Entrevista: Erik Olin Wright e Michael Burawoy
“Embora a opinião pública tenha se voltado contra a guerra, nenhum dos candidatos atuais à presidência renunciou ao uso da força militar como importante instrumento de política externa”
Ruy Braga e Alvaro Bianchi
CULT — Gostaríamos de começar com um questão proposta recentemente por Seymour Lipset: por que não houve um movimento socialista forte nos Estados Unidos? É possível explicar isso – como faz o autor – por um suposto “excepcionalismo norte-americano”?
MICHAEL BURAWOY e ERIK OLIN WRIGHT — Essa questão tem um caráter muito diferente se ela fizer referência apenas ao passado – por que não houve um movimento socialista forte – ou se fizer referência à trajetória das lutas de classe e às políticas nos países capitalistas desenvolvidos. Nesse segundo caso, o fator principal é que em nenhum país capitalista desenvolvido de hoje existe um “movimento socialista forte”. Os Estados Unidos, a Inglaterra, os países do norte da Europa e da Europa continental – em nenhum desses lugares há algo que possa ser chamado de um forte partido político ou movimento social anti-capitalista. Dada a presente realidade, a questão em relação ao passado assume um caráter diferente. É certo que houve condições históricas especiais nos Estados Unidos – agrupadas como “excepcionalismo norte-americano” – que explicam porque um capitalismo hegemônico se consolidou aqui antes e de tal modo que os movimentos anti-capitalistas perderam força. Mas talvez a melhor forma de propor o problema seja “por que houve tanto atraso nesse processo na Europa?”, e não “por que não houve socialismo nos Estados Unidos?”. Sem dúvida, uma resposta completa para essa questão seria muito complexa, mas incluiria o fato de que, desde o início, o desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos não foi limitado pela persistência das estruturas econômicas pré-capitalistas (com a exceção óbvia da escravidão), e isso permitiu que uma forma mais dinâmica e hegemônica de capitalismo se desenvolvesse rapidamente. Então, para responder à pergunta: hoje, os Estados Unidos não deveriam ser considerados exceção e, sim, a norma à qual aspiram tantas burguesias nacionais – pense na competição entre a Índia e a China para emular o livre mercado controlado pelos Estados Unidos, na adoção entusiástica dos princípios de mercado por toda a antiga União Soviética e seus países satélites. Até na África e no mundo árabe, a hostilidade aos Estados Unidos não implica a rejeição do mercado capitalista. Vamos deixar nossos leitores decidirem se a América Latina, seja o Brasil, a Bolívia ou a Venezuela, oferecem alternativas genuínas para o modelo americano. Talvez a grande ironia esteja no fato de que os Estados Unidos, de várias maneiras, são uma das mais conhecidas exceções à sua própria celebração dos livres mercados, da democracia liberal e dos direitos humanos.
CULT — Apesar da inexistência de um Partido Socialista forte, é possível afirmar que um tipo de pensamento radical sempre esteve presente nos Estados Unidos durante o século 20?
M.B. e E.W. — Como o pensamento radical nos Estados Unidos nunca foi representado por um partido político estável e de massa, é fácil pensar que ele está perpetuamente à margem da vida intelectual e cultural, com pouca continuidade e impacto. Isso é um erro. Sempre houve diversas correntes de pensamento radical dentro dos Estados Unidos, mas essas correntes não se cristalizaram em torno de um programa unificador, como acontece quando um forte partido político de esquerda está presente. Assim, nos últimos 50 anos, nos Estados Unidos, idéias radicais e críticas contemplaram principalmente questões vinculadas à raça, aos gêneros, ao meio-ambiente e à sexualidade, e não à classe e ao trabalho – embora existam algumas exceções recentes, como veremos. Algumas dessas correntes de pensamento radical são vibrantes, criativas e contribuíram muito para discussões globais. O melhor trabalho do feminismo e do ambientalismo norte-americanos, por exemplo, certamente influenciou a discussão dessas questões ao redor do mundo. Mas essas discussões geralmente estiveram desconectadas da crítica do capitalismo e da política de classe. Além disso, a ausência de um partido de massa com tendência esquerdista ou social-democrata, e, ao mesmo tempo, de um movimento trabalhador institucionalizado diminuiu a durabilidade e a continuidade de uma política oposicionista. Lutas de classe vieram em ondas, mas existem poucas instituições para manter vivas as lembranças coletivas dessas lutas, de modo que cada época de movimentos precisa começar do zero. Não existe um legado oposicionista como nos países europeus – embora mesmo lá essas memórias nacionais estejam ficando cada vez mais anacrônicas no mundo globalizado.
CULT — Perry Anderson afirma que, na década de 1970, um forte movimento intelectual marxista – ou pelo menos influenciado pelo marxismo – surgiu nos Estados Unidos, restabelecendo temas clássicos como a análise dos processos de trabalho e as teorias de classe e exploração. Como você avalia o florescimento do marxismo teórico nos Estados Unidos, depois de 1968?
M.B. e E.W. — De fato, houve um certo florescimento do marxismo, especialmente nos anos 1970 até os 1980, mas há um pouco de exagero nisso, já que esse florescimento se limitou ao mundo acadêmico, sem muita articulação com movimentos sociais fora da universidade, mais sensível ao marxismo. Hoje o marxismo, na prática, quase desapareceu da academia, embora deva ser dito que alguns dos temas centrais do marxismo foram absorvidos pelas principais correntes de algumas disciplinas, especialmente a sociologia. Os estudantes de sociologia continuam atraídos por perspectivas críticas, incluindo o feminismo, a análise crítica de raça e os estudos culturais, e muitos dos estudantes de graduação ainda querem fazer pesquisa sobre questões ligadas à justiça e mudança sociais. Mas o marxismo como sistema abrangente para a análise social já não está no centro desses esforços. Ironicamente, conforme o poder do capital se consolida local, nacional ou globalmente, a capacidade explicativa do marxismo aumenta, mas, ao mesmo tempo, o marxismo como ideologia – no melhor sentido da palavra: idéias tornando-se uma força material – se enfraquece. A renovação do marxismo acompanha a expansão dos movimentos sociais, a efervescência da sociedade civil e as ofensivas trabalhistas. Hoje, isso é encontrado fora dos Estados Unidos, talvez na América Latina.
CULT — Ainda é possível observar a vitalidade deste movimento intelectual hoje?
M.B. e E.W. — Se existe vitalidade no pensamento radical ou crítico, hoje, ela vem principalmente das disciplinas híbridas que emergiram em resposta aos movimentos sociais dos anos 1960 e que criaram novos departamentos dentro das universidades, como o de Estudos Afro-Americanos, Estudo Étnicos, Estudos Nativo-Americanos, Estudos Femininos. Eles ainda abrigam uma forte tendência oposicionista. Em disciplinas mais tradicionais, perspectivas críticas continuam presentes, especialmente, de novo, na sociologia. Vale lembrar, por exemplo, que em anos recentes vários presidentes da Associação Americana de Sociologia foram imediatamente identificados com a esquerda – Frances Fox Piven (2007), Troy Duster (2005), Michael Burawoy (2004) e Joe R. Feagin (2000). No interior da sociologia, ainda há claramente uma forte propensão a perspectivas críticas, oposicionistas. O recente interesse pela sociologia pública, tanto nos Estados Unidos quanto no exterior, comprova um desejo latente de retorno às raízes da sociologia de transformação social. Se o impulso marxista dos anos 1970 fez com que os movimentos sociais construíssem uma nova sociologia contra as teorias esclerosadas da modernização e do triunfo americano, o impulso crítico do novo século se virou para fora, tomando o desafio de compreender o disaster capitalism e, ao fazê-lo, precisou sacrificar a pureza teórica em nome do engajamento prático.
CULT — Recentemente, duas questões políticas e sociais chamaram atenção nos Estados Unidos: a Guerra no Iraque e os direitos dos imigrantes. Aconteceram mobilizações importantes. Como os intelectuais radicais se posicionaram em relação a esses movimentos?
