Experiência republicana de contragolpe dromocrático
(Foto: Fabio Pozzebom/AB)
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Sob proliferação neofacista, a velocidade política e institucional de contragolpe por parte de vertentes de centro-esquerda no Brasil tornou-se vital para o futuro da democracia
I
Preâmbulo
Revertério republicano sem mea culpa expressa
As tensões e incertezas políticas no Brasil após 2018 alçaram outubro de 2022 a marco histórico de revertério para o delírio militarista do bolsonarismo. Independentemente da perduração dos conflitos (no interior de cada instância de governo e em todos os segmentos da sociedade civil), as instituições republicanas e democráticas, principalmente após o pleito de outubro, enquadraram (com xeque-mate prodigioso), acuaram, moeram e empacotaram o neofascismo, antes de o ejetarem do Estado e o despacharem para as páginas policiais da imprensa brasileira e estrangeira.
A gramática política do fluxo dos acontecimentos historicamente recentes é instrutiva demais para habitar somente pressupostos. As instituições que, pressionadas pelos movimentos de rua desde 2013, esbanjaram casuísmo político-jurisprudente em 2016 – ao violarem o mandato de Dilma Rousseff na Presidência da República e, dois anos depois, encarcerarem, com chicanas e fraudes judiciais, o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (por 580 dias), asfaltando o terreno para o neofascismo bolsonarista – foram, mutatis mutandis, as mesmas, entre Congresso Nacional e Judiciário, que contribuíram para ejetar, pelo rito das urnas, o inquilino miliciano do Palácio do Planalto, em notabilíssimo desagravo histórico ao agora presidente Lula, acolhido novamente pelo establishment.
Preservando idiossincrasias surpreendentes, os arranjos político-institucionais mudaram de vindima e, maturados, reassentaram-se na direção há muito esperada, após tufão fora da curva. O processo se cumpriu sem verbalização de mea culpa por parte dessas instituições e dos meios de comunicação corporativos e conservadores: junto com as três instâncias do Poder Judiciário, eles construíram o lawfare que culminou no mencionado encarceramento.
Não obstante, a dimensão republicana (se assim se pode dizer, em termos sistêmicos) dessa mea culpa se conota inteira e sutilmente na materialidade de sentenças anulatórias e corretivas proferidas pela cúpula do sistema judiciário e, por força dessas decisões irrecorríveis, nas entrelinhas das vistas grossas mediáticas – tão nítidas quanto envergonhadas – sobre abusos noticiosos praticados antes, durante e depois da arruaça institucional de 2016, antes, durante e depois da prisão do ex-atacado Luiz Inácio Lula da Silva. Após o impressivo trunfo eleitoral da coalizão partidária de centro-esquerda liderada por Lula, a mea culpa se subordinou ao fetichismo do poder, sob a constrangida luz do respeito obrigatório ao princípio democrático da maioria simples.
O caráter próspero do fato exige corroboração por palavras mais francas. Após incertezas generalizadas, a comunidade internacional viu, enfim, as urnas eletrônicas do país asseverarem, pouco solenes: estão expulsos das instituições de Estado no Brasil todos os neofascistas declarados, fundamentalistas ou simpatizantes, eleitos ou comissionados, com ou sem porte de arma, superexpostos ou anônimos. E completaram, com ainda menos cerimônia: por tanta incompetência – não tão incomum na história nacional –, no que tange à administração do Estado e da sociedade, circulem, se possível, somente em perímetro civil, descontinuando a vexação pós-1988 das Forças Armadas; e, mesmo assim, lembrem-se: estarão todos, sem exceção, sob vigilância multilateral por parte de uma cidadania avessa a regressões históricas e a recuos em matéria de conquistas políticas e sociais.
Não abandona a veracidade factual quem assevera que, mutatis mutandis e guardadas as diferenças de proporção, 2022 no Brasil reiterou 1945 no mundo, sem utilização de armas de fogo. À época, hostes nazistas não resistiram ao avanço das tropas aliadas (Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos). No pleito de 2022, seu primo neofascista brasileiro, mesmo com casuísmos pecuniários os mais escusos e com mecanismos ilegais tão ignóbeis, não resistiu a milhares de eleitores avidamente preocupados com o destino das instituições democráticas.
Igualmente, não destrata a veracidade quem, com rigor, compara, em contexto diverso, valores envolvidos. Em 1964, forças ultraconservadoras (militares, empresariais, religiosas etc.), representando o bronco espectro de direita, fechou o tempo contra partidos e grupos políticos e culturais de esquerda, em coro a regimes sangrentos na América Latina, articulados ou não pela Operação Condor: de 1954, na Guatemala e no Paraguai, até 1976, na Argentina, a onda de golpes de Estado varreu a Bolívia (1964), o Chile e o Uruguai (1973), entre outros países. Em crucial inversão de rota, a história brasileira, a partir de 2023, mostra vertentes de centro-esquerda cobrando a conta da extrema direita – o mundo caiu sobre a cabeça da turba e de seus instigadores –, na perspectiva da preservação constitucional do modelo republicano vigente.
Em saldo geral, a jovem democracia brasileira, por todos os mecanismos jurídicos, políticos e administrativos federais, antes, durante e depois do processo eleitoral de 2022, respondeu à altura a ameaças sucessivas, muitas delas por omissão expressa da Procuradoria Geral da República (PGR) e da Polícia Federal (PF), encabrestadas pelo extremismo bolsonarista. Nossa frágil democracia neutralizou e desmantelou, sistematicamente, as tentativas de corrosão intraestatal e os ataques antirrepublicanos (sobretudo em janeiro passado), visando implantar, no país, uma autocracia e/ou ditadura militar, policial e miliciana.
A vitória eleitoral da frente pluripartidária liderada por Luiz Inácio Lula da Silva e a debelação dos atos vandálicos nos três Poderes em Brasília atestam que o processo de redemocratização iniciado em 1988, se prossegue aos sobressaltos, encontra-se em pleno vigor, autodemonstrando superioridade em relação a forças políticas, jurídicas e sociais que pretendem destruí-la. Apesar de soluços insistentes do submundo, a sociedade brasileira, desde suas intangíveis e obscuras placas tectônicas, declara-se apreensivamente viva e, não sem produzir espanto, autopropõe-se horizontes de superação para as vicissitudes históricas de sua formação sociocultural, econômica e política.
Glosada a continuidade do aparelhamento do Estado pelo neofascismo, a nova tendência de redemocratização transita para a fase penal e civil: quem concorreu e/ou colaborou para matar – por atuação direta, omissão dolosa e/ou indiferença culposa – brasileiros inocentes no quadriênio 2018-2022 (durante a pandemia, na Amazônia etc.); e quem, já em 2023, depredou o patrimônio público e fustigou caos em prol de golpe de Estado deve ser levado aos tribunais para responder pelos crimes praticados.
A história republicana atual registra moções de aplauso ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vigas institucionais durante ápices de tempestade – e assim precisarão permanecer na travessia inteira, longeva: após participação decisiva no inaceitável casuísmo de 2016 e na trama encarceradora, em 2018, essas instâncias judiciais de Estado foram exemplares na justa intransigência interpretativa e defensora da Constituição Federal contra investidas do bolsonarismo civil e fardado, de patente alta ou não. Obviedades prescindiriam, sem dúvida, de destaque caso sua raridade não comparecesse, ela mesma, como digna de notação, em razão das absurdidades mencionadas.
II
Experiência histórica de contragolpe republicano e dromocrático
Dromoaptidão institucional e destino da democracia
Em particular, a significação sociopolítica dos fatos violentos em Brasília na primeira quinzena de 2023 merece observação aproximada. Essa ocupação em massa do Palácio do Planalto, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do STF – contra o patrimônio público, contra obras de arte e objetos históricos, contra panteão de fotografias, contra o regime republicano, contra a civilização democrática, contra a política em si, contra o tal sistema, contra tudo – confirma que a República estagia em experiência histórica, política e jurídica crucial.
Esse vandalismo, crosta de movimento serpentino e duradouro, não implica somente a lógica instrumental e regular de freios e contrapesos de autopreservação das instituições republicanas e democráticas. Tais âncoras de Estado e governo são acionadas para contenção corretiva de atuações extraconstitucionais ou fora da lei por parte de agentes públicos e/ou por membros da sociedade civil. Diferentemente, os atos depredatórios em Brasília recobram, antes, a lógica da guerra (da guerra campal, guerra de guerrilha ou guerra civil, não importa), no istmo arriscado entre golpe neofascista e contragolpe democrático.
