Fim de jogo
O educador Anísio Teixeira e o filósofo John Dewey se encontram, no palco das Américas, na idéia de construir a democracia pela educação
Na Enciclopédia da política brasileira, o educador Anísio Teixeira (1900 – 1971) poderia figurar no verbete democracia. Na peça teatral A esperança democrática no Brasil, seria um dos personagens centrais. Dos anos vinte à década de sessenta do século passado, sua trajetória de vida e sua atuação profissional coincidiram com as contradições, esperanças e traumas do Brasil. Sua inserção nesse misto de livro e encenação imaginários serviria não tanto para retratar eventos e datas com precisão, mas principal-mente para ajudar os leitores/espectadores a pensarem o mundo em que vivem.
Seria mais ou menos assim:
Democracia, anos 1920, primeiro ato – Anísio Teixeira, filho de tradicional família da oligarquia baiana, formado no catolicismo, assume responsabilidade pela reforma do ensino em seu estado natal, experiência em que, anos mais tarde, reconhecerá os traços do elitismo próprio de seu tempo, a época do coronelismo, da economia predominantemente agrária e da escolarização como privilégio de poucos. Anísio vai estudar nos Estados Unidos, encanta-se com o vigor do sistema político americano e conhece a filosofia pragmatista de John Dewey (1859 – 1952): democracia não é, propriamente, uma estrutura de governo, mas um modo de vida que envolve cooperação, liberdade para dialogar e alcançar consensos, os quais são sempre transitórios e dependentes do grupo social que os articula; não há verdades eternas e imutáveis, os valores são definidos ante problemas sociais imediatos, e não há como pensar a democracia como modelo, como idéia que desce ao mundo para fazer a felicidade dos homens. Se não existe a Cidade de Deus pensada por Santo Agostinho, o grande cristianizador de Platão, como edificar a Cidade dos homens?
Democracia, anos 1930, segundo ato – Em meio de incertezas decorrentes da dissolução de suas crenças pessoais e intelectuais, Anísio Teixeira está no Rio de Janeiro, capital federal, e vivencia o clima gerado pela vitória de Vargas sobre a República Velha, o que parece ser o início de uma era de renovação, modernidade e democracia, espaço aberto para concepções novas sobre o mundo e sobre a sociedade. Juntamente com Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e outros intelectuais, Teixeira adota e põe em prática as teses da Escola Nova, movimento de envergadura internacional que pretende renovar as idéias e as práticas pedagógicas em vigor, ditas tradicionais. É um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, documento fortemente calcado em ideais democráticos. Inspirado nas proposições educacionais de Dewey, assume a direção do ensino no Distrito Federal, adotando medidas que favorecem a escolarização das crianças pobres da periferia e instala o self-government no interior das escolas. O ensino renovado, democrático e universal é o instrumento que transformará a sociedade brasileira. A ousadia de Anísio, porém, o coloca em confronto direto com as variadas manifestações do conservadorismo, sendo por alguns acusado de comunista e por outros, de americanófilo. Renuncia à vida pública e se auto-exila na Bahia.
Democracia, anos 1930, uma falsa entrecena (o palco nu, uma luz cálida em foco sobre um narrador solitário e cabisbaixo) – Em 1937, instala-se o Estado Novo, a ditadura varguista que só cairá em 1945. Enquanto muitos intelectuais aliam-se ao regime, Anísio ocupa-se de seus negócios particulares, estudando e traduzindo obras de John Dewey.
Um link para os Estados Unidos – A crise deflagrada em 1929 coloca os empresários em situação precária e a classe trabalhadora na penúria, o que ameaça a democracia americana. Munidos de uma concepção liberal inspirada na “mão invisível” de Adam Smith, certos pensadores defendem que o poder público deve omitir-se de dirigir a economia, pois o sistema acabaria por se auto-regular, premiando os fortes e aniquilando os fracos. John Dewey alinha-se àqueles que defendem o contrário, a intervenção do Estado em prol da salvação nacional – o que foi posto em prática no decorrer da década pela política do New Deal. É acusado de comunista após sua visita à União Soviética, país que chegou a admirar pelo espírito cooperativo que lá encontrou, mas que renegou mais tarde ao perceber os rumos totalitários da política stalinista. Envolve-se em polêmicas contra adversários que considera representantes de idéias absolutistas, que crêem na filosofia como trilha segura para o futuro da humanidade: a idéia que desce ao mundo para conduzir a humanidade, seja pelas mãos de católicos, fascistas, nazistas, seja pelas mãos de comunistas. O país mergulha no conflito bélico internacional e o encerra de maneira trágica, lançando duas bombas atômicas sobre o Japão. Instala-se a cruenta perseguição aos comunistas em terras americanas.
Democracia, anos 1940 e 1950, terceiro ato – Com o término da Segunda Guerra e a queda do Estado Novo, Anísio é convidado a atuar na Unesco como Conselheiro de Ensino Superior. O órgão da recém-criada ONU põe em cena a ampliação das oportunidades educacionais como antídoto contra novos conflitos bélicos mundiais, pois considera que a miséria e a ignorância dispõem os povos à aceitação de ideologias contrárias à paz e à democracia.
A intelectualidade brasileira abraça o ideário desenvolvimentista, que terá em Juscelino Kubitschek seu mais exímio executor: o Plano de Metas buscará colocar o Brasil em sintonia com as nações urbanizadas, industrializadas e democráticas, e a concepção de Brasília simbolizará a modernidade, o progresso e o arrojo em direção ao futuro. Teixeira assume a direção do Inep, órgão governamental em cuja esfera cria os Centros de Pesquisas Educacionais dedicados à investigação científica da realidade brasileira, com especial atenção para as temáticas educacionais.
Novo link para os Estados Unidos – John Dewey morre em 1952, fiel à idéia de que a transformação do mundo se dará pelo desenvolvimento da ciência e pela renovação educacional. Seu modelo de ciência coincide com sua noção de democracia: um espaço de liberdade para afirmar verdades e utilizá-las em benefício da humanidade, com plena possibilidade para a contestação das certezas em bases racionais, por meio da inteligência, em busca de novos consensos. No final dos anos cinqüenta, os norte-americanos já têm expostas feridas que farão explodir os movimentos sociais em luta por uma sociedade mais justa e igualitária, exigindo o fim da segregação racial e medidas governamentais que consolidem o welfare state. Planeja-se a invasão de Cuba. Logo mais, o povo americano será assolado pelo delírio vietnamita. John Kennedy, Malcolm X e Martin Luther King serão assassinados. A democracia parece ser mesmo um caminho longo e penoso…
Democracia, anos 1960, último ato – Envolvido desde o final da década anterior na Campanha em Defesa da Escola Pública, Anísio Teixeira alinha-se com outros educadores progressistas (Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, dentre eles) que se posicionam pela reformulação do ensino em bases democráticas, mas vê aprovada em 1961 uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que não corresponde às suas expectativas. Os caminhos da democratização do ensino – e da sociedade, em geral – parecem realmente difíceis de serem trilhados. Persiste e ao lado de Darcy Ribeiro funda a Universidade de Brasília, norteado pelo projeto de instituir uma autêntica comunidade de pesquisa em benefício do progresso do país. Torna-se reitor em 1963. Em 1964, o golpe militar o afasta de seus cargos. Depois de uma temporada nos Estados Unidos, assume posto no Conselho Federal de Educação, incansável em sua luta pela democracia. Ah! A democracia… Em 1971, é encontrado morto no poço de um elevador. O Jornal do Brasil, edição de 15 de março, noticia: “O professor Anísio Teixeira vestia terno e gravata, mas estava sem sapatos e com um grande hematoma na face direita”.
Blackout.
Marcus Vinicius da Cunha
professor livre-docente e pesquisador da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP) e do Centro de Estudos em Filosofia Americana. Autor de John Dewey: uma filosofia para educadores em sala de aula (Ed. Vozes, 1994)