‘Procurávamos exprimir a literatura, mas não guiar a literatura’

‘Procurávamos exprimir a literatura, mas não guiar a literatura’
Décio de Almeida Prado no jardim de sua casa, em 1988 (Foto Sérgio Tomisaki/Folhapress)

 

 

Às vésperas de completar 80 anos, em 14 de agosto, Décio de Almeida Prado é um dos intelectuais brasileiros mais admirados em nosso meio artístico e cultural. Conhecido principalmente como crítico teatral e historiador do nosso teatro, desempenhou várias atividades, destacando-se como editor do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo e como professor na Escola de Arte Dramática de Alfredo Mesquita e na USP. Foi diretor do Grupo Universitário de Teatro, presidiu várias vezes a Comissão Estadual de Teatro e, recentemente, já aposentado, ajudou a criar a Revista USP e dirigiu seu Conselho Editorial por cinco anos.

Sua trajetória intelectual iniciou-se em 1941, ao lado de Antonio Candido, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho e Gilda de Mello e Souza. Com esse grupo oriundo das primeiras turmas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, nasce a revista Clima, que em seus dezesseis números atesta o surgimento de uma verdadeira geração de formadores.

A dívida das gerações mais jovens para com todos eles é enorme, porque o traço comum que os caracteriza é a generosidade intelectual. Em suas aulas, em seus livros e mesmo em conversas informais, não há quem não tenha colhido um ensinamento, uma ideia, uma sugestão de trabalho. Nesta entrevista, que marca o lançamento da revista CULT, Décio de Almeida Prado fala justamente sobre suas atividades como editor de cultura: o envolvimento com a criação da revista Clima, na juventude, e o trabalho à frente do Suplemento Literário, na maturidade.

CULT – O sr. é hoje o maior estudioso do teatro brasileiro, autor de vários livros sobre o assunto. Mas em sua trajetória intelectual envolveu-se também com a criação de revistas literárias, como a Clima e a Revista USP, e dirigiu o Suplemento Literário do O Estado de S. Paulo. Como o sr. encara a função de editor?

Décio de Almeida Prado – O editor de uma publicação cultural é diferente do editor de jornal que lida com fatos políticos ou econômicos. Sua função principal é saber quem deve incluir no seu veículo e quem deve excluir – função que os americanos comparam ao porteiro de clube, que deixa os frequentadores entrarem ou não. É claro que tanto ao incluir quanto ao excluir corre-se certos riscos. Se há aceitação de todos os que se apresentam, a qualidade literária ou artística pode baixar muito. E, ao contrário, se o editor acentua mais o lado da negação, da exclusividade, se só um grupo é aceito, há o perigo do esnobismo, que pode existir na área artística como existe na vida social.

Qual foi seu papel na revista Clima, que é a revista da sua geração de intelectuais?

O Clima ainda reflete um período de grande amadorismo. Nós tínhamos acabado de nos formar, estávamos começando nossa carreira profissional como escritores e esta era a primeira vez que Antonio Candido, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado e eu escrevíamos para o público leitor. Por outro lado, a própria cultura brasileira não era tão profissionalizada como hoje. Quando eu vejo espetáculos de teatro atuais, fico admirado em ver como os diferentes desempenhos são organizados, como cada pessoa faz exclusivamente uma coisa. Em nossa época, a tendência era o grupo agir coletivamente, todo mundo fazia todas as tarefas.

Do ponto de vista prático, como era feita a revista?

Não havia nem sequer uma sede. Nos primeiros meses, as reuniões foram feitas na casa de Lourival Gomes Machado. Nesse período eu estava fora do Brasil e foi então que houve a distribuição das seções para as diversas pessoas do grupo. Esse trabalho foi feito sobretudo pelo Alfredo Mesquita, que não colaborou propriamente na revista, mas foi o seu inspirador (depois ele ficou mais ou menos à parte). Nosso trabalho tinha um caráter “material” mesmo: pegar originais na casa das pessoas, levar à gráfica da Revista dos Tribunais (que tinha também uma relação meio amadorística conosco e fazia Clima por camaradagem, já que nós podíamos pagar pouco), descer até a oficina, pegar as provas (que corrigíamos normalmente na minha casa), devolver à gráfica e, depois de impressa, fazer o trabalho de distribuição da revista uma a uma, pelo correio e para bancas de jornais.

A revista teve duas fases: a primeira entre 1941-1943 e a segunda em 44. Quais as características das duas fases?

Na primeira, a revista se dividia em duas partes. Uma delas com seções fixas, que davam o colorido, definiam a natureza da revista e cuja especialização é, a meu ver, um traço universitário decorrente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – cujos cursos nós todos tínhamos feito. Havia alguém que fazia literatura (Antonio Candido), alguém que fazia artes plásticas (Lourival), cinema (Paulo Emílio), teatro (eu) e economia (Roberto Pinto de Souza). E, ao lado disso, havia a colaboração “solta”, de artigos. Mas, em geral, julgamos que a revista nessa primeira fase era muito pesada, com artigos muito longos. Faltava uma certa leveza. Na segunda fase, portanto, procuramos exatamente adquirir essa leveza e, além de seções fixas e artigos, admitimos crônicas mais ligeiras e notas.

As diferenças eram somente na estrutura editorial?

Outra diferença entre 1941 e 1944 é que, em certo momento, nós nos manifestamos politicamente como gente de esquerda. Na primeira fase, não havia e nem poderia haver nenhuma demonstração política, pois a censura do governo Getúlio Vargas era sufocante. Aliás, eu tenho a publicação oficial em que saiu a autorização para editar Clima. Entre 20 ou 30 pedidos, o único atendido foi o nosso, porque houve uma movimentação política no Rio de Janeiro, feita pelo Antonio Candido, que conseguiu a permissão alegando que nossa revista era puramente literária. E de fato foi assim durante muito tempo, porque as manifestações políticas estavam totalmente proibidas. Quando o regime começou a perder força, quando o período getulista caminha para o final e o Brasil entra na Segunda Guerra ao lado dos aliados, nós nos manifestamos como um grupo de esquerda – mas da esquerda democrática, isto é, não-comunista. Nosso grupo não era nem stalinista, nem trotskista, que eram as esquerdas existentes. Queríamos formar um terceiro grupo. Era uma posição original, decorrente em grande parte da experiência política do Paulo Emílio, que tinha sido e estava deixando de ser comunista.

Além do núcleo central de Clima (os críticos que assinavam as seções fixas), quem mais colaborava?

Havia duas pessoas intimamente ligadas à revista, que colaboravam não só escrevendo, mas também fazendo aquele trabalho de ir à gráfica, corrigir provas, distribuir exemplares: Ruy Coelho e Gilda Moraes Rocha (que depois se casou com Antonio Candido e passou a se chamar Gilda de Mello e Souza). Eles participavam intensamente de todas as nossas tarefas, embora não assinassem seções fixas – talvez porque fossem os dois mais jovens do grupo.

Vocês se preocupavam em definir um público?

Olha, o público era ignorado! (risos) Mas isso não era tão incomum assim. Mesmo no Estado de S. Paulo (onde trabalhei depois), o público era aquele que se ajustava aos princípios do jornal. Quem os artigos, por sugestão do Antonio Candido, também eram muito bem pagos, mais ou menos três ou quatro vezes mais do que pagavam os melhores jornais do Brasil.

Como era a linha editorial?

A orientação expressa no primeiro número era a de que daríamos mais importância à literatura do que à vida literária. Raramente havia entrevistas. O principal não era o lançamento de um livro ou peça, mas a crítica, o julgamento. Nesse ponto, acho que era bem diferente dos jornais de hoje em dia, que às vezes dão mais importância ao lançamento de uma peça do que à crítica. Ou que então, quando do lançamento de um livro, fazem uma entrevista com o escritor, mas depois a crítica não sai, ou sai muito pequena.

Quem eram os colaboradores?

O jornal tinha colaboradores fixos e, quando assumi a direção, alguns nomes já tinham sido escolhidos. Mas pouco a pouco houve modificações e eu fui escolhendo gente bem mais nova. Quando morreu Brito Broca, que escrevia sobre literatura estrangeira, convidei a Leyla Perrone-Moisés para escrever sobre literatura francesa. Para a colaboração sobre literatura italiana, escolhi Alfredo Bosi, em começo de carreira, embora já bastante conhecido. Outro colaborador bastante jovem foi Roberto Schwarz. Anatol Rosenfeld praticamente começou em língua portuguesa no Suplemento Literário. E, ao lado deles, havia críticos consagrados, como Lúcia Miguel Pereira, Eugênio Gomes, Augusto Meyer e Otto Maria Carpeaux.

Havia seções fixas?

As partes fixas eram as seções de teatro, cinema, música e artes plásticas. A diferença em relação a Clima é que a seção de teatro era feita por Sábato Magaldi, e não por mim. Fui eu que escolhi o Sábato – e foi uma ótima escolha.

O sr. não escrevia no Suplemento?

Só escrevi dois artigos sobre Leonor de Mendonça [de Gonçalves Dias], que depois expandi e publiquei num ensaio longo. O resto eu escrevia no jornal diário. Minha preocupação era a de que o Suplemento não fosse uma repetição do jornal, que tinha sua página de arte, cinema, teatro. Por isso não havia ninguém que escrevesse regularmente no Suplemento e no jornal. Não havia antagonismo, mas também não havia repetição.

Como era a relação do Suplemento com as tendências literárias do período?

Procurávamos exprimir a literatura, mas não “guiar” a literatura, favorecendo alguma corrente. Ao contrário, aceitávamos todas, desde que julgássemos que tinha nível literário. Em relação ao concretismo, por exemplo, não só aceitamos a colaboração deles como abrimos espaço para que fizessem uma diagramação “concreta”.

Vocês também publicavam contos e poesias.

Nós publicávamos um conto por semana. O nível variava um pouco, mas sempre tinha um nível mínimo. Quanto à poesia, publicávamos nomes consagrados – tivemos Bandeira, Drummond, Murilo Mendes -, mas também pessoas que escreviam pela primeira vez. A escolha da poesia no começo era feita pelo Antonio Candido, mas não divulgávamos isso, senão ele receberia uma avalanche de cartas…

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