Espinosa e a Alemanha
Relegado ao esquecimento, a obra de Espinosa renasce na Alemanha em fins do século 18
Desde o final do século 17 e durante a maior parte do chamado século das Luzes, na Alemanha ou em outros países europeus, o pensamento filosófico de Espinosa foi principalmente objeto de violentos ataques e forte rejeição do que de leituras atentas e justa avaliação crítica. Suas obras foram relegadas à clandestinidade por força da hostilidade da cultura oficial. No tocante à imagem do filósofo, “ateu virtuoso” e “ateu de sistema”, são conhecidas a forte influência exercida sobre todo o Iluminismo europeu pelo artigo -“Spinoza” do Dicionário histórico e crítico (1696-97) de P. Bayle (1647-1706) e pelas biografias de Espinosa de autoria de Colerus (1706) e de Lucas (1719).
Na Alemanha dos últimos 30 anos do século 18, porém, como efetivação de um espaço de discussão aberto pela Aufklärung alemã, a recepção da filosofia de Espinosa sofre novas inflexões a partir das quais o interesse e o posicionamento intelectual e prático diante do pensamento do autor – ser pró ou contra Espinosa – passará a significar, precisamente, escolhas ou opções teóricas características, com conseqüências em todas as esferas da vida intelectual.
QUERELA DO PANTEÍSMO E SPINOZA – RENAISSANCE
Conhecida como Pantheismusstreit (Querela do Panteísmo), uma primeira etapa da recepção de Espinosa teve início com a revelação feita por F. H. Jacobi (1743-1819) a M. Mendelssohn (1729-1786), de que o escritor e dramaturgo G. E. Lessing (1729-1781), pouco antes de morrer, lhe havia confidenciado que se convertera secretamente ao panteísmo de Espinosa. Tal revelação dá início, em 1783, a uma troca de correspondência entre Jacobi e Mendelssohn que é publicada pelo primeiro sob o título Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao sr. M. Mendelssohn (1785). Relatando seus diálogos com Lessing, que afirmara que o filósofo holandês era “um cão morto” para sua época, Jacobi procura mostrar-se um intérprete competente e defensor da filosofia espinosana, rejeitando em parte algumas conclusões particulares, porém admirando o rigor dedutivo e elevação de seu pensamento. Assevera que o caráter metódico e sistemático do espinosismo o torna, quanto à forma, a mais completa e conseqüente doutrina de panteísmo e de racionalismo, e, quanto ao conteúdo, conseqüentemente, um verdadeiro ateísmo.
Mendelssohn, por seu lado, negava a conversão de Lessing e a interpretação de Jacobi, procurando “purificar” o espinosismo do princípio fundamental de identidade entre Deus e mundo, o que lhe garantiria a refutação da acusação de ateísmo a Espinosa, e também a Lessing. A polêmica orientava-se pela discussão em torno das relações entre o espinosismo e o panteísmo, mas desenvolveu-se na direção de um problema mais amplo acerca das relações entre o pensamento filosófico e a religião, entre razão e fé, em que o interesse especulativo se mesclava com interesses de ordem existencial e ética. Essa polêmica divulgação da filosofia de Espinosa deu origem a várias obras e artigos que buscavam ou desprezá-la completamente ou contribuir para uma pretensa compreensão exata do significado da doutrina; dessas discussões participaram direta ou indiretamente filósofos, teólogos e literatos, representantes tanto do último Iluminismo como do nascente Romantismo, tais como J. G. Hamman, F. Schiller, F. Hölderlin, -Novalis e outros.
