Continuidade e descontinuidade na filosofia de Wittgenstein

Continuidade e descontinuidade na filosofia de Wittgenstein

Tractatus logico-philosophicus e Investigações filosóficas marcam duas fases distintas da obra do pensador austríaco, mas têm como propósito subjacente mostrar que os grandes problemas da filosofia tradicional permaneceram irresolutos por séculos porque eram desprovidos de significado

Michael Wrigley

 

No prefácio do Tractatus logico-philosophicus, o seu autor de 29 anos declarou modestamente que a verdade das proposições contidas nesse volume magro e hermético era “intocável e definitiva”. Entretanto uma década e meia depois sua opinião havia se alterado radicalmente. Tanto que escreveu na cópia do Tractatus pertencente a seu amigo Moritz Schlick, o líder do círculo de Viena, que “cada uma dessas proposições é a expressão de uma doença”. E quando ele escreveu a versão final do prefácio de seu segundo e inacabado livro, as Investigações filosóficas, em 1945, ele referiu-se ali aos “graves erros que publicara naquele primeiro livro”.

É fato que, quando comparamos as Investigações filosóficas com o Tractatus, o que mais salta à vista são as diferenças e as críticas explícitas das idéias centrais do primeiro livro de Wittgenstein. Mas será que não existe nenhum traço de continuidade entre a filosofia anterior de Wittgenstein e a posterior? É possível que ele realmente viera a crer que todas as idéias do Tractatus estavam erradas e recomeçou do zero, ou existem importantes linhas de continuidade entre a sua filosofia posterior e as idéias que ele elaborou enquanto lutava para o Império Austro-Húngaro durante a Primeira Guerra Mundial? A escolha de Wittgenstein da frase “Em geral, o progresso parece bem maior do que realmente é”, do escritor teatral austríaco do século XIX Johann Nepomuk Nestoy, como motto para as Investigações filosóficas, sugere que tais traços de continuidade podem bem existir. De fato, apenas alguns anos antes de sua morte, depois de ter abandonado toda tentativa de colocar as Investigações filosóficas em forma final e definitiva, Wittgenstein disse a um amigo que suas idéias fundamentais lhe haviam vindo muito cedo, o que sugere não apenas que existem traços de continuidade em seu pensamento, mas também que eles envolvem aspectos fundamentais dele.

Como um primeiro passo na apreciação de quais seriam esses traços de continuidade, é suficiente lembrar um de seus aforismos mais famosos e freqüentemente citados. Ele escreveu nas Investigações filosóficas (§109) que “a filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento por meio da nossa linguagem”. Há aqui duas questões, referentes à linguagem e à natureza da própria filosofia, centrais para Wittgenstein ao longo de toda a sua carreira filosófica e que, além disso, ele sempre acreditou estarem essencialmente ligadas. Os problemas filosóficos surgem de erros de compreensão da linguagem e devem ser resolvidos por uma correta compreensão dela. Se olharmos para o Tractatus, não é difícil encontrar essa mesma combinação de idéias. Ele escreveu lá que toda filosofia é crítica da linguagem (§4.0031). Mas não seria isso vinho novo em garrafa velha? As concepções de Wittgenstein sobre a linguagem e a filosofia não sofreram profundas mudanças? Sim e não. Sem dúvida, tanto as concepções de Wittgenstein sobre a linguagem quanto sobre a filosofia mudaram radicalmente. Uma das mudanças mais profundas e importantes é a rejeição pelo segundo Wittgenstein da idéia que a filosofia tem a ver com a revelação da estrutura oculta do pensamento e da linguagem. No Tractatus, ele escreveu que “a linguagem é um traje que disfarça o pensamento. E, na verdade, de um modo tal que não se pode inferir, da forma exterior do traje, a forma do pensamento trajado” (§4.002), e o objetivo central do Tractatus era revelar essa estrutura subjacente oculta do pensamento e da linguagem por meio da análise lógica, usando os novos instrumentos lógicos que Wittgenstein aprendeu com seus professores Frege e Russell. Na filosofia posterior de Wittgenstein, essa idéia é completamente rejeitada. “O que está oculto não nos interessa”, declarou ele nas Investigações filosóficas (§126), e o foco das preocupações de Wittgenstein com a linguagem é agora a descrição da linguagem ordinária como de fato é, em vez da construção de uma linguagem formal artificial à imagem dos cálculos da lógica e da matemática com a qual descrever a estrutura subjacente comum a todas as linguagens.

O interesse de Wittgenstein pela linguagem muda em um outro modo muito importante. No Tractatus, ele acreditara que era possível dar respostas completamente gerais a questões concernindo representação, significado e linguagem que eram chaves para a resolução dos problemas da filosofia. Um dos objetivos centrais do Tractatus era descrever a forma geral da proposição, isto é, o que todas as proposições têm em comum. (Realmente, isto aparece no fato de que ele num certo momento considerou dar ao livro o título de A proposição, simplesmente, antes de G.E. Moore sugerir o título latino que Wittgenstein acabou adotando.) Em sua filosofia posterior Wittgenstein concluiu não simplesmente que sua resposta anterior a essa questão estava errada, mas que a própria questão o era. Não há respostas gerais desse tipo porque nenhum desses conceitos têm uma propriedade unificadora em comum aplicável a todos os casos. Não há essências.

A concepção de Wittgenstein sobre a natureza da filosofia também sofreu mudanças profundas. Tanto o objetivo de generalidade quanto o de finalidade são abandonados. Numa metáfora notável, Wittgenstein descreve essa mudança assim: “O desconforto em filosofia aparece, pode-se dizer, ao se olhar a filosofia erroneamente, ao vê-la de modo incorreto, como se fosse dividida em faixas longitudinais (infinitas) em vez de faixas transversais (finitas).” (Zettel, “Notas”, § 447). O objetivo de Tractatus era descrever conceitos de uma vez por todas, capturando sua essência. Se isso pudesse ser feito, poderia ser feito completa e definitivamente. Nas Investigações filosóficas, a perspectiva de Wittgenstein muda, ele percebe que nós podemos apenas descrever casos particulares de conceitos, e que não existem essências gerais a serem capturadas. Mas isso quer dizer que nós nunca podemos completar a tarefa da filosofia, porque esse casos particulares são infinitos em sua variedade e, sobretudo, porque a trama dos conceitos que constituem a linguagem está mudando constantemente. Wittgenstein comenta na mesma passagem de Zettel: “Mas nesse caso nós nunca chegamos ao fim de nosso trabalho! Claro que não, pois ele não tem fim.”

Essas são de fato mudanças profundas, mas subjacente a essas transformações há um nível ainda mais profundo de continuidade que diz respeito à concepção de Wittgenstein sobre a natureza dos problemas filosóficos. Uma das influências mais antigas que Wittgenstein reconheceu foi a de um físico e filósofo da ciência chamado Heinrich Hertz. Ele leu o trabalho de Hertz quando estudava engenharia, e uma idéia em particular de Hertz exerceu sobre Wittgenstein uma influência profunda e duradoura. Hertz sugeriu no prefácio de seu Princípios de mecânica que algumas das questões que os físicos achavam especialmente difíceis de responder eram de fato sem sentido. (Hertz estava pensando em particular em questões tais como a natureza da força.) O modo de tratá-las não era tentar respondê-las, mas mostrar que elas não eram de modo algum questões genuínas. Quando isso fosse feito o resultado seria, nas palavras de Hertz, que “a questão sobre a natureza da força não terá sido resolvida; mas nossas mentes, não mais perturbadas, cessarão de colocar questões ilegítimas”. Para Wittgenstein, essa idéia oferecia o insight mais importante sobre a natureza dos problemas filosóficos em geral. A tarefa da filosofia era mostrar que os grandes problemas da filosofia tradicional permaneceram irresolutos por séculos não porque eram tão extraordinariamente difíceis, mas porque não eram de modo algum questões com significado. E para Wittgenstein o modo de mostrar isso era através da descrição da linguagem. Essa concepção da natureza dos problemas filosóficos é talvez o aspecto mais fundamental do pensamento de Wittgenstein, e é algo que ele nunca questionou. O que mudou, e mudou profundamente, foram os detalhes do método por meio do qual essa idéia subjacente foi posta em ação. Mas o objetivo nunca mudou.

Michael Wrigley
professor de filosofia na Unicamp, é doutor em filosofia pela Universidade de Califórnia, Berkeley e atualmente prepara um livro sobre a filosofia da matemática de Wittgenstein

Tradução de Jairo J. da Silva

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