Rancière: ‘A política tem sempre uma dimensão estética’
O filósofo francês Jacques Rancière (Divulgação)
Para Jacques Rancière, política e arte têm uma origem comum. Em suas obras, o filósofo francês desenvolve uma teoria em torno da “partilha do sensível”, conceito que descreve a formação da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais. A política, para ele, é essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. Por isso, um regime político só pode ser democrático se incentivar a multiplicidade de manifestações dentro da comunidade.
Recém-lançado na França, seu último livro, Le spectateur émancipé (O espectador emancipado – ainda inédito no Brasil), debate a recepção da arte e a importância – ética e política – da posição do espectador. O volume é uma compilação de conferências realizadas por ele nos últimos anos, uma delas no Sesc, em São Paulo. Em 2002, uma de suas principais obras, O mestre ignorante, foi traduzida e distribuída gratuitamente entre professores em formação no Rio de Janeiro. Trata-se da história de Joseph Jacotot, que, no século 19, ensinou a língua francesa a jovens holandeses da classe operária. Detalhe: nem mesmo o professor conhecia o idioma de Zola.
Originalmente discípulo do filósofo marxista Louis Althusser e coautor de Ler O capital, de 1965, Rancière afastou-se do pensamento do mestre nos anos 1970. Rejeitou a ortodoxia marxista da época, mas jamais deixou de se considerar um homem de esquerda. Até se aposentar em 2000, foi professor da Universidade Paris 8, fundada para acolher formas de pensamento que não encotravam espaço no ambiente da Sorbonne. Sua ligação com o Brasil é antiga. Sua esposa, Danielle Ancier, era professora de filosofia na USP em 1968. Eles se conheceram quando ele esteve no país para uma conferência sobre Ler O capital.
O filósofo nos recebeu em seu apartamento no nono arrondissement parisiense. Perto de completar 70 anos, afirma que “o presente não é muito alegre”, mas critica as visões saudosistas de parte da esquerda. Defensor do ativismo social, ele comenta a ascensão dos ecologistas e questiona a ideia de um mundo dominado por imagens. Convidado para um colóquio no Rio de Janeiro pelo Ano da França no Brasil, ele recusou em função de um conflito de agenda, mas concedeu a seguinte entrevista para a CULT.
CULT – Seu último livro, Le spectateur émancipé, menciona o teatro, as artes performáticas, a fotografia, as artes visuais e o cinema, mas não fala de TV. O espectador de TV também é ativo?
Jacques Rancière – No meu livro, eu tentei reinterpretar a relação das pessoas com o espetáculo sem me interessar tanto pela questão das mídias. Mas me centrei mais na ideia, tão comum, de que “agora não há nada mais além da TV… não há mais arte, não há mais cultura, não há mais literatura, nada”.
Há casos em que o espectador está na frente da TV mudando de canal sem prestar atenção ao que está vendo. Eu me preocupei mais com o cinema, as artes plásticas, nos quais uma relação forte do olhar está pressuposta. A TV, de modo geral, não pressupõe um olhar forte, mas um olhar alienado ou distraído.
No espetáculo, o espectador de teatro é levado a trabalhar, porque aquilo que ele tem à sua frente o obriga a um trabalho de síntese. É preciso sair de uma peça, de uma exposição ou do cinema com certa ideia na cabeça, o que não necessariamente é o caso da televisão, em que as coisas podem simplesmente passar.
Já um lugar onde os espectadores se encontram, para as artes performáticas, por exemplo, implica um recorte fechado no tempo. Não é uma questão de suporte, mas do tipo de atitude e de atenção criadas. Podemos nos colocar na frente de um filme de TV com a postura de quem está no cinema. Nesse momento, nós agimos como o espectador de cinema.
O senhor rejeita a ideia de estetização da política que encontramos em Walter Benjamin. Como podemos interpretar a manipulação das sensações dentro do campo político? Por exemplo, o incentivo ao medo do terrorismo, a apresentação de políticos como mercadorias não seriam maneiras de estetizar a relação das pessoas com o poder político?
Penso que a política tem sempre uma dimensão estética, o que é verdade também para o exercício das formas de poder. De certa maneira, não há uma mudança qualitativa entre o discurso em torno do terrorismo hoje e o discurso midiático contra os trabalhadores no século 19, que dizia que os operários contestadores cortavam pessoas em pedaços. Sempre houve, digamos, uma série de discursos organizados pelo poder. Eventualmente, eles serviram como forma de ilustração.
Não há novidade radical. A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos. Para mim, é um dado permanente. É diferente da ideia benjaminiana de que o exercício do poder teria se estetizado num momento específico. Benjamin é sensível às formas e manifestações do Terceiro Reich, mas é preciso dizer que o poder sempre funcionou com manifestações espetaculares, seja na Grécia clássica, seja nas monarquias modernas.
Há um momento em que é preciso distinguir duas coisas: de um lado, a adoção de certas formas espetaculares de mise-en-scène do poder e da comunidade. De outro, a ideia mesma de comunidade. É preciso saber se pensamos a comunidade política simplesmente como um grupo de indivíduos governados por um poder ou se a pensamos como um organismo animado.
Na imaginação das comunidades há sempre esse jogo, essa oscilação entre a representação jurídica e uma representação estética. Mas não creio que se possa definir um momento preciso de estetização da comunidade.
Por exemplo, o nazismo, que é usado frequentemente como exemplo de política estetizada, na verdade também recuperou a estética de seu tempo. Pense nas demostrações dos grupos de ginástica em Praga nos anos 1930. Eram associações apolíticas ou absolutamente democráticas, com a mesma estética que encontramos no nazismo.
Para mim, é preciso tomar distância da ideia de um momento totalitário da história marcado especialmente pela estetização política, como se pudéssemos inscrever isso num momento de anti-história das formas estéticas da política e das formas de espetacularização do poder.
Uma das críticas mais frequentes à arte contemporânea é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte e o que não é. O senhor escreve que, “para que uma maneira de fazer técnica seja qualificada como artística, primeiro é preciso que seu tema o seja”. Como definir a obra de arte ou a arte em si?
Não definimos a obra de arte como “obra”. O que eu digo, no fundo, é que uma forma de arte é sempre ligada à dignidade dos temas.
O romance torna-se grande arte quando a vida de qualquer um se tranforma em arte. A fotografia no cinema não é só uma forma de mostrar o visível, mas mostra que uma cena de rua ou a vida de qualquer pessoa tem direito de ser citada na arte.
A partir do momento em que tudo é representável, não há mais especificidade. A especificidade não será dada, enfim, pela técnica em particular, mas pelos códigos de apresentação. Mais uma vez, não creio que haja uma radicalidade nova.
Há algumas décadas, as análises de Arthur Danto vieram dizer que somente a instituição é quem faz a obra de arte. De certa maneira, isso sempre foi verdadeiro. A “representação da representação” ligada a certo tipo de procedimento ou de instituição sempre foi necessária para identificar uma coisa como pertencente ao universo da arte.
Mas, hoje, mesmo uma grande parte do público questiona o fato de estar vendo “arte”. Não há uma maior distância entre a apresentação e a recepção?
Vivemos hoje em dia a contradição máxima, qualquer coisa pode entrar na esfera da arte. Mais do que nunca, a arte, hoje, se constitui como uma esfera à parte, com as pessoas que a produzem, com as instituições que a fazem circular, seus críticos.
Numa época em que os afrescos de uma igreja eram o que se considerava arte, essa questão simplesmente não se colocava, porque a arte não existia como instituição. É a contradição constitutiva do regime estético.
A última Bienal de São Paulo tinha um andar inteiramente vazio, simbolizando o vazio na arte. Como podemos interpretar esse vazio? O senhor fala do fim da arte utópica. O vazio seria a arte “atópica”?
Podemos fazer o vazio significar várias coisas. Há artistas que organizam retrospectivas de suas obras, e o que vemos? Nada. Há apenas guias que falam. Há muitas possibilidades. Podemos conceber uma exposição sobre o tema do vazio no modernismo duro. Ou então imaginar uma exposição pós-moderna desencantada “mostrando o vazio porque a arte contemporânea é vazia”. Ou ainda criar uma exposição em termos conceituais, em que efetivamente substituímos as obras pelo discurso sobre as obras, e assim por diante.
Mas a verdade é que eu nunca estou muito interessado por esse tipo de estratégia. Se partimos da ideia de que não há nada, é preciso mostrar que não há nada, e mostrar que o que há não vale nada, e assim por diante.
São estratégias eficazes, mas não tão interessantes. Quando não sabemos muito bem como qualificar algo, sempre podemos fazer uso do “vazio”. Eu me lembro da Bienal de Veneza de dois anos atrás, em que havia uma multiplicidade de obras neo-naïf, neoexpressionistas, como iconografia provocante. Há multiplas estratégias.
