Faces do traumático em tempos de pandemia: algo acerca da linguagem
Summer Interior, Edward Hopper,1909 (Foto: Reprodução/Wikiarte)
Uma metáfora que se poderia aplicar à pandemia é a de uma tempestade de neve prolongada. A vida transcorre de forma mais lenta, o desamparo e o desabrigo são eloquentes fatores de risco, vemos a paisagem mais monótona em seus horizontes embranquecidos. A morte, tornada uma presença constante, traz o medo ou mais propriamente o terror do que não encontra representação. Essa nevasca tampouco tem data de término identificável e se prolonga de forma surpreendente. O inverno tem suas noites mais escuras e assustadoras, pois não respeitam os horários; passamos por elas como num túnel onde cintilações provisórias podem nos enganar como se fossem final da travessia.
Não temos o recurso do hábito, até porque a última nevasca ocorreu um século antes e foi objeto de um estranho processo de empobrecimento de registros. Lembremos que a gripe espanhola dos anos 1919 e 1920 matou o dobro de pessoas, mais do que a Primeira Guerra Mundial. Comparemos os registros que acompanham os dois eventos, quanto as disciplinas históricas que nos ajudam a recordar e a refletir se ocuparam de ambos. Obviamente estamos no interior de um fenômeno que Freud definiu como traumático: uma estimulação que não encontra trajeto representativo e que, portanto, não se torna possível seja de pensamento seja de recalque. Torna-se como um buraco negro da astrofísica que por sua força gravitacional atrai os outros corpos com matéria e substância.
A terra abaixo da neve não interrompe seus processos, seja ganhando fertilidade e força, seja se livrando do que se torna inútil para a próxima estação. Ao final, o ambiente ressurgirá mais eloquente em seus processos de abrigar o novo e se desfazer do anacrônico. O que quero lembrar é que o solo abriga a metáfora de Zigmunt Bauman da “sociedade líquida”. Lembremos que isso é uma referência a Marx quando, em 1848, dizia que o capital não tem visão ética e moral, tampouco tem pátria. Vai se estendendo aos confins do planeta, constrói e destrói coisas maravilhosas e em seu movimento torna anacrônicas as tradições, os hábitos, criando permanentemente novas ofertas e necessidades. O humano se submete não apenas ao ciclo vital, mas, também ao movimento social. Todos lembram o verso de Caetano Veloso na canção Sampa, em que fala da força da grana que constrói e destrói coisas belas.
Saindo do terreno metafórico, muito brevemente algumas palavras acerca do solo sobre o qual se abate essa tempestade.
A partir dos anos 1990 assistimos a uma enorme revolução tecnológica e a uma concentração acelerada do capital, que em muitos casos se torna maior que a de estados nacionais. Simultaneamente, também no polo do trabalho, se requer uma concentração de habilidades e, recorrendo a uma caricatura, ou se trabalha o tempo todo, tendo como lazer correr uma maratona, ou não se encontra trabalho. Há uma precarização do trabalho e uma decadência da classe média, que vê seus tradicionais anseios cada vez mais distantes no horizonte. Os privilegiados se encastelam em condomínios e as comunidades precárias não cessam de crescer.
Ao mesmo tempo, assistimos ao desfalecimento da utopia socialista que ocorre ao mesmo tempo do enfraquecimento da utopia liberal. Com o fim de um Vaticano, pois essa ideologia funcionava muitas vezes como um dogma religioso, assistimos também ao enfraquecimento de ideologias dissidentes como, por exemplo, a social democracia e o trabalhismo que acompanham esse movimento de transformação do caráter do trabalho tradicional.
Esse é o terreno do surgimento de falácias como o da sabedoria do mercado e ideologias individualistas. A política pode se tornar micropolítica de caráter subjetivo que prepara o terreno para visões de que cada indivíduo é um empreendedor. Os anseios também perdem seu caráter generalizante e se fracionam numa multiplicidade infinita de bandeiras identitárias. Aparece uma descrença de que a política seja a arte do convívio, portanto, parte essencial de nosso convívio cotidiano.
Obviamente temos também um enriquecimento geral e o surgimento de consumos nunca imaginados. Vive-se 90 anos e, em profissões de ponta, é comum se tornar anacrônico antes dos 60.
Está no horizonte o fato de que com recursos econômicos poderemos comprar décadas de vida por transformações inclusive genéticas. Assim foi sempre, o mar Mediterrâneo assistiu feitos humanos horríveis e maravilhosos. Hoje assistimos numa única geração transformações que antes ocorriam entre pais e filhos.
Esse é o terreno onde o traumático
adquire hegemonia. Onde antes
existia o pensamento e as esperanças,
mesmo utópicas, vemos hoje a hegemonia
de crenças rasas, de fundamentalismos
religiosos que se esparramam na velocidade
dos desenvolvimentos tecnológicos.
Beleza e horror caminham juntos, temos inúmeros exemplos históricos, mas o contexto se renova e o pensamento o persegue, e onde não o alcança estaremos no terreno do traumático, sem o consolo do hábito, da tradição ou da neurose, com seu acervo de memórias. O sofrimento humano traz as características do informe e suas “soluções” são pobres. É o tempo do pânico, da melancolia sem palavras, dos distúrbios alimentares, do sono, das ditas patologias contemporâneas. Estamos diante de uma enorme anomia. Tudo isso é tratado como fenômeno médico, portanto sujeito à terapia e vastamente apropriado pelas grandes companhias farmacêuticas que, a partir dos anos 1990, se agigantaram.
É claro que tudo isso adentra nossos consultórios.
Tomados pela nevasca, nos recolhemos em nossas casas perplexos, tendo que recorrer aos aplicativos eletrônicos. Eu mesmo tinha uma descrença nesse método comunicativo para psicanálise e comecei com medos de um abismo que ocorreria em minha vida. Todos lembram a estranha corrida aos supermercados em busca de estocar papel higiênico. O que isso comunicava? A resposta é obvia e a linguagem chula se encarrega disso. A prática foi me dando algumas respostas surpreendentes. Os vínculos permaneceram e se atualizaram. Talvez o distanciamento corporal e a estimulação traumática favoreceram o maior aparecimento do território da neurose e do recalcado. O encontro corporal, o assombro de cada encontro se atenuou, dando lugar ao traumático compartilhado do isolamento social.
As análises produziam uma quantidade surpreendente de sonhos e se falava mais abertamente de camadas primitivas e cisões que se atualizavam nessa forma inusitada de relação. Como estamos na sétima ou talvez oitava quarentena seguida, o hábito foi se instalando e estamos novamente em terreno familiar com a perplexidade dirigida ao final do túnel: como se dará o retorno aos encontros presenciais? Em que mundo estaremos? O assombro se impõe. A realidade busca suas palavras e estas inevitavelmente chegam atrasadas.
Como vimos, o traumático se assenta na ausência da linguagem e esta se situa muito além da definição da fala. Temos linguagem musical, plástica, de textura, de movimentação etc. Todas as artes nos remetem ao território da construção da linguagem psíquica. Para a revelação do inconsciente só podemos recorrer à linguagem conotativa. Toda nossa prática e teorização vão recorrer à linguagem poética. Para termos ideia e aproximação ao nosso objeto de interesse, inevitavelmente recorremos a metáforas e alegorias. Nossas revelações não são capturadas por definições, mas têm iluminações estéticas que, como tal, são efêmeras e não podem ser objeto de uma presença constante. Não nos interessam as palavras, mas sim, a sua sombra. Como nas artes, cada apresentação nos suscitará o único, provisório e o impossível de ser capturado. Na arte a repetição é imperdoável. Esse é o caráter de sua ética. É claro que há lugar para o estilo, reconhecemos a autoria e ela não é passível de reprodução.
Poderíamos comparar a situação psicanalítica que é a grande invenção freudiana com um caminhar ao crepúsculo por um campo de vagalumes. Deslumbrados com sua luz tentamos capturá-los e estes postos num vidro não trazem mais luz, permanecem em seu escuro silêncio. Quando esperamos captura-los, caminhamos em sua direção, mas voltam a se acender, surpreendendo-nos por sua proximidade ou direção inesperada. Por outro lado, observando-os, em nosso silêncio e interação com sua luz, aos poucos poderemos caminhar nossos trajetos pelos campos com maior familiaridade. Essa é a terapia possível, caminhando com eles se desenvolve nossa trajetória na vida. Assim é o inconsciente, individual ou social, a penumbra requere pensamento. Desse modo, a psicanálise mais do que uma hermenêutica, é disciplina de percepção e representação. É a possibilidade da introdução da linguagem onde ela não existia.
Nos textos psicanalíticos são frequentes as metáforas que vêm da civilização grega ou de Shakespeare, e me pergunto por que a construção bíblica tem tão poucas citações? Penso que uma hipótese seria a de que suas tradições jazem vivas entre nós, não oferecem o devido distanciamento, e mergulhados em uma cultura elas entranham ainda nosso ser sem que dele nos possamos dar conta. Vou me dirigir nessa direção sumariamente.
Na tradição bíblica, Adão antes da queda tinha o poder de nomear as coisas vivas da natureza. O nome não se diferenciava da coisa referida. Com a queda, essa possibilidade se desfaz e a língua adâmica se fraciona em múltiplas linguagens. Inconformados, os homens tratam de voltar a ela na catástrofe da torre de Babel e continuamos ansiando o território da linguagem em comum onde a comunicação é imediata. No entanto a identidade entre o nome e a coisa não ocorre. Já no Novo testamento temos a ocorrência de Pentecostes onde os discípulos, bafejados pelo Espírito Santo encontram, surpreendentemente, uma linguagem em comum e todos têm o mesmo entendimento simultaneamente. Posso dizer que vemos isso nas escolas de pensamento com seus mestres e discípulos e sempre uma consequente Torre de Babel se instala. Por outro lado, vemos que a configuração e permanência do grupo vai se assentar na existência de infiéis e dissidentes. A identidade ocorre por oposição.
Vemos essa busca da linguagem de Deus, da linguagem única em outro trajeto bíblico que é a sequência Criação, Revelação e Redenção, ou seja, na ideia messiânica. A sombra da revelação e da redenção se abate sobre a terapia. Quanto os resíduos de uma tradição entranham nosso fazer prático e nossa possibilidade de compreender? Sabemos também que o nosso desenvolvimento pessoal e individual inclui possibilidades de sermos não só influenciados por essa cultura, como também, somos feitos da mesma matéria dos criadores das crenças.
Como dizia Adorno em sua crítica do Iluminismo, os mitos já têm em si primórdios do conhecimento, assim como os sonhos, eu acresceria. Por outro lado, a razão humana quando carente de sua crítica se transfigura em mitologia. Deste modo, a crença que o nome de Deus é impronunciável carrega em si que o infinito é um objeto que não cabe numa definição, pois se assim o fosse deixaria de ser infinito. O Outro, a Alteridade, tem essa natureza infinita. Não cabe a colonização, a domesticação ou a conversão.
Não deixa de ser interessante a ideia cabalística de que Deus em sua característica de totalidade não poderia existir ao mesmo tempo que o mundo. Para essa tradição, o mundo se cria pela retirada de Deus do mundo e que sua luz será vista nos vestígios de vasos quebrados que buscaremos consertar.
Enfim, termino dizendo que sempre persegui o atual chegando atrasado. Nossa trajetória caminhará sempre os caminhos do trauma e quando chegamos à sua representação o momento é outro. Um dilema para a psicanálise, a pedagogia e a política. Finalizo com Mario Quintana:
“Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página. Por isso a palavra é sempre triste”
Leopoldo Nosek é psicanalista e membro didata da SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo)