Algumas reflexões sobre Lacan e o corpo feminino pós-patriarcado

Algumas reflexões sobre Lacan e o corpo feminino pós-patriarcado
Lady Gaga, divulgação

 

É possível distinguir duas concepções diferentes da produção do corpo próprio. O corpo que se destaca de seus objetos, onde ele, por exemplo, se distingue do seio que supostamente o completaria e o corpo que se produz a partir do canibalismo, que é a característica da primeira identificação freudiana ao pai, introduzida por Freud no seu famoso sétimo capítulo de Psicologia das massas e análise do eu. (Para a psicanálise torna-se fundamental estabelecer as condições de alteridade que presidem a experiência subjetiva do próprio corpo. Experiência essa descrita por Freud com o nome de incorporação, Einverliebung). Para Lacan, essa operação se produz precisamente através da entrada do sujeito na linguagem, uma vez que a incorporação converte o real do corpo em corpo habitado pela linguagem ou, seguindo suas palavras, “a linguagem come o real”. (Le sinthome. Seminaire XXIII, Editions du Seuil, 2005.) Todo o movimento lacaniano nos anos de 1970 serviu para marcar que nem tudo do corpo é marcado pela linguagem, ponto de onde surge uma elaboração da feminilidade que não é delimitada pela pontuação fálica.

 

As questões de estilo tornam-se cada vez mais importantes quando as tradições não mais garantem um sentimento de pertencimento e reconhecimento de um lugar no Outro. Alojar-se no Outro não é mais uma condição assegurada pelas relações de filiação. Nada é mais tão incerto do que o ditado “Tal pai, tal filho”. Podemos aqui propor nossa hipótese de que a nomeação paterna, que permitia uma identificação junto à fraternidade, foi substituída por um olhar anônimo. O olho absoluto, tomando o título do psicanalista Gérard Wajcman (L’oeil absolu, Edition Denoël, 2010). A existência era garantida por um lugar no simbólico, hoje ela se sustenta bem mais por um lugar no campo escópico, título de um de meus livros Selfie, logo existo. Ou seja, do ser nomeado ao ser visto. Abre-se, desse modo, uma nova perspectiva para a leitura da teoria freudiana das identificações. Os efeitos imaginários, potencializados pela tecnologia cosmética, avançam na direção de garantir a existência em si, e não a existência garantida pela identificação grupal. A cada um, seu estilo de vida.

 

Na década passada, a cantora Lady Gaga causou impacto no público e grande repercussão na mídia ao aparecer vestida com uma roupa feita de carne crua em uma cerimônia de premiação. É precisamente essa nova exposição da roupa e do corpo feminino que me interessa. Aqui, não há mais uma erótica comandada por algum discurso, objeto ou palavra. O mais contundente é que, para além do discurso, há uma nítida evocação do sex appeal bruto dessa carne que recobre a própria carne.

Lady Gaga fotografada por Terry Richardson, para o volume 5 da revista Vogue Hommes Japan.

Aqui percebemos que o corpo cosmético se inscreve em um registro mais além da castração. E o que muda com a passagem do sinal de menos atribuído à castração pelo patriarcado para o objeto a? Se é o falo quem dá um corpo para o gozo, então é ele que instala um regime dialético, binário, que, como significante do desejo, promove a passagem do mundo narcísico ao laço social. (Lacan, “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. Escritos. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998). Porém, quando o objeto a dá corpo ao gozo, sem passar pelos circuitos do desejo, estamos em um regime a-dialético, sem trocas, sem palavras. O parceiro, nesse caso, é reduzido a ser um dealer de objetos para consumo. A cantora Lady Gaga, em um sex appeal nonsense, soube transmitir com humor a destituição da clássica investidura fálica cujo apelo convocava o desejo e campo simbólico.

A referência a Sex appeal do inorgânico, de Mario Perniola, ressoa nesse ponto. No livro, o filósofo e professor de estética da Universidade de Roma parte de uma observação de Walter Benjamin sobre a moda para explorar a intrínseca participação do inorgânico na experiência do corpo como coisa que sente. A moda prova, por meio dos contornos dos tecidos, que o corpo é um objeto-forma e sua conformação imaginária depende dos elementos inorgânicos nele investidos. A menção ao inorgânico é um modo de pôr em relevo a experiência do corpo para além da referência ao falo. O sex appeal do inorgânico pensa o corpo como um “dar-se como coisa que sente e agarrar uma coisa que sente”. Desde aí, o corpo é compreendido como roupa, ou seja, como uma extensão que vestimos. A noção de “look” sintetiza o argumento do autor: “no look, a experiência da roupa como corpo se prolonga, se estende, e se radicaliza na do corpo como roupa: maquiagem, tatuagem, ginástica, hair dressing, dietética, aeróbica, body building, cirurgia plástica e engenharia genética constituem os passos seguintes de um caminho que conduz ao homem quase coisa”. (Perniola, O sex appel do inorgânico. São Paulo: Studio Nobel, 2005).

 

Nesse corpo-roupa, a beleza, o gênero, a idade deixam de importar. O que conta é “a disposição e a atitude de cobrir e serem cobertos, para vestir e serem vestidos, para envolver e serem envolvidos por tecidos carnais, que não têm mais nada de orgânico, que não podem ser diferenciados do vestuário, dos tecidos, das roupas que habitualmente escondem” (idem).  Nessa operação, fica claro como a perda da investidura fálica do corpo é correlata à prótese de objetos a oferecidos no mercado na experiência do próprio corpo. A lógica do mercado presente em tudo o que rege os objetos na trama de conformação do corpo cosmético convoca à seguinte questão: se esse apelo sexual nonsense alimenta um circuito pulsional acéfalo onde o corpo é mais um objeto de consumo, para que serviria o parceiro além de ser possível gozar de partes dele?

 

O último ensino de Lacan nos parece ser concebido precisamente para afrontar essas questões, tão presentes no Século 21. Ou seja, como pensar a psicanálise para além da dialética da castração, do “além do Édipo”, enfim, além do primado do falo simbólico. Para Jacques-Alain Miller, isso somente é possível quando é promovida por Lacan uma disjunção ente castração e interdição. A castração deixa de ser referenciada à lei fálica e passa a indicar simplesmente o fato que há a possibilidade de se fazer uma negação, negação lógica, se pensamos a partir das fórmulas da sexuação do Seminário XX. (Miller, Aula V, curso “A obra de Lacan”, 2 de março de 2011, inédito). Por isso, Lacan é levado a detalhar as separações anatômicas do objeto, extrações naturais do objeto no corpo, precisamente sem a intervenção de um agente que seria o Outro. Trata-se do que ele chama, termo retomado de Freud, separação. Miller chama atenção para o fato de que, ao dissociar a extração do objeto a da castração, Lacan chega a criar um neologismo, a separtição. (Miller, Introdução à leitura do Seminário, Livro 10, A angústia). Não a castração, mas a separação dos objetos, a separação dos órgãos. Ele fala da separtição, para indicar que se trata como de uma partição no interior, que concerne o sujeito do organismo (idem).

Marcelo Veras é psicanalista, psiquiatra e professor. Atualmente é coordenador do Programa de Saúde Mental e Bem-Estar da UFBA. Seu mais recente livro é A morte de si: psicanálise e suicídio (Cult, 2023).

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