No arco geral desse pêndulo inflamado, os primeiros dias de 2023, instalado o governo eleito, legaram ao Brasil esta “surpresa” cifrada (desde o submundo das redes sociais): a compulsoriedade social-histórica de um contrarrevide dromocrático, clamado na urgência. Dromos, partícula grega para rapidez, locus de corrida e, no limite da coerência semântica, velocidade, ilumina, na alma saudosa e inspiradora de Paul Virilio, o contexto inteiro: o país viveu e, ao que tudo indica, viverá por tempo indeterminado, uma experiência política e ética de contrarresposta institucional imediata, uma necessidade – para dizê-lo mais enfaticamente – de contra-ataque dromocrático como modo estatal de resistência à morte política iminente.
Para efeito desse tenso perímetro, a noção de experiência totaliza, em seu significado prioritário e idiossincrático, a condição sine qua non de enfrentamento do desafio de suplantar, política e institucionalmente, um período periclitante, como forma de garantia multilateral e mínima de sobrevivência coletiva (material e simbólica) sob determinada diretriz ideológica – sobrevivência do regime de governo, do funcionamento regular do Estado e das instituições, da saúde estrutural da economia (no danoso modo de produção vigente), das honras de cargo (espelhando resultados eleitorais), e assim por diante – tudo sem tutelas exógenas e sem deflagração de guerra civil. A um só tempo, essa experiência, além de histórica (e, no caso da coalizão do governo sufragado, inédita), é republicana (na totalidade), dromocrática (em caráter tanto mandatório quanto voluntário) e democrática (por inclinação política, jurídica e ética).
Em contexto crispado de gestão, vê-se, mais claramente, esta obviedade: a função social-histórica e a necessidade político-institucional do vetor articulatório da velocidade, em favor do resguardo paradoxal do establishment – com uma diferença de monta: a de que, no quadriênio 2022-2026, o sinal político se inverteu radicalmente; agora, a responsabilidade governamental pela federação prossegue sob aliança de centro-esquerda – injunção política novamente notável na história brasileira.
Uma sucinta dilatação do panorama contextualiza o ponto fundamental da armadilha positivista em jogo. O recurso estratégico da velocidade já serviu tanto a linhagens imperiais, com armamentos ígneos (mais ágeis em resultados) e forças equinas seladas (mais rápidas em longos deslocamentos), quanto a governos autoritários (mediante prontidão tecnológico-repressiva contra protestos e/ou resposta especializada a urgências seletivas, em prol de relações sociais e de produção iníquas e/ou ideologias da desigualdade (étnica, racial, de gênero etc.).
A bem da precisão, essa instrumentalização dromocrática se subordina a uma dinâmica histórica ainda mais alargada. Sem qualquer garantia de irreversibilidade, o compasso veloz e sinuoso da civilização industrial – seja por exigências endógenas de reciclagem tecnológico-estrutural, seja por pressão imanente de forças políticas que lhe são opostas – faz soluços de extremismo necropolítico não vingarem dinastias a fio. Ditaduras militares na América Latina são, igualmente, exemplos desse processo dromocrático. Historicamente, no Ocidente greco-romano e judaico-cristão, experiências autoritárias na política demoravam séculos; há pouco, duraram décadas; hoje, seus ensaios têm durado anos. O ex-hóspede do Palácio do Planalto, rejeitado por sufrágio em outubro de 2022, mimetizou Donald Trump: mandato restrito a quadriênio – e só. (De par com o ex-presidente norte-americano, o imperfeito plágio bolsonarista há de catalisar, no tempo oportuno e com merecimento indiscutível, os respectivos transtornos judiciários e policiais.)
Com raridade factual, historiográfica e mediática, a primeira quinzena de 2023 no Brasil – este o ponto fundamental aludido – testemunharam a mobilização da velocidade por uma administração federal preocupada com indígenas, negros, mulheres, pobres e periféricos, em nome da manutenção do ordenamento constitucional pós-1988 e, portanto, das instituições republicano-democráticas e dos direitos humanos, civis e sociais. Essa dromoaptidão governamental foi seguida de perto pela dromoaptidão civil da sociedade organizada: um sem-número de reações indignadas contra a tentativa de golpe e de moções de apoio ao Estado de Direito por parte de agremiações políticas, movimentos sociais, sindicatos e associações de classe, entidades acadêmicas, e assim por diante.
No todo, essa contrarreação republicana constituiu exímio contragolpe dromocrático. Em questão de horas, o governo recém-eleito, por estratégia do Ministério da Justiça, traçou a deglutição progressiva do terror bolsonarista e de sua tentativa de reversão eleitoral no tacape. A recusa institucional a ser refém das Forças Armadas ocorreu mediante opção pela intervenção federal na Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, em vez da aplicação de medida constitucional mais severa, a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que exigiria mobilização temporária das mencionadas Forças, ainda atravessadas pela ideologia bolsonarista.
A velocidade de contragolpe, aplainando o território da disputa, reduziu, no quanto possível, o tempo de abalo funcional e operacional das instituições de Estado e de governo, salvaguardando o que ainda resta (e não é pouco) da democracia no país. Não sem surpresas e salvo exceções (que o alinhamento bolsonarista explica), vários meios de comunicação corporativos e conservadores (de massa e digitais) operaram como se, no plano formal do discurso, tivessem fechado acordo de ressonância positiva (e quase unânime) a respeito.
Essas relações umbilicais entre política, comunicação e velocidade, no que implicam a tensão entre neofascismo e democracia, esparramaram-se, aliás, na sequência estrutural do próprio acontecimento: tempo de preparação neofascista orquestrada e ambientada nas redes sociais; efetivação vandálica, por cerca de três horas, nos três Poderes, com transmissão em live e online; e velocidade de contragolpe republicano, espalhada na visibilidade multimediática do mundo inteiro.
A severa inquietude das ocorrências em períodos como esse desdobra-se, de modo unificado, como aceleração factual e noticiária. Incomum atmosfera de frenesi, ela destoa do reino mercantil e regular da informação, diuturnamente marcado pela mesmice narrativa – reino há muito corroído por fake news e por alta desvalorização da precisão dos dados. Em espuma sígnica nervosa, o pestanejo num dia malbarata o fio da meada.
Esse horizonte governamental – de contragolpe dromoapto institucionalmente qualificado, vale dizer, de dignidade sobrevivente e de sensibilidade em relação às “margens” da sociedade – foi, na verdade, o que sobrou para a oposição estrutural ocupar depois que a dialética resolveu cochilar no aposento central das possibilidades históricas. Essa condição pode ser apreendida pelo pomo de uma célebre contradição. Mais de 200 anos depois da Revolução Francesa, as vertentes políticas do espectro de direita, no contexto da disputa de poderes, dispõem, em geral, ao seu favor, da quase totalidade da organização material e conveniente das relações de produção.
As vertentes de esquerda, por sua vez, têm, ao seu lado, a potência utópica de superação desse modelo histórico de materialidade social (multicapitalista). Na impossibilidade de realização dessa vocação teleológica, os segmentos de oposição ao establishment pactuam, ao menos, o direito e o compromisso de administrar o Estado e a vida coletiva na perspectiva da distribuição equânime da riqueza econômica e da máxima redução das desigualdades (sejam elas quais forem).
Nessa alternativa, o espectro de esquerda, cumprindo ideário moderado de uma social-democracia, não deixa de comandar, de forma conservantista, o rumo do patrimônio institucional politicamente herdado – o que, para todos os efeitos, constitui responsabilidade e desafio históricos vultuosos. Eis a razão pela qual a fantasmagoria que o reacionarismo de extrema direita encara como perigo enquadra-se, no fundo, na cláusula do comunismo imaginário. As vertentes moderadas da direita, comprometidas com a defesa do Estado de Direito, precisam ter a hombridade de agradecer às administrações de Lula e Dilma.
A velocidade, universalmente instrumentalizada pelo Estado e pelo capital para matar e constranger, jamais deve cegar – vale a ênfase – para o reconhecimento factual de que, quando matriciada a contrapelo de sua natureza (ligada ao campo bélico ou a suas injunções estratégicas, logísticas e táticas), também salva vidas, protege instituições, garante conquistas e alenta futuros.
Pela primeira vez, após a instauração do modelo republicano de Estado no Brasil, em 1889, uma coalizão de centro-esquerda conjugou oportunidade histórica e intrepidez política para inscrever tal providência na história nacional. Ela traduz significativa contribuição à intensificação da blindagem do regime democrático e ao avanço da consolidação da República, que está longe de ter completado missão no país.
A rigor e em regra, o espectro de centro-esquerda, como celeiro federal de políticas públicas – do Poder Executivo ao Parlamento, no período de 2002 a 2016 –, havia mobilizado o recurso estratégico da velocidade diante de demandas de categorias socioeconômicas e/ou profissionais, de necessidades imediatas de superação da fome, reparação de danos e contenção de riscos após catástrofes naturais e tragédias sociais, de apaziguamento do mercado financeiro e de regularização do câmbio, entre outras circunstâncias.
Certamente, os bastidores da política pragmática patenteiam, sem hesitação, que o aprendizado dromológico dessa aliança progressista, formado sobretudo em períodos irruptivos de conflito (como os de 2013 e de 2016), ajuizou a operação bem-sucedida no início de 2023. Esse aprendizado incorpora, aliás, aparente paradoxo, fruto da sorte histórica. A tensão típica do jogo bipolar extremado acabou concedendo trunfo oportuno à coalizão: com um Congresso Nacional de difícil cerzidura para garantia mínima de governança satisfatória, a depredação massificada em edifícios dos três Poderes distribuiu, por um lado, a fortuna histórica para o Estado de Direito e para o governo federal e, por outro, os escombros políticos para o neofascismo.
Era tudo o que, nas entrelinhas das imprevisibilidades malquistas, a aliança de centro-esquerda “precisava” (aspas à fatalidade) para acelerar, com legitimidade, seu fortalecimento perante todas as instâncias de Estado e tonificar a mensagem de que governará para mais de 215 milhões de brasileiros, incluindo eventualmente quem, eleitor bolsonarista, não concorda com vandalismo e terrorismo. Por ângulo diverso, os atos depredatórios, colando ao bolsonarismo pauta mediático-negativa duradoura, reunificaram, à luz da Constituição Federal e em favor das forças democráticas, parte do país que evitou eleger o governo em vigor. Em razão do vandalismo, a sociedade brasileira, por suas instituições republicanas, deglutiu um pouco mais o bolsonarismo, seu caudilho estapafúrdio e o potencial eleitoral de ambos (ao menos, neste momento). Milhões de cidadãos que sufragaram o governo atual aguardam que o cerco democrático-institucional sobre a extrema direita alcance, com rigor, todos os implicados.
O domínio político da velocidade, na forma definida de uma dromoaptidão institucional com vocação a premências obscuras, veio – tanto mais agora – para ficar no espectro democrático das esquerdas do país, e isto para desbaratar sabotagens em processo e antecipar cenários com potencial golpista. O domínio da velocidade (e de seus tempos ou ciclos internos) é a alma elementar da supremacia política – para o bem e/ou para o mal, sejam quais forem as implicações e desdobramentos.
A veemente disposição de vitória em atmosfera de disputa polarizada aplaina equivalência de fatores capitais em perímetros relativamente conhecidos: para mal dos pesares infernais, a competente instrumentalização estratégica da velocidade envolve doravante – e sempre o fará – o destino da própria democracia. Em diapasão mais amplo e invertido, a democracia – como dinâmica estrutural de Estado, regime de governo, processo civilizatório e valor universal – necessitará, ampla e continuamente, da velocidade, tal como representada por práticas dromoaptas federalmente segmentadas, especialmente as do aparato de inteligência e segurança antigolpista.
Mais ainda, absurdos regressivos da necropolítica neofascista, arrastando seu contraponto igualmente para a extremidade, alicerçaram (e vêm justificando) este desconcertante paradoxo macroestrutural: a democracia, em nome de sua sobrevivência histórica – aliás, na América Latina como em outras partes do mundo, assediadas constantemente por ameaças ultraconservadoras –, vê-se, assim, obrigada a se converter numa dromocracia republicana estável e resistente, e isto sob o protagonismo de ideologias com passado de salutar criticidade em relação aos limites político-econômicos do próprio regime democrático.
Escaldado, em 2016, por um golpe tripartite (parlamentar, judiciário e executivo, com participação militar discreta), o sistema governamental de centro-esquerda no Brasil, como em várias nações de democracia tênue, autodemonstra que, em matéria de proteção à saúde republicana, a permanência em alerta, como pauta reconstrutiva, constitui obrigatoriedade 24/7 de Estado. Paranoia institucional zero: trata-se de normalização necessária do planejamento estratégico, da organização tática e da antecipação operacional. Por razões justificadas: a fraqueza institucional vinculada a agudas crises políticas grita com mais autenticidade a veracidade da democracia; e os momentos em que ela se mostra mais forte – naqueles em que ela se julga à boa sombra, livre de ameaças – também se misturam com a expressão pantanosa e velada de sua maior vulnerabilidade.
Independentemente de o aparato de segurança das instituições republicanas e democráticas, em nome da Constituição Federal de 1988, terem firmado (e continuarem asseverando, para o Brasil como para o mundo) resposta compatível com a prontidão e com o rigor exigido, a polarização política indicia que sua escalada – aquela entre golpe neofascista e contragolpe democrático, com consequências imprevisíveis – deve infelicitar boa parte do quadriênio 2022-2026. Da agropecuária aos negócios urbanos, o fomento renovado do querosene revelou rostidade cada mais virulenta desde a primeira década deste século: o imaginário delirante da horda bolsonarista (dos protoideológos às bolhas subservientes) assimila a coalizão partidária do governo progressista como alinhamento brasileiro ao “comunismo internacional”.
III
A ejeção institucional do neofascismo
Significação social-histórica e política de outubro de 2022
A dromoaptidão institucional de contragolpe republicano robusteceu o sinal político de outubro de 2022, no tocante à longa rota de expansão irreversível do procedimento de ejeção do neofascismo da sociedade brasileira. Independentemente do sucesso do plano no tempo histórico, o ágil contrarrevide democrático, mais que o previsível resultado do pleito três meses antes, foi recado bombástico para o submundo político e para as tendências autoritárias em âmbito estrangeiro.
O peso irônico da evocação metafórica, quando ligada a banalidades da vida social, pode, mesmo fora do registro teórico, oxigenar o embate prático em condições interacionais inóspitas. Embora apresente caráter controverso, o recurso imagético da ejeção (utilizada já no primeiro tópico) tem claro atrativo político (e também idiossincrático, sem penalização do humor, se se quiser). A remissão, digamos, cênico-pragmática – e que não deixa de enquadrar-se numa imagem dromocrática – sinaliza, com obviedade, pouco tratar-se da ejeção originária, isto é, típica das injunções tecnológicas do contexto aeroviário; a ejeção não foi, no caso, automotivada. Para eventual serventia, valha, de cotejo, o curto ciclo metafórico desta empiria desqualificada: o piloto, ex-inquilino do Palácio do Planalto, ex-paraquedista de carreira militar, imperito antes blindado por foro privilegiado, bem como a tripulação, os passageiros suspeitos e, na extensa gôndola, a horda oficial em solo foram lançados para fora da carcaça sistêmica que “legaram” após corrosão completa do aparelho de Estado. O tal “rodízio” de vertentes políticas distintas nesse aparelho, quando acerta em cheio o neofascismo, chama-se – como já aludido – expulsão, com o regozijo da justiça reparadora e restaurativa.
Em escala histórica, esse expurgo institucional compulsório (jamais à revelia) não descartou o sarcasmo tão usado por bolsonaristas: concentrando celeridade, a extrusão foi dromocrática. Evidentemente, ela haveria de fustigar, como contrarresposta autoritária, a corruptela pretensamente plagiadora do Capitólio norte-americano, violentamente atacado durante cerca de quatro horas, em 6 de janeiro de 2021, pela turba extremista local.
Ressalvas ao processo de despejo, se existem, implicam evidências incontornáveis por ora. O curto período de governança da coalizão de centro-esquerda, a partir do início de 2023, faz obviamente inconclusa a mencionada ejeção. Os atos depredatórios em Brasília trouxeram à tona o quanto a tecnocracia administrativa e de segurança do Estado está eivada de resiliência bolsonarista. Eles escancararam – e as investigações da PF e inúmeros vídeos o comprovaram – haver, nas entranhas civis e militares de instâncias federais, agentes ostensivos e “espiões” tácitos (remanescentes ou infiltrados, como se queira) em favor da prevalência cavilosa do neofascismo. A governança atual do país – a aliança de centro-esquerda o sabe – assenta-se em território de minas espalhadas.
Em regra, o caráter invisível dessa capilaridade recobra, para além do Estado, o interior da sociedade. Se, por um lado, o resultado da eleição de 2022 não representou mais que a ejeção conservadora (e, portanto, restrita) do extremismo político (partidário ou não), a subjetividade de extrema direita permanece infestando as instituições sociais, em decisiva ação paralela às (mas não desconectadas das) disputas de poderes estatais: nas famílias, nas empresas, nos setores públicos, nas igrejas, nos clubes, nas mesas de debate, nas rodas de conversa, nas trocas digitais etc. A escovação democrática rigorosa do tecido institucional e social será intensificada – espera-se – no compasso do tempo, sem prazo final previsto (e sem êxito total garantido).
Enquanto isso, na visibilidade multimediática, a história presente exibe, com alento semelhante ao da superação de batalha de vida e morte, as derrotas em cadeia impostas ao neofascismo pela articulação progressista de 2022 e pela dromoaptidão de Estado de 2023. Perderam – ao menos, nas urnas – o moralismo olavista (encarniçado desde o final do século passado) e o negacionismo científico (com seu rastro de sangue e asfixia). Perderam a militarização do Estado (e suas investidas troianas sutis), o neopositivismo intervencionista (e seu assédio recorrente às instituições republicanas e democráticas) e o conspiracionismo bolsonarista [com sua catalisação (fardada ou à paisana) em prol de golpes, sabotagens e factoides]. Perderam a financeirização neoliberal (perdurante sob hegemonia do grande capital) e o produtivismo desinformativo (a começar pelo então principal gabinete executivo da República). Perderam o supremacismo (em todas as vertentes: racismo, misoginia, homofobia, ódio contra migrantes etc.), as invasões indiscriminadas e predatórias (como as de Brasília, em 8 de janeiro, espelhando investidas madeireira e garimpeira ilegais em territórios indígenas e quilombolas), e assim por diante. Tentaram, por todos os meios e poros, ideologizar o Brasil com estratégias extremistas de estressamento das instituições, a partir de dentro e fora delas, com pouca economia de sordidez e mentiras em progressão internacional. O final dessa experiência política massivamente perturbadora só não foi totalmente patético porque as cinzas do enterro não foram definitivas.
IV
Oficina geopolítica de elites pós-coloniais insatisfeitas
Critérios pragmáticos de enfrentamento do neofascismo
Os apontamentos anteriores ensejam excurso extra.
O ultradireitismo bolsonarista passou a rondar mais insidiosamente as instituições federais desde, pelo menos, a primeira década deste século; a partir de 2016, decidiu sitiá-las, cada vez mais violentamente, até que, de pressão em pressão, culminou no evento terrorista no Distrito Federal. A rigor, essa escalada começou nas e pelas vísceras do Estado, no rastro da fase conservadora dos movimentos sociais de 2013 e, três anos seguintes, a partir da mesa de uma Vice-Presidência da República, umbilicalmente implicada na deposição da primeira mulher eleita presidenta na história do país e, não por acaso, com visão popular de mundo e governo. Depois, em 2018, a escalada se cumpriu via legitimidade eleitoral, com investimento explícito das Forças Armadas, camuflado dois anos antes. A partir de outubro de 2022, a escalada figurou à margem do resultado oficial de uma eleição hígida: a horda extremista molestou estradas, infestou portas de Quarteis Generais (QG), infernizou ruas, praças e redes; e infelicitou, com mandatos, tribunas e salas parlamentares – tudo sob fomento empresarial graúdo e com baixíssima qualidade (infraconstitucional e antidemocrática) de conteúdo político. O transcurso do tempo, se mensurado à luz da rusticidade voluntária da “guerra cultural” em curso – guerra doravante insuflada por um supremacismo eleitoralmente humilhado –, teima na intensificação ressentida do bolsonarismo (militar, civil e miliciano) em rota potencial de conflagração fratricida.
Quanto mais o quadriênio 2018-2022 se afasta do presente, mais nítido fica o quanto seu diapasão de possibilidades esgarçadas serviu como oficina geopolítica (na perspectiva instrumental e degradada de uma situação experimental oportunista) para elites abastadas. Herdeiras pós-coloniais de privilégios intocados, elas seguem insatisfeitas com o modelo democrático de sociedade extraído das ruínas militares, instaurado a partir de 1985 e regrado por uma das Cartas Magnas mais progressistas do mundo contemporâneo. O caminho jurídico pavimentado a partir de 1988, ao prover rodízio de poder pelo voto direto, interrompeu a reprodução, quer absoluta, quer majoritária, no âmbito do Estado, de representantes dos estratos afluentes, a ponto de trabalhadores e/ou seus representantes, com apoio de organizações sindicais fortalecidas, alcançarem, via processos eleitorais, legitimidade política para regrar rumos sociais, econômicos e culturais à luz de seus paradigmas e interesses. A conquista desse poder de Estado condicionou, por exemplo, razão justa para investigar, em detalhes, crimes e abusos cometidos durante a ditadura militar, como o fez a Comissão da Verdade, no período de maio de 2012 a dezembro de 2014. Como a dialética comparece onde menos se deseja ou se espera, a legitimidade dessa envergadura governamental constituiu o pomo pretextado para reação uníssona (civil e, oclusamente, militar) contra a intenção de transparência da coalizão de centro-esquerda liderada pela então presidenta Dilma Rousseff. Na contramão de todos os pendores venais e contemporizadores, os avanços investigativos e a produção de provas realizados pela Comissão da Verdade permanecem, ainda – injustamente –, aquém de sua relevância histórica e da atenção pública merecida: eles se ligam a uma coragem institucional, política e ética que, pressionando feridas precisas, temores graúdos de direita tomaram como bronco álibi para alentar tendências multilaterais em favor do golpe de 2016. Eis que, na oficina geopolítica mencionada, a incursão militar na cúpula do Poder Executivo em 2018 – via dorso civil de um carisma populista insipiente –, bem como o quadriênio subsequente (cujo conteúdo, no todo, se hipostasiou no terror de 8 de janeiro) urdiram soluços visando descontinuar o processo histórico de efetivação dos princípios e mandamentos da Constituição Federal de 1988, doa a quem doer.
Distanciada do dever de análise a queima-roupa, a historiografia progressista certamente estará em melhores condições, no futuro, para confirmar que 2022 foi, de fato, um dos anos eleitorais mais cruciais do Brasil republicano, quer pela esperança de recuperação da saúde mental da população (em patamares suportáveis relativamente ao surrealismo político vivido), quer em prol da reconstrução socioeconômica do país na direção de seu reposicionamento no cenário mundial.
Esse caminho envolve rol mínimo de critérios pragmáticos, sob todas as incertezas correntes. O embate de longo prazo contra o neofascismo exige investimento urgente, permanente e expandido em educação (em todos os níveis e contextos, dentro e fora das instituições escolares e universitárias); planejamento nacional de desenvolvimento econômico, com foco prioritário em ranqueamento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH); combate incansável a todas as formas de desigualdade e violência (a começar por aquelas baseadas em etnia, raça e gênero, que vitima indígenas, negros e mulheres); e desidratação política, mediática e moral de lideranças autoritárias, negando-lhes o empoderamento que cacifa potência eleitoral. No que tange especialmente à questão ética, a exigência dessa preocupação pragmática deve obrigatoriamente se subordinar à defesa da democracia como conquista histórica, institucional e popular e como valor universal e irreversível.
Passem anos, oxalá as instituições republicanas brasileiras, aprendendo com experiências pregressas amargas, atinjam o ponto ótimo de rechaçar, por tempo indeterminado, qualquer tendência antirrepublicana e antidemocrática de Estado, com seus tiranetes infames, serviçais voluntários e séquitos enfeitiçados.
Eugênio Trivinho é Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.