Entre o espiritual e o sexual: sobre alguns desenhos de Alex Cerveny
Obra "Psicofante", de Alex Cerveny (Foto: Reprodução)
Na produção artístico-teórica contemporânea um dos fenômenos mais interessantes (ou que mais têm-me interessado) é certamente o modo como o pornográfico tem ocupado filósofos, artistas e teóricos em geral como um fenômeno ou uma categoria que nos traz para o nosso tempo inúmeras questões. Depois de ter-me ocupado brevemente do tema, num texto que escrevi para a exposição da artista niteroiense Natali Tubenschlak intitulado “Goela abaixo ou Pornopolítica” (no qual tentei pensar as gravuras de Natali a partir de um texto de Giorgio Agamben do início dos anos 1970), e de ter tido um encontro, aqui em Paris, com ninguém menos que Bruce LaBruce, no lançamento do seu livro Porn diaries: how to succeed in hardcore without really trying (sobre o qual ainda pretendo falar), gostaria hoje de falar sobre uma série de desenhos de Alex Cerveny que me permitem, de algum modo, retornar ao assunto. E, melhor, por um viés completamente diferente dos anteriores.
Conheci Alex Cerveny em 2015, num bar no Morro da Conceição, no Rio de Janeiro. Ele estava com Renato Rezende, o curador da exposição que ele estava montando naquele momento e que seria inaugurada dias depois no Paço Imperial. Eu vi a exposição correndo, no dia da abertura, pois estava de viagem marcada, e segui do Paço direto para o aeroporto Santos Dumont. Mas fui para Brasília naquela noite com os desenhos da sua exposição na cabeça: homens com pênis eretos dançando solitários em ilhas desertas. Pouco tempo depois, a exposição foi para São Paulo, onde ficou um tempo na Casa Triângulo. Como estive na cidade nesse período, tive a oportunidade então de finalmente ver a exposição com calma e o meu fascínio por ela só aumentou.
Eu não conhecia ainda o trabalho de Cerveny, um artista que se desdobra por muitas técnicas, como a gravura, a escultura, a pintura, o desenho, e que em cada uma delas desenvolve um trabalho que não se atém apenas à produção de imagens mas que faz recurso também à escrita, à palavra, à narrativa. Como disse Cerveny certa vez: “Eu me sinto mais um escritor que escreve imagens, me sinto mais um cronista que um artista. A tradição que me agrada na arte é essa de contar histórias, como retábulos, como os muros assírios que contam histórias de batalhas…” Há, sem dúvida, um elemento narrativo/figurativo de traços arcaicos que aparece em toda a produção de Cerveny, e a referência aos murais assírios ou aos retábulos cristãos não é um acaso. Há um diálogo claro do trabalho de Cerveny com essas tradições além de referências bíblicas óbvias em seus desenhos. Mas a dimensão de estranhamento que a obra provoca acontece exatamente quando esses elementos arcaicos são apropriados para dar expressão ao trabalho de um artista contemporâneo e urbano que faz do centro de São Paulo seu universo mais particular.
A exposição “Glossário dos Nomes Próprios”, que eu vi correndo no Rio e com calma depois em São Paulo, era constituída de duas telas a óleo e inúmeros desenhos feitos a nanquim e aguada em papel chinês. Entre os desenhos, espalhadas pelo chão da galeria, “ilhas” cenográficas feitas pelo artista, similares àquelas vistas nos desenhos. O que tornava a exposição um misto de pintura, desenho e instalação. Qualquer um podia subir nas ilhas cenográficas e dançar ou fazer exercícios, se quisesse, exatamente como os homens representados nos desenhos (todas as imagens da exposição podem ser acessadas aqui).
Como lembra Renato Rezende, no texto que escreveu para a exposição, os trabalhos ali apresentados surgiram, de algum modo, a partir de duas viagens: uma feita à China, em outubro de 2013, de onde vieram o papel para os desenhos, mas também os efeitos do encontro com a caligrafia dos monges nos templos chineses; e outra, feita a Belém do Pará, em algum momento anterior,“onde, num antiquário, [Cerveny] comprou um porta-joias de madeira (…) sobre o qual havia sido acoplado a figura de um bebê entalhado em boxwood (buxus sepervirens), provavelmente mais antigo (século 17) e proveniente da Europa Central (…) – o bebê, que em tudo lembra um Buda satisfeito, está alegremente brincando com seu pênis.” A caligrafia, os papéis chineses, o buda bebê que brinca alegremente com seu sexo, os murais assírios e os retábulos cristãos encontram Alex Cerveny no centro antigo de São Paulo e desse encontro insólito surge “O Glossário dos Nomes Próprios”.
As figuras masculinas que vemos nos desenhos da exposição são radicalmente solitárias: estão em ilhas desertas para as quais Cerveny faz questão de dar nomes: Ilha de Villegagnon, Ilha Fiscal, Cobras e Paquetá, Ilhas do Pinheiro, Bom Jesus da Coluna, Sol e Fundão, Ilhas do Caju, Boqueirão, Mocanguê e Brocoió, Ilhas das Enxadas, Santa Bárbara, Ananases, Carvalho, Engenho e Mexinguira, Ilhas D’água, Rijo, Governador, Pompeba e Laje, Ilha da Conceição e Boa Viagem: em cada ilha real/imaginária da costa brasileira, Cerveny encontra um homem solitário de pênis ereto. Como dizem os títulos de outros desenhos da exposição, trata-se também, para o artista, de fazer uma certa geografia e uma certa astronomia desse universo religioso-sexual-fantasmático, que se escreve com nomes próprios.