O senhor critica muitas vezes a separação a priori entre atividade e passividade. Nesse contexto, como analisa as tecnologias colaborativas que estão surgindo na atividade artística?
O que digo não é especialmente ligado à arte colaborativa. Em primeiro lugar, toda atividade comporta também uma posição de espectador. Agimos sempre, também, como espectadores do mundo.
Em segundo lugar, toda posição de espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que desvia o sentido do espetáculo. É minha tese global, que não está ligada só a uma arte interativa.
Todas as obras que se propõem como interativas, de certa maneira, definem as regras do jogo. Então, esse tipo de obra pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está diante do espectador e com a qual ele pode fazer o que bem entender.
Podemos dizer, então, que as obras estão no museu, na galeria, na internet, e o espectador é convidado a colaborar. Mas isso é só mais uma forma de participação, e não necessariamente a mais interessante.
O senhor recupera o lado político da literatura, graças a seu poder de reconfigurar os modos de existência, e evoca a passagem de Aristóteles em que ele diz que o ser humano é político porque possui o logos, ou seja, é capaz de fazer discursos. Hoje, os meios de publicação tradicionais, jornais, editoras etc. estão ameaçados por formas como blogs e redes sociais. Que tipo de mudanças podemos esperar na vida política com essas novas formas?
Isso depende de até que ponto a internet define uma escritura específica. Para mim, na verdade, a internet define essencialmente apenas um modo específico de circulação da informação, que não nega as formas anteriores da escrita. Dá para consultar, numa infinidade de sites, as obras clássicas da literatura e da filosofia, ao mesmo tempo em que existe a linguagem SMS.
Tudo circula, cada vez mais rápido e com mais facilidade: da linguagem minimalista dos SMS aos livros todos, digitalizados pelas grandes bibliotecas. Muitas vezes, recuperam-se livros que não podem mais ser encontrados no papel. Desconfio sempre desse discurso de que o Google vai matar o livro. Não há motivo, porque podemos ler livros no Google.
Para pensar essa questão da política e da literatura na era da internet, precisamos primeiro pensar nas relações entre tipos de mensagem. A internet é, para mim, um suporte que não vem associado a um tipo de mensagem particular. Portanto, não deve causar grandes mudanças.
É diferente do que aconteceu com a chegada do cinema, por exemplo. Podemos constatar que a literatura não tem hoje o papel que tinha no século 19. Apesar do número enorme de romances publicados, poucos são os que remodelam a imagem do indivíduo e da comunidade. Esse papel foi assumido pelo cinema. A literatura oferecia uma capacidade de alargar as formas de percepção do mundo e da comunidade, ela agia sobre a visão e o sentimento de praticamente qualquer um. Hoje, quem faz isso é o cinema, a televisão, a internet.
Até há pouco tempo, havia Bush e Dick Cheney de um lado e, de outro, a Europa como uma espécie de guardiã do “bom senso” na política. Agora, os norte-americanos elegeram Obama e os europeus escolheram Sarkozy e Berlusconi, acompanhados por um fortalecimento geral dos partidos conservadores. Falando das eleições de 2002, o senhor disse que não se pode vencer a extrema direita associando-se ao consenso e às oligarquias. O ano de 2009 é a conclusão do que começou em 2002?
Não acho que podemos comparar. Em 2009, foram eleições europeias. Se tomamos o caso da França, em 2005 houve o referendo da Constitição Europeia e a União triunfou.
Em 2007, Sarkozy chegou ao poder e renegociou os poderes dessa Constituição. Ele decidiu que não se submeteria ao referendo pois, segundo ele, havia questões importantes de Estado envolvidas. Esse é um primeiro ponto. É preciso dizer que falamos de 40% do eleitorado que votou e é preciso pensar nos 60% que não votou.
A mudança entre 2002 e 2009 é que a parte do corpo eleitoral que não votou está mais à esquerda. A vitória da direita está ligada mais ao fato de que o eleitorado de esquerda não se reconhece nos partidos de esquerda, do que numa conversão da população inteira ao sarkozismo. O eleitorado de direita está contente com o que tem, está contente com Sarkozy e Berlusconi.
O eleitorado de esquerda não está satisfeito nem com os homens que estão poder, como Gordon Brown, nem com os que estão na oposição, e o melhor exemplo é a oposição socialista na França. Não acho que haja um crescimento extraordinário da direita e da extrema direita, mas sim um desencanto da esquerda.
Mas a crise gerou nos Estados Unidos um abandono da direita, representada por Bush…
Houve uma mobilização enorme em torno das eleições norte-americanas. Uma série de pessoas que nunca tinham votado foi votar pela primeira vez, especialmente os negros.
No caso da Europa, foi o contrário. Há países onde apenas 20% dos eleitores votaram, e só 40% na França. Não acho que esse contraponto deva ser pensado em relação direta com a crise financeira.
O resultado foi precipitado por ela, mas a ideia de Obama contra Bush remete a uma insatisfação anterior e mais fundamental do que a mera reação à crise econômica.
Os desinteresses pela política e pela arte seriam duas vertentes da mesma situação?
Não tenho certeza, até porque o desinteresse pela política não é tão claro assim. Muita gente votou nas eleições presidenciais há dois anos. Nas eleições europeias, aparentemente muitas pessoas que normalmente votam não votaram, e muita gente que não costuma votar saiu de casa porque queria salvar o planeta. Esse é um primeiro aspecto.
O segundo é que não creio que haja um desinteresse pela estética, pela arte. As pessoas ainda vão ver Jeff Koons em Versalhes. O interesse pelos artistas ainda é muito importante. É verdade que de vez em quando há coisas desastrosas, teve La force de l’art no Grand Palais e estava sempre deserto, mas as pessoas se davam cotoveladas para ver Picasso.
Se a mudança do mundo passa por reconfigurações da maneira de pensar e entender a realidade, então ela não passa pelas revoluções como as conhecemos?
Podemos pensar nisso baseados nas revoluções que já aconteceram. Em primeiro lugar, uma revolução é uma ruptura na ordem do que é visível, pensável, realizável, o universo do possível. Os movimentos de revolução sempre tiveram a forma de bolas de neve.
A partir do momento em que um poder legítimo se encontra deslegitimizado, parece que não está em condições de reinar pela força, porque caíram todas as estruturas que legitimam a força. Criam-se cenas inéditas, aparecem pessoas que não eram visíveis, pessoas na rua, nas barricadas. As instituições perdem a legitimidade, aparecem novos modos de palavra, novos meios de fazer circular a informação, novas formas da economia, e assim por diante. É uma ruptura do universo sensível que cria uma miríade de possibilidades.
Não penso as revoluções, nenhuma delas, como etapas de um processo histórico, ascensão de uma classe, triunfo de um partido, e assim por diante. Não há teoria da revolução que diga como ela nasce e como conduzi-la, porque, cada vez que ela começa, o que existia antes já não é válido.
Existe uma carta interessante de Marx, um pouco após 1848, quando os socialistas pensavam que as estruturas seriam abaladas mais uma vez. Ele diz que as revoluções não funcionam como os fenômenos científicos normais, são mais como os fenômenos imprevisíveis, os terremotos. Não sabemos como elas vão se comportar. Todas as teorias científicas, estratégicas, das revoluções demonstram isso.
Não podemos antecipá-las…
Podemos prepará-las, mas não antecipá-las. A temporalidade autônoma de uma revolução, os espaços que elas criam não correspondem jamais ao quadro conceitual que temos no início.
A estratégia da esquerda tradicional é o confronto aberto, o que se opõe à sua teoria de reconfiguração estética da vida política…
Temos de pensar na estética em sentido largo, como modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem
o mundo. É um processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do problema.
Os universos de percepção não compreendem mais os mesmos objetos, nem os mesmos sujeitos, não funcionam mais nas mesmas regras, então instauram possibilidades inéditas. Não é simplesmente que as revoluções caiam do céu, mas os processos de emancipação que funcionam são aqueles que tornam as pessoas capazes de inventar práticas que não existiam ainda.
Não sou contra processos cumulativos, claro: se imigrantes ilegais têm capacidade de fazer greves e manifestações em condições perigosas para eles mesmos, isso define um alargamento não só do poder e das capacidades que temos, mas também do mundo no qual inscrevemos nossas ações e nosso pensamento.
A transformação dos mundos vividos é completamente diferente da elaboração de estratégias para a tomada do poder. Se há um movimento de emancipação, há uma transformação do universo dos possíveis, da percepção e da ação, então podemos imaginar como consequência também um movimento de tipo revolucionário, de tomada do poder. É claro que estamos falando do passado, porque o presente não é muito alegre.
Por que “o presente não é muito alegre”?
O presente não é alegre porque não há esperanças fortes, digamos assim, que sustentem os movimentos existentes.
Por exemplo, a recente greve das universidades, que criou algumas formas de manifestação, digamos, particulares: cursos na rua, no metrô, invenções para deslocar para o campo da sociedade como um todo o problema que atinge o ensino superior francês.
Mas todas essas inovações foram completamente isoladas do ponto de vista da informação. O ano de 1968 existiu em parte porque o rádio cobria profundamente o movimento estudantil, sabia-se tudo que acontecia, havia uma geração de jovens repórteres de rádio que fez circular as informações.
Agora, aconteceu o contrário. A mídia aprisionou o movimento universitário numa espécie de paisagem hostil, gente que não entendia, que dizia coisas alucinantes. O partido majoritário de direita (UMP) criou associações de pais de estudantes exigindo o reembolso das inscrições porque os estudantes não tiveram aula. Isso era impensável há dez anos.
As forças da dominação e da exploração aumentaram consideravelmente seus meios de ação. Diante da crise financeira, não vimos nenhum discurso forte e sério contra o capitalismo, só esses pequenos grupos e partidos anticapitalistas com as mesmas ideias de décadas atrás. Nada que trouxesse esperança, movimentos com ideias alternativas a uma concepção hegemônica confrontada com suas próprias contradições.
O presente não é muito alegre porque as forças da dominação e da exploração fizeram progressos consideráveis. Estudei, por exemplo, o movimento operário do século 19, que criou novas formas de associação e de visão do mundo e que resultou em movimentos políticos que, como sabemos, falharam. Mas é certo que o universo dos possíveis foi amplamente reformulado. O povo em manifestação podia algo que não podia antes, diante da realeza.
No mesmo sentido, o operariado adquiriu novos poderes e direitos face aos patrões. As formas de comunicação se comunicam entre elas e criam um universo de circulação de energia, ideias, vontades. Foi muito marcante, em 1968, vermos surgirem de repente, em diversos lugares ao mesmo tempo, formas de contestação e de ação.
É claro que tudo isso caiu com o movimento, mas foi um momento em que os estudantes viram que podiam fazer o mesmo que os operários, e vice-versa. Criaram-se formas de ação completamente imprevistas. O que se transmite são aberturas do campo do possível, não do campo estratégico.
No interior de sua distinção entre política e polícia, como podemos interpretar o crescimento da vigilância e do controle? Por que fizemos essa escolha, em vez do encontro político?
É a lógica do funcionamento dos Estados como instâncias de administração, e dos sistemas midiáticos: trocar a política pela identificação de problemas que precisam ser solucionados. Se não é o conflito que é motor, o motor é uma espécie de patologia da vida política que a administração se propõe a remediar. É o modo de funcionamento do Estado moderno.
De um lado, há uma pretensão ao objetivismo, identificar os problemas e as imperfeições da sociedade, e, de outro lado, precisamente essa espécie de objetivismo idealizado é, essencialmente, uma questão de gestão das opiniões.
Tomando a questão da segurança, qual é o balanço da gestão de Sarkozy, primeiro como ministro do Interior, depois como presidente da República? Um desastre. Estamos muito menos seguros do que antes. O que está em funcionamento é a gestão da insegurança como um sentimento para agregar as pessoas em torno de um poder que gerencia a segurança.
Resisto muito às teorias paranoicas de “sociedade de controle” que dizem que “somos observados e controlados em todo canto”. No 11 de Setembro, vimos como as pessoas podem passar tranquilamente diante das câmeras de segurança e fazer seu atentado sem serem molestadas. Acredito muito mais na ideia de uma administração ideológica, no sentido tradicional, dos sentimentos, particularmente no que diz respeito à segurança.
Criamos um sentimento de que vivemos na insegurança e precisamos de gestores de segurança. Isso cria uma legitimação de decisões autoritárias que podem se estender a praticamente tudo. No fim, a segurança acaba significando qualquer coisa. A pobreza dos subúrbios, a saúde dos idosos, os “países terroristas” pelo mundo, os poluidores, qualquer coisa.
A segurança vira um sentimento de perigo onipresente, extrapolando a ideia da proteção das “pessoas de bem” contra os maus de qualquer tipo. Isso cria estruturas de gestão estatais e interestatais, que não são necessariamente da ordem do controle minucioso ou do terror, mas de um sentimento flutuante.
(1) Comentário
Excelente reportagem,deixa claro e evidenciado que não podemos desconsiderar a política com estética, ou seja, para a DEMOCRACIA é fundamental ter cores,multiplicidades e principalmente pluralismo.