Esta segunda etapa da recepção da filosofia espinosana na Alemanha ficou conhecida como Spinoza-Renaissance, em razão das tentativas de sua revalorização positiva, embora nem sempre sua obra tenha sido lida e interpretada com adequados métodos históricos e críticos. Significativas foram as contribuições de J. W. von Goethe (1749-1832), J. G. Herder (1744-1803) e F. D. E. Schleiermacher (1768-1834). Goethe, principalmente em correspondência com Jacobi e em obras sobre a filosofia da natureza, recusa-se a ver na filosofia de Espinosa uma forma de ateísmo e acredita que a existência da substância absoluta, Deus, não só é condição das existências singulares, mas está presente em essência nas próprias coisas singulares e é conhecida a partir delas. Porém, limita-se a elaborar uma interpretação naturalista da ontologia de Espinosa, recorrendo ao panteísmo estóico e ao hilozoísmo antigo, de modo a afirmar que o conhecimento de Deus se dá à medida que descobrimos as leis gerais da natureza. Em sua obra Deus: alguns diálogos (1787), Herder procura refutar as qualificações de ateísmo e de ceticismo à filosofia de Espinosa, considerando-o mais “um fanático da existência de Deus”, cuja idéia é a primeira e a última de todas as de seu sistema, à qual se vinculam todo o conhecimento dos mundos natural e humano, as ciências e a consciência de si mesmo, a ética e a política; dessa maneira, Herder busca liberar a filosofia de Espinosa da acusação de panteísmo imanentista e da alegada influência da Cabala judaica, reorientando sua leitura de Espinosa a seus vínculos com a tradição cartesiana. Na mesma direção de Herder, moveu-se por sua vez Schleiermacher, que se posiciona criticamente em face da interpretação de Jacobi nos discursos Sobre a religião (1799).
CRITICISMO E DOGMATISMO: KANT, FICHTE E SCHELLING EM FACE DO ESPINOSISMO
Não se pode esquecer que tanto a Querela do Panteísmo quanto a Spinoza-Renaissance ocorreram simultaneamente, na Alemanha da época, ao desenvolvimento do projeto crítico de I. Kant (1724-1804), cuja obra encontrava-se no centro das disputas filosóficas. Kant quis manter-se relativamente afastado da Querela do Panteísmo, considerando a filosofia espinosana como expressão do dogmatismo metafísico, que elabora uma ontologia antes de examinar as condições de possibilidade de nossas faculdades de conhecer a priori. Na Crítica da razão pura (1781), a sistematização do conhecimento da natureza se fez nos quadros da estrita necessidade e do mecanicismo determinista, próprio da tradição newtoniana, ligando-se ao princípio inovador de que tal conhecimento é condicionado pela estrutura transcendental do sujeito humano, de modo que os predicados, antes atribuídos ontologicamente à natureza, tornam-se agora os modos com os quais a natureza é percebida como fenômeno pelo homem, nos termos da organização estético-intelectual de seu espírito (a sensibilidade geometricamente estruturada e o entendimento lógico e judicativo puro).
Todavia, o problema prático da possibilidade de realização de ações moralmente válidas, segundo um princípio de liberdade, se impõe como contraditório em face deste quadro determinista da razão especulativa, operado pelo entendimento finito. Na Crítica da razão prática (1788), Kant irá reafirmar o contraste entre felicidade sensível e moralidade, erigindo um critério transcendental como critério absoluto de moralidade (imperativo categórico), cuja racionalidade intrínseca define a forma mesma da liberdade como autodeterminação, constituindo o princípio de autonomia do agente moral. Mas isso implicava o reconhecimento de que a liberdade pessoal devia aderir a uma vontade absoluta independente das necessidades naturais, internas ou externas. Na Crítica da faculdade de julgar (1790), Kant procura integrar a visão mecanicista, da primeira Crítica, com uma consideração fundada sobre o sentimento, que punha a natureza em perspectiva de tipo orgânico e teleológico que, embora não mudasse as conclusões alcançadas no campo da gnosiologia acerca do limite fenomênico do saber humano, admitia a possibilidade de uma compreensão diversa da natureza, em que o antagonismo entre necessidade natural e liberdade moral se redimensionava com a hipótese de uma natureza ordenada de maneira tal que seria possível ao homem dar cumprimento à sua destinação moral.
Os antagonismos das posições kantianas, mesmo se internos ao seu sistema, delimitaram os contornos do problema da conciliação entre a causalidade de tipo mecanicista da natureza e a liberdade moral como revelação da coisa-em-si. Às dicotomias do criticismo kantiano, seus sucessores imediatos contrapuseram a capacidade de unificação dos grandes sistemas racionalistas dogmáticos, cujo modelo exemplar de sistematicidade era a filosofia de Espinosa.
