O exílio em James Joyce e a ética lacaniana do sujeito falante

O exílio em James Joyce e a ética lacaniana do sujeito falante
O autor irlandês James Joyce, o exilado da língua que inventa outra língua (Foto: Encyclopedia Britannica)

 

Como ler James Joyce a partir da ética lacaniana? O que, na leitura de Joyce, ajudaria a pensar o trauma da incidência da língua e a questão desconcertante de sermos falantes e exilados? O autor inventou uma língua própria, ensinando sobre aquilo que nos atravessa e escapa, que nos torna seres que vivem sempre fora de uma suposta terra natal originária.

Joyce se identificou inteiramente com seu sintoma de escrever e sustentou o seu exílio – uma espécie de tremor e desvario – a partir daí. Para Lacan, Joyce é a própria encarnação do sintoma. Prova disso é Finnegans wake (1939), texto ilegível que levou 17 anos para ser escrito. Joyce esperava da escrita a revelação, e viveu completamente imantado por essa questão: uma escrita radical e única, que inventa uma língua e um país próprios.

“Joyce, o sintoma” – ou sinthoma – é um seminário de Lacan proferido nos anos 1975-1976. Nos vídeos das lições pode-se sentir como, também para ele, entregar a palavra é da ordem da revelação. Para Lacan, o analista não deve falar em público como um professor que se apresenta com um saber já constituído, pelo contrário, deve se deixar conduzir pelo não-saber, exatamente como procede no consultório. Essa posição implica a coragem do lapso e do ruído. Uma certa forma de exílio também.

 

James Joyce escreveu na
língua do opressor, pois a
Irlanda estava sob a
dominação do Império
Britânico, por um lado, e
– assim dizia ele – da
Igreja Católica Apostólica
Romana por outro.

 

 

No entanto, a escrita na língua do opressor se deu de maneira que esta deixou de existir para dar lugar à língua poética em que Joyce afirma que, se Dublin fosse destruída, poderia ser inteiramente reconstruída a partir da sua obra.

O escritor se valeu “do exílio, da astúcia e do silêncio” para produzir sua catedral de prosa e, com ela, se opor à Irlanda de que não gostava para ser aceito e cultuado pelos irlandeses: uma condição paradoxal que estrutura algo desse estar sempre em exílio, o pertencer a lugar nenhum.

O que interessou a Lacan foi o tratamento dado por Joyce ao texto. Há algo de ilegível na escrita, há lapso no que se lê. Vejamos o que Lacan antecipara no Seminário 20:

(…) vocês podem ler Joyce, por exemplo. Então vocês verão como isso começou a se produzir. Vocês verão que a linguagem se aperfeiçoa e sabe brincar, sabe brincar com a escrita. Joyce, eu admito que ele não seja legível (…)

É a partir desse ponto que Lacan se debruça sobre a obra de Joyce, o exilado da língua que inventa outra língua. Essa dimensão do lapso, e disso que mais se enuncia do que se anuncia na palavra, é o exercício abismal de ler Joyce com Lacan: um solo para uma queda, um desabar tamanha a vertigem, a própria epifania encarnada no exercício de ir de uma a outra língua.

Vemos aqui um dos elementos essenciais: o som emitido pela fala. Eis algo que ajuda a clarear, para Joyce, a questão do exílio na língua, ideia trabalhada pelo escritor desde muito cedo, como uma marca de estilo. O som vem de um sujeito que fala e fala-se sempre também em nome de algo inominável. Fala-se para buscar o sentido lá onde ele escapa. Fala-se para eliminar o sentido prévio herdado, para estraçalhar a linguagem e invocar o impensável. Fala-se para poder fazer delirar todas as vozes que nos habitam.

 

 

E essa dimensão do som
aparece na obra de Joyce,
fazendo a palavra delirar,
tirando dela o que se ouve
mais do que o que se lê, ou
até mesmo tirando dela o
que se lê em uma dimensão
de puro exílio.

 

 

Joyce foi central para Lacan, sobretudo no “Seminário 23: o sinthoma”, em que o psicanalista desenvolve uma noção de corpo que não se sustenta sobre a imagem do corpo próprio, mas sobre um procedimento de escrita que implica sempre a produção de um resto, um excedente que não encontra representação e é marcado pela estranheza – como na discussão entre Stephen Dedalus, o alter ego de Joyce, com seus colegas de escola, a respeito de quem seria, para ele, o maior escritor.

Stephen insiste em defender a figura de Lord Byron,  mas é retrucado pelos colegas, com a acusação de que Byron teria sido herege e também imoral. A certa altura da discussão, o próprio Stephen é acusado de ser herege e leva golpes de bastão para admitir que Byron não valia nada. Mais adiante, numa reflexão sobre o mistério da Santíssima Trindade e das imagens do Pai, do Filho e do Espírito Santo sugeridas nos livros de devoção, Stephen irá se questionar sobre sua falta de convicção em acolher as paixões do amor e do ódio: ele pode ver sua raiva se destacar do seu corpo, como “a casca de uma fruta madura”. Algo aí desliza, escorrega para fora da cena, para um outro lugar. E é Joyce quem assinala essa condição desviante e do fora:

Não servirei aquilo em que não acredito mais, quer isso se chame minha família, minha terra natal ou minha Igreja; e procurarei me expressar por meio de uma certa forma de vida ou de arte tão livremente quanto possa e totalmente quanto possa, usando em minha defesa as únicas armas que me permito usar – o silêncio, o exílio e a astúcia.

O modo como  ele responde a nação é através do caminho do exílio, que não é um rompimento definitivo com a nação, mas uma escolha em habitar o seu exterior. O que fica evidente na obra de Joyce é o fascínio pela heresia, que permite com que ele encontre um modo de neutralizar e ao mesmo tempo usufruir da chamada língua dos invasores, a língua inglesa.

A substância que Joyce utiliza é a da escrita: uma escrita que mobiliza “efeitos de furo” na medida em que dá lugar para as significações fora de sentido, acentuando o impossível ao nível da língua. A referência à assonância como forma de abordar o objeto pela via do som, e não do sentido, está presente na sua obra como marcador de indexação de uma experiência corporal. A descrição dos efeitos da palmatória sobre o corpo, por exemplo, também parecem ser da ordem do “deixar cair”: suas mãos trêmulas se encolhem “como uma folha exposta ao fogo”, ou se desprendem “como uma folha solta no ar”, uma experiência radical que parece querer demonstrar justamente a condição primeira da palavra: a do exílio.

Bianca Coutinho Dias é psicanalista e crítica de arte.


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