A força estranha de “Maid”
Qualquer palavra sobre Maid, empregada doméstica, encerra em si um spoiler. Parece redundante dizer que a série da Netflix vai tratar dos efeitos do culto à domesticidade que se desdobra em questões de gênero, classe e raça. O “estrago” ou spoiler não está na revelação antecipada de qualquer surpresa, mas na constatação resignada do lugar impossível da mulher nas relações de trabalho e no dispositivo amoroso, condensado na figura da faxineira.
Alex é uma jovem, mãe, que para dar conta da própria vida sem uma rede de apoio e com um companheiro alcoólatra, busca o emprego de faxineira em casas de alto padrão de uma determinada região dos EUA. A jovem se ocupa da própria mãe, uma versão do que seria ela mesma, caso a dissociação se impusesse como uma forma de enfrentar a realidade do desamparo e da violência. O caminho de Alex, no entanto, confrontada com os mesmos excessos que atravessaram a vida da mãe, é o de uma força estranha, de quem viu a mulher preparando outra pessoa, de quem nunca tirou os pés do riacho e acredita que o sol ainda brilha em uma estrada que nunca passou.
Alex atravessa a intimidade doméstica das casas que limpa sonhando a vida dos moradores em uma espécie de diário da faxina. As sujeiras, os hábitos sexuais, os excessos, os fantasmas, nada escapa à sagacidade da faxineira que precisou abandonar o sonho de ir para a universidade diante da precariedade da sua vida.
O lugar que cabe a Alex neste cenário é o de garantir que a engenharia do culto à domesticidade se preserve como forma de separação entre o espaço público e o espaço privado que atribui à jovem toda a responsabilidade das suas escolhas e das contingências do fracasso da sua vida, assim como torna invisível o valor social e econômico do trabalho doméstico.
A empregada doméstica é a figura que tradicionalmente assume o lugar fundamental da distinção de classe entre a burguesia e a classe trabalhadora, garantindo a firme demarcação destas fronteiras através deste culto à domesticidade e do fetiche da limpeza. Mcclintock em seu estudo sobre a relação entre as práticas domésticas e a racionalidade industrial vai identificar como o trabalho doméstico cria um valor social separando a sujeira da higiene, a ordem da desordem, o sentido da confusão. Segundo a autora “as empregadas gastavam boa parte do seu tempo limpando objetos de fronteira – maçanetas, peitoris, degraus, calçadas, corrimãos -, não porque esses objetos fossem especialmente sujos, mas porque esfregá-los e poli-los ritualmente mantinha a fronteira entre o privado e o púbico e dava a esses objetos um valor de exibição enquanto marcadores de classe”.
Nesta mesma direção a sujeira assume o valor da relação entre a ordem e a desordem social e sua eliminação garante à classe média uma diferenciação em relação à classe trabalhadora justamente por não portar em seus corpos os resíduos do trabalho manual. É neste momento, como aponta Mcclintock, que o sabão condensa, como mercadoria, todos os valores da razão doméstica- “sabão é civilização”. A façanha do culto à domesticidade, este seria um dos seus objetivos, é o de negar o valor social e econômico do trabalho doméstico e manual das mulheres.
Em complementariedade ao fracasso destas relações de trabalho, diante de uma conta que nunca fecha, a série também trata de maneira muito delicada o dispositivo amoroso como um lugar privilegiado para a manutenção das relações de poder e opressão das mulheres dentro de uma racionalidade heteronormativa. Alex parece ser a única adulta responsável pela filha ao mesmo tempo em que se sente constantemente ameaçada pela perda da guarda, em razão da sua vulnerabilidade social. O destaque da questão do gênero aqui, em que pese a tradicional crítica da classe, é certeiro e afiado. Por trás de uma promessa ilusória de um lugar de identificação, afeto e proteção, o dispositivo amoroso reenvia a mulher ao lugar de vulnerabilidade de onde parece impossível sair. A torcida silenciosa do telespectador para que Alex se ajeite com o bonachão bem-sucedido, que a acolhe no momento de maior desamparo, denuncia o vestígio colonial-patriarcal-branco-heteronormativo que fundamenta para as mulheres que a conjugalidade é o único lugar possível para ser feliz. A vida de Alex transcorre, no entanto, à despeito destes lugares de desprezo, fundamentada na solidariedade e na ação comunitária como uma reserva ética que confere sentido à vida.
O recorte da questão racial é, a meu ver, o ponto alto da série. Como uma intervenção que barra o gozo sádico infinito desta racionalidade colonial expandida vemos o embranquecimento das trabalhadoras domésticas e a designação dos papéis de destaque social e empoderamento feminino dado às atrizes negras. É assim, como uma luz no fim do túnel, como um sol brilhando na estrada para que uma mulher possa, finalmente, passar.
Marília Velano é doutora em psicologia pela USP, professora do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapienteae.