é quem tem menos moral para criticar o fato de que partidos da esquerda democrática se sentem à mesa com a esquerda de ditaduras. Ditadores sanguinários não apenas compartilharam o caviar com os líderes da direita bolsonarista, como os encheram de mimos incompatíveis com o pudor republicano. Além disso, na vida real o Foro de São Paulo se assemelha mais a uma reunião de hippies velhos, de coração socialista, a resmungar contra o imperialismo durante o seu milionésimo congresso para discutir a crise do capitalismo, do que a uma força que tenha qualquer relevância política fora do devaneio olavista.
Por outro lado, um foro político de partidos e movimentos de esquerda para o qual é indiferente se estes são autocratas ou democratas é tão suspeito quanto um foro de partidos e movimentos do liberalismo econômico em que ninguém pergunta se o coleguinha do lado é um ditador ou um liberal-democrata. Compartilhar o pão – esse é o sentido de “companheiro” – com quem não se compartilha convicções democráticas, em pleno século 21, é, no mínimo, desconcertante. O fato de que logo depois de uma tentativa de golpe de Estado no Brasil a esquerda no governo ainda se sinta à vontade para se sentar à mesa com autocratas de esquerda como se fossem todos da mesma família é contraditório, hipócrita e feio.
Como era mesmo aquela história que dizia que se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas à mesa? Vale o mesmo para outras formas de tirania e despotismo ou é só para os nazistas mesmo? Um amigo meu quer saber.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)