M.B. e E.W. — Os intelectuais nos Estados Unidos protestaram contra a Guerra do Iraque porque ela é inumana, irracional. A quantidade de protestos no início da Guerra do Iraque – em número maior do que aqueles contra a Guerra do Vietnã – não conseguiu reverter a política militarista do Estado, mantida por uma visão estreita e inconseqüente. Mais bem sucedidos têm sido os inesperados e intensos protestos em defesa dos direitos dos imigrantes, que possuem os piores empregos do setor de serviços. Imigrantes latinos – documentados ou não – estão na vanguarda dos movimentos sociais quando manifestam suas exigências, em uma linguagem compreensível a todos – os direitos humanos. A grande mudança veio em 2000, quando a AFL-CIO (União dos Sindicatos dos Estados Unidos) mudou sua posição em relação aos imigrantes e, em vez de colocarem barreiras para sua entrada, escolheu se aliar com eles, já que eles provaram ser os mais militantes entre os trabalhadores. Em pouco tempo, de imigrantes desmobilizados transformaram-se nos trabalhadores mais suscetíveis à organização. Essa transformação é parte de uma série de mudanças na estratégia trabalhista que aconteceu nos últimos dez anos, uma passagem do sindicalismo de negócios, focado no que era uma aristocracia trabalhista de operários industriais, para o sindicalismo de um movimento de trabalhadores marginalizados do setor de serviços. Aqui, intelectuais radicais ficaram divididos – alguns se opuseram a qualquer separação do movimento trabalhista, que já era fraco, enquanto outros viam a necessidade de abandonar as estratégias trabalhistas antigas em favor das novas.
CULT — Muitos autores, como David Harvey, renovaram o conceito de Imperialismo para explicar a posição atual dos Estados Unidos no cenário internacional. A teoria marxista de Imperialismo ainda faz sentido?
M.B. e E.W. — Existe, é claro, uma grande variedade de teorias “marxistas” de “Imperialismo”. Algumas enfatizam a centralidade da competição militar em padrões globais de expansão econômica; outras usam o termo para designar relações de dominação política entre Estados centrais e periféricos do sistema global; outras ainda usam o temo principalmente para designar o caráter global de acumulação do capital e do desenvolvimento desigual. Todas essas idéias são relevantes para a atual situação de uma forma ou de outra. Portanto, as discussões marxistas sobre o imperialismo ainda são úteis. Outra coisa é imaginar que, considerando o atual estágio do capitalismo, de interdependência global, ainda seja plausível pensar em imperialismo no sentido de um projeto de hegemonia global baseado na manutenção de uma superpotência militar. Essa é uma especulação política condenada ao fracasso. Os neo-conservadores nos Estados Unidos anunciaram a ambição de estabelecer uma ordem imperial militarizada em um famoso documento escrito no final dos anos 1990, The project for a new american century. A guerra ao terror deu abertura política para a realização agressiva dessa visão. O desastre no Iraque com certeza dificultou esse plano, mas não o destruiu. Em todo caso, parece pouco provável que uma revisão dos detalhes estratégicos de um plano imperial teria permitido que ele fosse bem-sucedido, dada a estrutura desenvolvida do capitalismo global e a notória transferência do locus dinâmico de acumulação para a Ásia Oriental.
CULT — Durante a crise do mercado de ações em 1997, a revista New Yorker publicou um artigo de John Cassidy na qual ele notava a importância de Marx para entender o capitalismo do presente. Nesse momento os Estados Unidos passam por uma nova crise econômica. Como o marxismo poderia explicá-la?