Embora em alguns desenhos sejam representadas várias ilhas ao mesmo tempo, cada uma delas com um desses homens de pé fazendo movimentos que tanto podem ser passos de dança, posições de ioga ou exercícios físicos, eles não se olham entre si, não parecem saber uns dos outros. São náufragos ensimesmados, náufragos de si mesmos, não parecendo ter conhecimento nem sequer de si mesmos. Há aqui uma redução do desenho ao mínimo, pouquíssimos traços, apenas o suficiente para caracterizar as ilhas, os homens e seus pênis eretos.
Dentro da série de desenhos feitos a nanquim sobre papel chinês, é verdade, nem todos representam homens de pênis ereto em uma ilha. Há, por exemplo, “Entretenimento para aquele que deseja viajar pelo mundo”, de 2013, em que vemos o encontro entre aquilo que seria um mural assírio, da lado esquerdo, e uma cena bíblica do Gênesis, do lado direito, separados por um glossário de nomes de cidades do Brasil e do mundo. Ou “Figo da Índia”, de 2014, único desenho da série em que se vê a presença do corpo feminino, e que representa de modo muito peculiar a cena bíblica do pecado original, com um homem, a serpente e aquela que seria Eva como sendo o próprio fruto proibido numa árvore ressequida.
Mas são sem dúvida os desenhos dos homens solitários, nas ilhas, de pênis ereto os trabalhos mais inquietantes da exposição de Cerveny. Afinal, por que esses homens que se movem, dançam, se exercitam ou simplesmente meditam, têm o pênis ereto? Não há nada nos desenhos que possa nos dar um contexto sexual para as cenas. Esses homens parecem, antes, monges do que atores pornô, e há uma estranha relação aqui entre religião e sexualidade que vem à tona de modo desconcertante, talvez tão desconcertante quanto a imagem do buda-menino brincando com seu pênis.
Dentro os vários desenhos da série de homens de pênis ereto há três que se destacam, pois neles esses homens aparecem sozinhos. O primeiro deles é “Ilha de Villegagnon“, de 2014, um dos mais belos desenhos da série, em que vemos um desses homens de pênis ereto, em uma ilha, numa posição que pode ser entendida como sexual mas também como religiosa ou meditativa: um homem agachado sobre as duas pernas com os dois braços para o alto olhando fixamente para nós, com seu pênis ereto, como nos outros desenhos, mas também com o seu ânus à mostra. Há, aqui, como em muitas representações das religiões orientais, um terceiro olho que nos olha: isso que popularmente chamamos de “o olho do cu”. Essa indiscernibilidade entre o espiritual e o sexual, entre o religioso e o pornográfico, que se encontra nessa série de desenhos de Cerveny é certamente um dos pontos altos do trabalho. E por si só mereceria todo um desenvolvimento.
Mas eu gostaria de chamar atenção para outros dois desenhos da exposição em que vemos também apenas um homem, sozinho, de pênis ereto em cena: trata-se de “Más a Tierra” (Juan Fernandez) e de “Más Afuera” (Juan Fernandez), ambos de 2014, e que funcionam como uma espécie de díptico dentro da exposição, pois são os dois únicos desenhos em que os homens de pênis ereto não são representados em ilhas, nem em nenhum outro lugar, mas flutuando no ar, sem nenhum tipo de localização geográfico-espacial. Além disso, são também os dois únicos desenhos em que os homens tocam seu próprio pênis ereto, numa alusão à masturbação, de modo suave e com os olhos abertos, em “Más a Tierra”, e de modo mais intenso e com os olhos fechados, em “Más Afuera”.
Eu chamaria atenção para este último desenho, o mais belo para mim de toda a série. Esse homem solto no ar, de pênis ereto, que se toca, de olhos fechados, talvez seja a mais perfeita imagem daquilo que Freud chamou um dia de narcisismo primário, auto-erotismo, pulsão do eu, eu de gozo, dentre outros nomes de que ele se serviu para falar desse momento primeiro e originário do psiquismo e ao qual permanecemos sempre presos em nosso desenvolvimento futuro, e que Freud entende como uma dimensão muito primária de nós mesmos. Uma dimensão com a qual ele, aliás, caracterizou o que o seu amigo teólogo das religiões orientais, Romain Rolland, chamou um dia de “sentimento oceânico”, articulando portanto, de algum modo,o narcisismo primário com o religioso, como eu estou fazendo aqui. No texto “Introdução ao Narcisismo”, Freud afirma que, diferentemente da psicose, em que há realmente um desinvestimento da libido dos objetos exteriores, na neurose o investimento libidinal apenas se deslocaria dos objetos do mundo exterior para os objetos da fantasia. O homem de pênis ereto que vemos em “Más Afuera” seria então apenas a representação de um neurótico. Há, no entanto, na imagem de Cerveny algo que aponta para uma outra direção e é precisamente daí que vem toda a sua força e estranhamento. O homem representado em “Más Afuera”, de pênis ereto e olhos fechados, por uma sutileza artística impressionante, traz o rosto não transtornado do momento do gozo sexual, mas o rosto lívido, sereno, da iluminação religiosa. Como o buda menino da caixinha de jóias encontrada em Belém do Pará o homem de “Más Afuera“ fala de uma linha muito tênue que demarcaria ou não demarcaria uma fronteira entre o espiritual e o sexual.