Esse voto perverso, estúpido e irracional dos que preferem o outro lado
Nada pior do que explicar fenômenos políticos em chave meramente moral, mas este é um jogo que se adora jogar.
Por que a classe média ainda tende a votar na direita enquanto os pobres tendem a votar na esquerda? A resposta-padrão da esquerda ou da direita é simples: os que votam em nós são moralmente e intelectualmente superiores. Os melhores estão sempre conosco, os piores estão sempre do outro lado, eis a regra geral.
No caso da esquerda, temos a crença disseminada de que a classe média descende diretamente da Casa Grande e que isso explicaria seus valores, sua ideologia, seu voto. Todos. Na extrema-direita, conservadora, vige a tese de que décadas de lavagem cerebral progressista ou secularista produziu esses comportamentos e essas ideias imorais que vicejam entre os liberais. Na direita, sustenta-se a hipótese alternativa de que quase dois séculos de doutrinação anticapitalista levaram aos conceitos automatizados que empurram grupos atrasados e corporativos a votar em propostas antiquadas da esquerda. É sempre um defeito o que motiva os outros, uma falta de conhecimento e de caráter.
Por que o Agro vota em Bolsonaro? Por que os pequenos empresários tendem a não votar em Lula? Por que quem tem educação superior está dividido entre Lula e Bolsonaro? Por que os nordestinos fogem do Mito como o diabo da cruz? Por que os muito ricos votam massivamente em Bolsonaro?
A resposta-padrão, que acalma as consciências, vem quase sempre em chave moral: os maus votam contra nós, por interesses mesquinhos ou por ignorância mesmo, enquanto os espertos, bem informados e moralmente elevados votam por razões e valores em nossos candidatos. O fato é que nós simplesmente não somos iguais a eles, eis algo que não podemos admitir, e só uma falsa simetria leva alguém a nos comparar.
Obviamente, esse modo de pensar não pode estar certo. Se está errado quando eles pensam em mim como um sujeito movido por má-fé ou estupidez que vota do lado dos malvados, é igualmente razoável imaginar que está errado quando a única coisa que vejo de quem vota no outro lado é que é burro ou mal-intencionado.
Observando bem, além disso, vê-se como este modo de pensar é gratificante. Na verdade, ficamos desconcertados, às vezes com raiva, dos segmentos que votam diferentemente de nós. Então, alguém precisa estar muito errado para haver tal discrepância, de forma que ou o problema está em nós ou neles. Para não nos implicar nesse desconforto é que necessitamos de uma razão para explicar a discrepância entre nós e eles que mantenha intacta a nossa convicção de que somos melhores. O problema são os outros.
Para um lado, é muito reconfortante apegar-se à ideia de que quem vota na esquerda tem rabo preso com os privilégios que a esquerda lhe entregou (“mama nas tetas do Estado”, “é sustentando pela Lei Rouanet”), está em conluio com ladrões e pessoas que aparelharam o governo, é ele mesmo corrupto e desviado ou um estúpido e manipulado ignorante. Muito mais tranquilizador que tentar entender honestamente a razão de voto de cada segmento que prefere votar num candidato de centro-esquerda do que no candidato da extrema-direita.
Do mesmo modo, é mais tranquilizante e preguiçoso alimentar a crença de que quem não gosta de Lula ou prefere Bolsonaro é mau, fascista, elitista, um ogro ignorante e motivado por interesses perversos, do que entender sinceramente as razões do antipetismo ou por que se escolhe votar no seu adversário, apesar de tudo o que se sabe dele, apenas para impedir a volta do PT. Nós não podemos ser feios como eles pensam, eles estão errados sobre nós.
Essa lógica segundo a qual “todos os bons já estão do nosso lado e todos os maus estão do lado de lá” tem alguns inconvenientes: transforma em diferenças inconciliáveis o que são apenas distintas preferências, cria e recompensa os radicalismos vez que lhes oferecem justificativas morais para o ódio, alimenta sistemas de retaliações e vingança que prejudicam uma alternância construtiva de poder e, por fim, fragmenta definitivamente a sociedade em lógicas grupais orientadas por sectarismos reciprocamente destrutivos.
Numa democracia saudável, as diferenças são levadas a sério, a diversidade nas preferências políticas não é apenas tolerada, mas admitida como legítima, e submetida ao escrutínio público, todo voto é considerado digno, bom e válido, mesmos aqueles dados ao abominável adversário, porque expressão da soberania popular e de uma consciência livre. Numa democracia, não pode haver voto moralmente bom e voto deplorável; todo voto é igualmente bom porque os cidadãos, enquanto cidadãos, são iguais em dignidade e valor. A não ser que não sejamos democratas sérios, claro.
Numa democracia saudável, é preciso buscar entender que todos os votos são baseados em razões, não sem deficiências e perversões intelectuais e morais, não apenas os nossos.
Entender as razões de voto de cada segmento não apenas é útil para a construção de uma sociedade com mais pontes que abismos, como é também essencial para que se entendam as diferentes necessidades, aspirações, temores e lógicas que constituem um país complexo como o nosso. Para isso, contudo, é preciso sair do conforto moral que nos autoconcedemos e levar a sério o que os outros pensam de nós.
Tentar entender a razão de voto do adversário implica em nos ver com os olhos dele, pelo menos como experimento intelectual. Não significa aceitar, mas entender com honestidade. O que nos expõe, naturalmente. E se ele estiver certo sobre nós de alguma maneira? E se não formos tão melhores quanto achamos que somos? Não é uma atitude para fracos, mas quem disse que a democracia é para os moralmente indolentes e intelectualmente dogmáticos?
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)