M.B. e E.W. — O marxismo nunca teve muita dificuldade para explicar as crises do capitalismo. No centro da atual crise econômica dos Estados Unidos está o efeito acumulativo da trajetória de políticas vinculadas ao neoliberalismo: o desenrolar de um boom especulativo no mercado imobiliário causado pela desregulamentação do mercado de crédito, o desequilíbrio comercial a longo prazo ligado ao processo de desindustrialização, a enorme dívida pública gerada pelos gastos militares, combinada com uma progressiva redução nos impostos. Esses processos são familiares aos marxistas, mas é claro que também são familiares aos não-marxistas que são críticos do neoliberalismo. O diferencial da visão marxista é encarar esses tipos de fenômenos como intimamente ligados às estruturas centrais e às instituições do capitalismo, apoiados pelas configurações das forças de classe. O marxismo pode ser bom no diagnóstico das crises e das contradições capitalistas, mas falhou na antecipação de algo novo. Por muito tempo, o marxismo dependeu de teorias da história problemáticas e de equívocos na compreensão da dinâmica dos sistemas econômicos. A aspiração do marxismo foi imaginar o futuro socialista como conseqüência imanente dessa mesma dinâmica. Nós já não temos essa muleta, e se quisermos nos manter críticos radicais do capitalismo, precisamos refletir mais seriamente a respeito das alternativas do capitalismo. Precisamos explorá-las onde quer que elas apareçam, pensar sobre suas condições de existência e de difusão. Precisamos manter viva a imaginação de utopias alternativas, que não sejam fantasias, mas utopias concretas, criadas nas frestas do capitalismo. Ao mantê-las vivas, criaremos forças tanto para a melhoria das condições dentro do capitalismo quanto para a possibilidade de algo novo.
CULT — O que pode mudar na política externa americana depois das eleições?
M.B. e E.W. — As eleições podem viabilizar a chance para corrigir os erros da política externa, como a Guerra do Iraque. Elas raramente dão oportunidade para mudanças cruciais na política externa, porque isso é moldado pela nova ordem global em que vivemos. À exceção do libertário meio louco, Rob Paul, do Partido Republicano (que promete desmilitarizar completamente a política externa norte-americana, fechando todas as bases do país no exterior e reduzindo o orçamento militar em cerca de 70%), nenhum dos candidatos à presidência renunciou ao uso da força militar como importante instrumento de política externa – embora a opinião pública tenha se voltado contra a guerra. Todos os candidatos afirmam basicamente a mesma coisa em relação aos principais focos de tensão da política externa: inequívoco apoio a Israel, hostilidade estridente ao Irã, comprometimento com a guerra ao terrorismo, preocupação com a elevação da China à potência econômica. Todos estão comprometidos em manter a supremacia militar norte-americana, afirmando que o princípio de intervenção militar dos Estados Unidos é uma legítima ferramenta de política externa, e não está sujeita a restrições formais por órgãos internacionais. Esse tipo de militarismo está no centro da política externa por mais de meio século, apoiada tanto pelo Partido Democrata quanto pelo Republicano. Nada disso tende a mudar, independente de quem seja eleito. Há mais incerteza em relação às perspectivas de qualquer mudança substancial na repressão interna contra minorias raciais, obviamente medida pelos crescentes índices de prisões de afro-americanos, e tornada ainda mais evidente ao mundo inteiro no caso do abandono e posterior expulsão dos afro-americanos de New Orleans depois do Furacão Katrina. Por um lado, há importantes segmentos da base eleitoral do Partido Democrata que estão profundamente preocupados com a pobreza, a marginalização e o racismo. Eles reconhecem a enorme injustiça e o custo humano das políticas socioeconômicas dos últimos 25 anos, e se irritam principalmente com a indiferença da administração Bush pelas políticas de bem-estar social. Os principais candidatos democratas manifestaram estas preocupações pelo menos simbolicamente. Por outro lado, o desmantelamento do já mínimo Welfare State americano e a impregnante desregulamentação da economia do país foram apoiados pelos líderes do Partido Democrata, e há poucos motivos para acreditarmos que qualquer candidato presidencial, que recebe sólido apoio de grandes corporações e instituições financeiras, iria reverter isso. É pouco provável que qualquer presidente americano tenha um projeto político sério para reduzir a desigualdade econômica e a marginalização, sem movimentos enérgicos e vibrantes por justiça social.
Ruy Braga é professor do Departamento de Sociologia da USP
Alvaro Bianchi é professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp