Entrevista sobre feminismo para o jornal O Duque
Dei essa entrevista, por escrito, para a Cibele Chacon do Jornal O Duque, do Paraná. Agora compatilho com os leitores desse blog:
Em um artigo, você disse que o poder patriarcal não é apenas um dado histórico, mas um dado arcaico que modela a nossa realidade e que o nosso modo de ver depende dele. Pensando nisso, como você enxerga o papel da mulher na sociedade?
Eu me referia ao patriarcado como lógica profunda que organiza nossas relações em sociedade. Essa lógica implica a afirmação da desigualdade entre pessoas a partir de demarcações sexuais. O que as pessoas chamaram tantas vezes de “papel da mulher” sempre foi uma postura, um conjunto de comportamentos, imposto por essa lógica que servia aos homens e não às mulheres. Na história humana muitas vezes as mulheres tentaram se emancipar dessa lógica enquanto outras não puderam fazer nada porque mudar o jogo de poder no qual estavam inseridas não lhes dizia respeito seja por falta de consciência, seja por acomodação. Além disso, a lógica do patriarcado é insidiosa porque ela foi naturalizada, as pessoas acreditam que as coisas “são assim” pelo simples motivo de que assim parece que são. Ou seja, não se questionam quanto ao motivo dessa “verdade” que precisa ser sempre suspensa entre aspas. Se as pessoas se dão conta dos jogos de poder aos quais estão submetidas, creio que se sintam instigadas a mudar o cenário.
Por que as mulheres são personagens esquecidas da história, principalmente, enquanto pensadoras?
As mulheres nunca foram personagens históricos expressivos em termos numéricos. A elas foi reservado o trabalho doméstico, a reclusão e até a clausura, a vida privada dentro de casa por oposição à vida pública. Esta foi tomada para homens pelos próprios homens que deram a si mesmos a parte mais interessante da história, ou pelo menos a parte do poder. Hoje quando tantas falam em “empoderamento” o que está em jogo é justamente mudar o rumo de uma história inteira. Para que o futuro não seja a repetição de um passado de impossibilidades.
Historicamente, qual pode ter sido a grande motivação masculina para a subjugação da mulher?
Não se trata de uma única motivação, mas de um conjunto sistêmico em que a regra é a dominação das mulheres, por meio de discursos e práticas. Um conjunto de discursos e práticas bem armado em jogos de poder envolvendo diversos sujeitos. De fato, as mulheres ficaram na posição de “objetos” dos “sujeitos” homens. Ao sistema podemos chamar de patriarcado. Ele visa ao poder cuja lógica é a manutenção do próprio poder.
O silêncio feminino sempre foi facilmente observado em todas as esferas sociais e, hoje, percebemos que as mulheres estão ganhando mais voz e lutando pelos direitos que os homens sempre tiveram. O que levou a essa mudança de atitude?
Uma revolução chamada Feminismo. Uma revolução que ainda está em processo. Uma revolução que não tem o objetivo de instaurar um novo poder nos moldes do antigo. O poder na sua forma patriarcal é combatido no feminismo. O feminismo, neste sentido, se constitui como o cerne ativo de um projeto concreto de democracia. O feminismo é o coração e o cérebro, o próprio sistema nervoso da democracia. O que há de curioso no processo democrático, é que o feminismo está por trás de todas as mudanças concernentes a direitos relativos a identidades que conhecemos hoje. O feminismo é a luta, a chave essencial do grande questionamento. Não creio que pudesse existir movimentos gays e LGBT, ou toda a discussão em torno dos direitos muito reivindicados, e ainda pouco atingidos pelas minorias, sem o feminismo.
Você é organizadora do livro “Filosofia, machismos e feminismos”, que fala, entre muitas coisas, sobre o que o discurso e as práticas institucionais querem fazer com o corpo das mulheres. Hoje, a mulher não pode escolher fazer ou não um aborto, ter ou não uma vida sexual mais liberal, pertencer ou não à determinado padrão estético, sem que seja julgada. Por que ela não tem poder sobre o próprio corpo?
Antes desse livro, eu já organizar com outras colegas dois livros: As Mulheres e a Filosofia (UNISINOS, 2002) e Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero (EDUNISC). Este é o terceiro volume produzido coletivamente, desta vez em parceria com Maria de Lourdes Borges (UFSC). Creio que nos encontros que deram origem ao livros, estabelecemos juntas um campo de estudos que é novo no Brasil. Neste livro, de sua parte, vários temas foram retomados, outros são novidade.
Já a questão do corpo nos faz pensar que vivemos sob comando biopolítico. Foucault chamou de “biopoder” justamente ao cálculo que o poder faz sobre a vida e de anátomo-poder ao cálculo sobre o corpo. Podemos dizer que os corpos são calculados pelo poder no contexto do sistema do Capital cujo equivalente é o Patriarcado. Assim, e tanto mais, o das mulheres. Podemos dizer que as mulheres são calculadas pelos dois lados: tanto pelo lado do corpo que leva à maternidade, quanto pelo lugar (ele mesmo construído socialmente) da sensualidade e da sexualidade. O poder sobre o corpo não pode ser concedido às mulheres nesse registro porque assim deixarão de ser objetos servis, de ser escravas, de servir à conservação do “mais do mesmo” que é o poder.
No Brasil, há o mito da maternidade, que espera que toda mulher seja mãe e tenha uma postura natural em relação a isso. Por que esse tipo de sistema moral pesa tanto sobre as mulheres?
O símbolo foi construído na história. Em momentos específicos da história, as mulheres que podiam ter filhos e que tinham a sorte de parir machos, tiveram alguns direitos, como as romanas que conquistaram o divórcio depois de parirem 3 varões saudáveis. A chave de desvendamento das armadilhas contra as mulheres está em perceber sua naturalização. O que parece natural foi construído, mas a naturalização também foi construída porque ela é a garantia de tudo.
Muitas pessoas acham que falar de feminismo é ter o homem como antagonista. Nota-se, no entanto, o desespero e a urgência de muitas mulheres em se enquadrarem nos “padrões” estéticos. Nesse sentido, podemos dizer que essa adequação é um tipo de humilhação e opressão que elas mesmas causam a si, ou também se tem a figura masculina como denominador?
O fato de que as mulheres “queiram” agradar os homens é outra dessas naturalizações. Quem pode garantir que “querem” isso, como se isso fosse de sua “natureza”? Que “natureza” é essa? E que “desejo” é esse? Ora, o desejo é forjado em contextos, coletivamente. As mulheres foram postas no lugar de objetos, criadas desde bebezinhas como “coisas” que deviam comportar-se assim ou assado para agradar, em contextos de total ausência de direitos. Poucas pessoas sabem que as feministas na história lutaram pelos direitos mais básicos, como o de estudar. A sociedade patriarcal é antifeminista – e misógina – e sem esse antifeminismo o poder não se sustenta. As pessoas reproduzem o discurso do patriarcado porque lhes serve ou porque nunca se questionaram sobre ele. O problema é acreditar que as mulheres foram sozinhas autoras desses processos. São vítimas que recebem a “culpa” em um processo altamente falacioso. Sempre recebem a culpa seja da violência simbólica, seja da violência física que sofrem. O feminismo é o combate à regra desse jogo sujo.
A visão de que apenas as mulheres podem ocupar certas posições no mercado de trabalho, principalmente as que não manifestam nenhum tipo de poder, ainda é bastante atual. Desde sempre fomos convencionados a olhar para as mulheres como massas trabalhadoras, seja como faxineiras, lavadeiras, operárias, ou quaisquer outras profissões proletárias e, muitas vezes, nem a percebemos. Essa naturalização é perigosa?
Também esta, como todas as outras naturalizações, mas no caso do trabalho é especialmente grave. Por que o trabalho também foi naturalizado a partir do gênero. E por meio dele se tornou ainda mais aprisionador. Este nexo entre trabalho e gênero serve à manutenção do poder.
Para finalizar, é possível libertar o pensamento do patriarcado?
Creio que este é o desafio de nosso tempo. No caso das filosofas feministas essa tentativa é um verdadeiro dever ético e político.