De maneira contundente, a obra de Kant ofereceu um delineamento das batalhas a travar entre o dogmatismo e o criticismo, no qual se instalará imediatamente J. G. Fichte (1762-1814). Apontando as limitações e lacunas do sistema de Kant, em particular em sua obra Doutrina-da-ciência (1794), Fichte procurará desenvolver as conseqüências necessárias da filosofia crítica, tendo por horizonte teórico o acabamento sistemático perfeito que entende ter sido alcançado pela obra de Espinosa, visando satisfazer a legítima aspiração dogmática pela manutenção do caráter absoluto do saber, sem implicar necessariamente a exclusão da liberdade. Por não considerar o absoluto substancial uma realidade fora do pensamento subjetivo humano, Fichte procura desenvolver como princípio intrínseco ao eu transcendental puro toda a estrutura da produtividade substancial desenvolvida por Espinosa, de forma que o nosso conhecimento especulativo possa assegurar a conformidade entre pensar e ser, entre idéia e ideado, tal como garantida pela “tese espinosista” da correspondência ou paralelismo entre os dois únicos atributos da substância que conhecemos, pensamento e extensão. Ao conceber o absoluto substancial como intrínseco ao sujeito, Fichte exclui toda realidade estranha ao espírito, logo, toda a possibilidade de uma verdadeira ciência da natureza, conduzindo-o a um idealismo que se sobrepõe ao dogmatismo por implicar uma escolha ditada pela razão prática com vistas a salvar a liberdade, que ele via comprometida ou excluída do sistema de Espinosa, pois, diz Fichte, ele “somente podia pensar a sua filosofia, mas não crer nela”.
O tratamento oposição entre criticismo e dogmatismo orienta os primeiros trabalhos de F. W. J. von Schelling (1775-1854), que procura harmonizá-los por meio de uma dupla via de demonstração da identidade fundamental entre o espírito e a natureza, na tentativa de assegurar ainda espaço para a liberdade dentro da necessidade intrínseca das séries causais apreendidas pelo pensamento no mundo fenomênico da natureza e a sua elevação progressiva a um espírito do mundo. Esse movimento é efetuado com o intento de caracterizar o absoluto intrínseco ao eu espiritual incondicionado e à natureza inteiramente condicionada com os mesmos traços da substância espinosista. O absoluto de Schelling, estruturado sobre a filosofia de Espinosa, não pode ser definido por um conceito, pois enquanto uno e infinito, causa de si e causa imanente de tudo, ele não pode afirmar-se a si próprio senão em um ato de intuição intelectual. Schelling opera uma radical conversão, já esboçada por Fichte, ao transformar a substância espinosana em sujeito absoluto, em sujeito de liberdade tanto na esfera das leis da natureza como na do espírito, que encontrará sua expressão máxima nas obras de arte. Schelling concebe a perfeita unidade do sujeito absoluto divino na própria imediatez do conhecimento finito e, dessa maneira, a identidade mesma que permite pensar o duplo desdobramento do ser absoluto em duas esferas, como espírito e como natureza, fazendo emergir no âmbito finito da natureza a absoluta infinitude do eu substancial. A conciliação entre dogmatismo e criticismo conduz Schelling a converter esse seu idealismo absoluto em realismo absoluto, pois para ele o sujeito-substância é ele próprio o objeto-substância.
As diversas posições assumidas pelos autores mencionados serão objeto de discussão, já no início do século 19, por parte do último grande representante do Idealismo alemão, G. W. F. Hegel (1770-1831), para quem a filosofia de Espinosa como “o momento crucial da filosofia moderna: ou espinosismo ou nenhuma filosofia”. Tal elogio, contudo, não o impediu de projetar a refutação e o ultrapassamento mesmo do espinosismo no interior de seu próprio sistema filosófico. As posições de Hegel em face do espinosismo, no entanto, se articulam com um grau de complexidade impressionante, de maneira que a refutação da filosofia de Espinosa e sua “reintegração” no interior de seu próprio sistema filosófico, acabaram por suscitar, a ele próprio, várias acusações de “espinosismo”.
José Eduardo Marques Baioni
é professor de Filosofia Universidade Federal de São Carlos – UFSCar