Eu sei lá: nota sobre as forças selvagens da inteligência

Eu sei lá: nota sobre as forças selvagens da inteligência
Série 'Sunday novels' de fotos de Jürgen Klauke / Divulgação

1. Intelectuais e farsantes amiúde se confundem. Sinal dos tempos, gritos se tornam equivalentes a ênfases, ataques passam a valer como expressão de individualidade, e a retórica mais rude toma ares de argumentação. A confusão não é nova, sendo quase natural. Afinal, a inteligência parece poder alimentar tanto a reflexão quanto o canalha, até porque, contra toda aparência, inteligências há de diversa natureza.

Pior ainda. A quase todos a inteligência parece ser da ordem das coisas cítricas, e não naturalmente doce; seria em geral áspera e raramente acolhedora. E o lugar-comum da tradição nos faz mesmo julgar tolo o otimista e profundo o pessimista, como se a vocação natural da razão fosse o negativo, a destruição, e estivesse, portanto, o esclarecimento condenado a ser talhado em penumbra.

Ao contrário, por tolice convicta ou por experiência bem assentada, penso que a inteligência pode ser acolhedora, expansiva. O indivíduo arguto não precisa ser quem prefere sempre a ironia à crítica. Se verdadeiramente arguto, não precisa preferir a cizânia à concórdia, a vitória ao consenso, a persuasão ao convencimento.

E chego a guardar a lembrança viva de amigos assim, muitíssimo inteligentes. Minha tristeza mais íntima é quase todos eles terem morrido. Porém, ao encontrá-los outrora, eles pareciam mesmo felizes em me ver, como se, ao me olharem fixamente, escolhessem de mim o que poderia haver de melhor. Amigos que, em vez de lamentar o peso da existência, como o fazem alguns cínicos, saudavam, com alma lírica, sua força instigante, seu permanente desafio.

2. Desde 1985, tenho ministrado cursos de lógica simbólica e cursos introdutórios de lógica e argumentação. Como um exercício de boas-vindas no curso mais introdutório, costumo servir-me, quase por superstição, do problema do chapéu do cego, como um modo de abrir os caminhos e afastar o mau agouro. O problema tem uma formulação clássica com Irving Copi em Introdução à Lógica:

De três prisioneiros que estavam num certo cárcere, um tinha visão normal, o segundo era caolho e o terceiro era totalmente cego. Os três eram, pelo menos, de inteligência média. O carcereiro disse aos prisioneiros que, de um jogo de três chapéus brancos e dois vermelhos, escolheria três e colocá-los-ia em suas cabeças. Cada um deles estava proibido de ver a cor do chapéu que tinha em sua própria cabeça.

Reunindo-os, o carcereiro ofereceu a liberdade ao prisioneiro com visão normal, se fosse capaz de dizer a cor do chapéu que tinha na cabeça. O prisioneiro confessou que não podia dizer. A seguir, o carcereiro ofereceu a liberdade ao prisioneiro que tinha um só olho, na condição de que dissesse a cor do seu chapéu. O caolho confessou que também não sabia dizê-lo. O carcereiro não se deu ao trabalho de fazer idêntica proposta ao prisioneiro cego, mas, à instância deste, concordou em dar-lhe a mesma oportunidade. O prisioneiro cego abriu, então, um amplo sorriso e disse:

“Não necessito da minha vista; pelo que meus amigos com olhos disseram, vejo, claramente, que o meu chapéu é …………..!”

O exemplo sempre me pareceu propício para ilustrar distinções importantes, como entre argumento e inferência, demonstração e heurística, verdade e validade, enunciados e modalidades. Também é excelente para contrapor o sensível ao inteligível, os fatos à lógica, como se, por meio dele, nos elevássemos da experiência mais trivial, direta e contingente a uma experiência outra, organizada e mediada por inferências e laços necessários. O exemplo e a explicação são triviais, mas servem bem, quase como uma caricatura, também para ilustrar meu ponto neste texto acerca de uma característica renitente da inteligência selvagem, a que a faz resistir ou mesmo a torna incapaz de aceitar e produzir a alteridade.

É óbvio que o chapéu é branco. Pelo menos, isso logo fica claro após alguma explicação. Entretanto, a obviedade de ser branco o chapéu, mesmo após a explicação do problema, costuma causar algum embaraço, alguma dificuldade. Com o passar do tempo, no esforço de explicar a solução, tornou-se cristalina a fonte da dificuldade, que nada tem a ver com ser ou não ser inteligente, pois se trata tão somente de uma incapacidade inicial, em alguns bastante consolidada, de pensar com o pensamento alheio.

Com efeito, a pista essencial para a solução do problema está na informação de que os três prisioneiros seriam todos eles inteligentes. Ora, em sendo assim, o primeiro prisioneiro não acertou por não se dar para ele a única circunstância em que, sem qualquer chute, ele poderia determinar a cor de seu próprio chapéu, a saber, ele não viu dois chapéus vermelhos. Se tivesse visto dois chapéus vermelhos, logicamente, poderia afirmar que seu chapéu era branco. Um salto inferencial é dado, um passo gigantesco e automático (que não se enuncia como uma proposição adicional), quando supomos que, diante dos dois chapéus vermelhos, o prisioneiro de visão normal, sem pestanejar, teria por óbvio, por subjetiva e objetivamente claro, que seu chapéu só poderia ser branco.

O segundo passo, porém, igualmente simples, não é dado com facilidade pelos alunos, parecendo ainda mais significativo, embora em verdade não apresente dificuldade formal de maior monta, devendo ser igualmente óbvio. Ocorre apenas que os estudantes tendem simplesmente a começar de novo, ignorando que o caolho (que obviamente também podia ver os dois chapéus dos outros prisioneiros) já contava com a impossibilidade de acertar do primeiro prisioneiro. Ora, o caolho não pôde dizer a cor do próprio chapéu, pois não se davam as seguintes situações: 1) ele não via dois chapéus vermelhos, repetindo a lógica anterior; mas também 2) ele via que o chapéu do cego não era vermelho, porquanto, nesse caso, sendo vermelho o chapéu do cego, o seu próprio teria que ser branco, uma vez que o prisioneiro de visão normal, que não era burro, não conseguira acertar.

O cego não via nada mas já via tudo, ou melhor, via com os outros, com os olhos alheios. Mais ainda, ele pensa com o pensamento do outro. Ele não acrescenta assim informação nova, pois não poderia fazê-lo, mas vê claramente, com os olhos da razão, ou seja, com pensamento dos outros, que concluíram por ele que seu chapéu só podia ser branco. Para a descoberta da solução, não se exige um aparato formal mais sofisticado, uma estrutura argumentativa mais poderosa ou um raciocínio, digamos, mais inteligente, mas sim, pura e simplesmente, um deslocamento do olhar. Eis, pois, na reiterada dificuldade de pessoas bastante inteligentes terem clareza de uma solução, de resto, tão fácil, o ponto exato que o exemplo dos chapéus ajuda bem a ilustrar, a saber, nossa dificuldade de pensar com o pensamento do outro. O outro, nessa e em muitas situações, é como que um nosso ponto cego.

3. As falácias não-formais, acredito, têm sua força retórica na destruição, não simplesmente do outro, mas das condições de um diálogo desimpedido. Poderíamos imaginar que seriam empregadas com frequência na publicidade e na política, sendo rara sua ocorrência, digamos, no solo fecundo das universidades. Falácias, afinal, além de agredirem a razão, são mais fundamente exemplos de infrações às condições ideais da argumentação, que supõem: (i) a igualdade de direitos de quantos argumentem; (ii) a igualdade potencial de compreensão; (iii) o reconhecimento da alteridade potencial ou efetiva; e (iv) a crença comum na eficácia da linguagem.

Esse modelo ideal de uma argumentação passível de ser aceita por um auditório universal conjuga o normativo da igualdade ao cognitivo da possibilidade de compreensão, que, todavia, não se encerra em algum mérito pressuposto, mas depende do aspecto político da aceitação da alteridade e do trabalho de constituição de espaços em que ela possa se expressar sem peias, além de um decisivo e difícil componente pragmático, qual seja, o de confiar na linguagem, o de voltar sempre a argumentar, quando outros meios pareceriam mais fáceis e mais diretos.

De todas as cláusulas, creio, a mais difícil é a implicada na construção de espaços públicos democráticos, ou seja, o necessário reconhecimento da alteridade, acompanhado do trabalho para que essa mesma alteridade se expresse da melhor forma possível. De todas as cláusulas, pois, para o pensamento mesmo, essa é a mais difícil. Por isso mesmo, prosperam nos ambientes acadêmicos e científicos, nos quais, por diversas razões, é igualmente difícil chegar à ideia de que o pensamento, quando profundo, envolve uma abertura e, além disso, não seria sequer possível se fosse pensado como um diálogo da alma consigo mesma. O outro e o mundo, afinal de contas, nos internalizam os critérios por que se fixam as significações.

4. Temos dificuldade sim com a alteridade, que é o maior desafio à amizade e o maior teste à inteligência. Isso é deveras óbvio e se entranha na linguagem da forma mais sutil. Por exemplo, da dificuldade de estar no lugar do outro resulta a força negativa da expressão “Eu sei lá!”. Afinal, ao ‘eu’ associa-se o ‘cá’, o ‘aqui’, enquanto ao ‘tu’ e ao ‘ele’ se pegam o ‘ali’ e o ‘lá’, entre outras. Entram com força pronominal o ‘aqui’ e o ‘ali’ em “Aqui é bom para banhos de mar, mas ali é péssimo”. Eu não posso deslocar-me naturalmente para o lugar do outro, não podendo saber o que é estar lá ou acolá. Ao contrário, o outro é o centro, sendo maior a opacidade de nós a nós mesmos. Deveria ser mais natural dizer: “Ihnen geht es gut. Aber wie geht es mir?”

Se temos dificuldade com a alteridade, temos dificuldade com a cultura. Meu orientador e amigo Arley Moreno, em uma entrevista à RTV-Unicamp (maio, 2016), declara um escândalo óbvio: “A ideia de solidariedade, de colaboração, não é uma ideia natural. É uma conquista.” A fala de Arley Moreno assusta. É a fala de quem, sendo filósofo, obrigou-se a amargar a vida da universidade, inclusive pelo ângulo da gestão, assistindo e enfrentando a intolerância da luta produtivista, por exemplo uma luta que vê apenas a pressa, que deveria ser eventual, e não também a paciência do conceito, que deveria ser necessária.

Ameaças claras, inclusive ou sobretudo internas, a Universidade continua a ser uma máquina ideal e no horizonte universalmente valiosa, pois ela, se emperrada por nossos vícios e azeitada por nossos interesses, é determinada mesmo, quero crer, ao fim e ao cabo, por nossos sonhos. A universidade está condenada a ser o lugar da colaboração, mesmo entre os que competem.

A solidariedade é uma tarefa espiritual, a que nos devemos dedicar com afinco, diz Arley. Na verdade, eu sei lá, sim! E só me sei assim, quando há critérios, quando um gesto pode ser linguagem, nascendo sempre de forma pública. “Eu sei lá”, agora enunciada como proposição, como um fato trivial da constituição do indivíduo em uma cultura, mas também como vontade política de explicitar os laços que nos fazem participar de um comum, é uma fórmula que, aceita antes como negação do saber, lembra a dificuldade de constituição do fato da igualdade, que nunca é fato algum, mas nossa permanente promessa. Ou seja, lembra o mistério da construção da cidadania, que tampouco pode ter uma resposta sem qualificativos, do tipo: cidadão é qualquer um.

“Eu sei lá” recompõe um tecido feito de ruínas. A fórmula sempre é qualificada, exatamente para não ocultar restrições. A arma da inteligência cítrica é alguma forma de argumento contra o homem, mais ou menos sofisticado. Toda sociologia, caso não marcada pela filosofia, pode ser uma nota de rodapé a argumentos contra o homem.

A arma de uma inteligência doce, quando em combate, pode ser a redução ao absurdo e nunca a mais simples falácia ad hominem. O outro, mesmo na Universidade, mesmo em ambientes com aparência de pureza, é a via crucis inevitável da inteligência mais sutil; e escrevemos sempre, com afeto ou repulsa, para esse outro que, ao fim e ao cabo, é onde podemos ser. “Eu sei lá”, então, se aceita como uma descrição de fato, descreve o modo por que se perfaz uma cultura e se fixam seus predicados; se afirmada como um projeto, cifra uma aposta no futuro, uma definição do que é por predicados ainda inexistentes. Um gesto cultural autêntico, sempre corajoso e arriscado, traga e traduz negatividades; é uivar para a lua como o faria, com ou sem dores, um cão sem plumas.


JOÃO CARLOS SALLES é reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

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