Enterrando meus mortos com palavras

Enterrando meus mortos com palavras

 

No novo livro de Simone Brantes, a vida não é apenas nosso caminho em direção à morte, mas também o modo como, nesse caminho, vamos enterrando nossos cadáveres para podermos viver

Encontrei Simone Brantes no início de janeiro em Berlim, onde ela cumpre atualmente parte do seu doutorado e aonde eu tinha ido visitar amigos e participar de uma seminário de psicanálise na Psychoanalytische Bibliothek Berlin organizado por Marcus Coelen, seu orientador por aquelas bandas. Ela me propôs que fôssemos a um café bacana (os cafés de Berlim são todos tão bacanas), perto da Rosenthalerplatz. Combinamos de nos encontrar dentro da estação de metrô de mesmo nome, pois o frio, lá fora, estava abaixo de zero. Não dava para esperar numa esquina, por exemplo. Encontrei-a sentada num banco, junto com outras pessoas, ao lado de um desses kioskes que encontramos no interior das estações de metrô de Berlim. Foi um encontro desses que a gente não esquece: ficamos no café algumas horas conversando apenas sobre nossas vidas, pois a verdadeira filosofia e a verdadeira poesia só acontecem de fato na vida de filósofos e poetas.

Mais tarde, depois do nosso encontro, tentei explicar a alguém, em inglês, o título da primeira e mais extensa parte do último livro de Simone, Quase todas as noites, publicado em 2016, pela editora 7Letras. Essa primeira parte do livro se chama: Meus mortos. Não foi muito fácil. Mas acho que a pessoa entendeu.

De volta a Paris, me bateu o desejo de escrever sobre esse seu último livro de poesia, e sobretudo sobre essa primeira parte do livro, para continuar a tentar explicar, agora em português, como eu o entendo. Vou tentar. Espero conseguir dizer algo. Mas antes, tenho que contar como conheci Simone.

Vi Simone Brantes pela primeira vez, acho, durante o então recém-criado Seminário dos Alunos da Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ, onde ela e eu cursávamos o mestrado (lá pelos idos de 1992, talvez), ela já o concluindo e eu ainda o iniciando. Ela escrevia, na época, uma dissertação sobre Hegel e Descartes, sobre como Hegel lia Descartes, e, ao ouvi-la, ali, numa sala do IFCS, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, de repente encontrei o que eu tinha buscado durante toda a minha graduação, e talvez, até, já desde o ensino médio, em minhas aulas de filosofia e literatura no Colégio Pedro II, e que eu continuava buscando no mestrado: uma escrita em que não fosse possível distinguir filosofia de literatura. Fiquei sabendo depois que Simone vinha de uma graduação em Letras e isso explicaria, em parte, o que eu tinha ouvido, mas não tudo. Foi só um tempo depois, quando descobri que Simone era também poeta, que as coisas se tornaram mais claras. Finalmente entendi como era possível para ela aquela aproximação entre literatura e filosofia: na verdade, essa aproximação lhe era possível apenas porque era a única que era possível para ela. A rigor, ela não poderia fazer de outro modo, sendo poeta e filósofa. Senti algo semelhante, com muita força, quando Alberto Pucheu (alguém com quem eu compartilhava essa mesma busca) me apresentou, um pouco antes ou um pouco depois, um texto de Orides Fontela, uma poeta que também tinha estudado filosofia e que me comovia de um modo desconcertante.

A imagem de Simone lendo seu texto sobre Hegel e Descartes ficou em mim. Ao final, tive acesso à sua dissertação, defendida, mas, infelizmente, até hoje não publicada. Sempre a coloco nas bibliografias dos cursos que dou sobre Hegel na UFF. Mas Simone não seguiu sua carreira acadêmica em Filosofia. A poesia, parece, bateu com força, obstruindo o Doutorado que ela tinha começado. Para viver, como ela diz em um de seus poemas, tornou-se professora de português.

Quando, em 2000, me mudei, pela primeira vez, para Santa Teresa, bairro do Rio de Janeiro em que Simone vive há muitos anos, nos reencontramos uma vez pelas ruas do bairro e ela ficou de deixar, na portaria do meu prédio, em uma de suas caminhadas, o seu livro de poesia, Pastilhas brancas, que ela tinha publicado um pouco antes, em 1999. Eu imaginava que esse era o livro que tinha vindo no lugar da tese de Doutorado em filosofia, que não veio, e esperava ansioso conhecê-lo. Era o momento em que eu escrevia minha própria tese de Doutorado que viria a ser defendida no final daquele ano.

Um dia, voltando para casa, na Rua Teresina, meu primeiro endereço no bairro, encontro na portaria um exemplar deixado para mim por Simone. Subo, entro no meu apartamento, e leio o primeiro poema do livro:

Pastilhas brancas

Dormi calma por duas pastilhas brancas embalada,
como quem não tem ocupada a alma por tudo que dói.
Talvez, apartada de mim, minha dor tenha andado por aí perdida
ou tenha ficado o tempo todo aqui bem próxima
estendida sobre a cadeira
como essas roupas que se despem na véspera
e se vestem sem pudor no dia seguinte.

O impacto que esse poema teve sobre mim é algo de que jamais me esquecerei. De certo modo, ele não deixou de ecoar em mim até hoje. Nunca o leio impunemente. É sempre com uma força enorme que ele me atinge. É difícil descrever o que exatamente provoca o impacto desse poema: uma dor que só acalma com comprimidos para dormir, as pastilhas brancas? Uma dor que anda pelas ruas, perdida? Uma dor que se estende sobre a cadeira? Uma dor da qual nos despimos e com a qual nos vestimos, sem pudor, no dia seguinte? Uma dor que é nossa, mas que, de tão grande, acaba por nos esmagar e ganhar autonomia, como se fosse um ente entre outros? Quem já conheceu essa dor, não pode ignorar a força de Pastilhas brancas. Essa força advém, a meu ver, do fato de que, nele, a dor vira poema. E o poema surge como a verdadeira pastilha branca a amortecer a dor. Mas também, ao mesmo tempo, como uma comemoração dessa dor. Para todo o sempre essa dor ficou registrada. O poema, agora, é uma cicatriz escrita na pele do livro.

Muitos anos se passaram desde o meu encontro com essas Pastilhas, tendo eu mesmo experimentado as minhas próprias primeiras pastilhas pouco tempo depois, nessa mesma época. O tempo passou e um longo intervalo sem livros si iniciou. Simone Brantes, uma poeta comedida, publicou, só no ano passado, Quase todas as noites, que trouxe consigo também os poemas de No caminho de Suam, de 2002. Creio que, a partir desse pequeno histórico do meu encontro com Simone, já posso falar do seu novo livro.

Em sua primeira parte, Meus mortos, Simone constroi uma impressionante descrição daquilo que poderíamos chamar de uma vida cercada de espectros. Para alguém que se deteve, como eu, precisamente sobre o problema da morte em Heidegger, naquela tese de doutorado que eu escrevia quando li Pastilhas brancas pela primeira vez, essa primeira parte do livro de Simone não podia deixar de produzir de novo um enorme impacto. Lembrei-me de ter ido, na época, ler A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, buscando apoio na referência literária do próprio Heidegger para escrever sobre essa parte da sua obra. Fosse hoje, em vez de Tostói, eu teria citado Meus mortos na minha tese.

Na segunda seção de Ser e Tempo, de que me ocupei longamente naquele ano de 2000, no apartamento da Rua Teresina, Heidegger, tentando construir o conceito de ser-para-a-morte, nos remete ao que ele chama de a morte do outro, mas precisamente para dizer que, nela, ainda não temos o que ele entende como sendo a morte em sentido próprio que seria, nas suas palavras, sempre minha. A experiência da morte do outro, segundo o filósofo alemão, seria apenas um modo impróprio de experimentar a morte. A morte própria, para Heidegger, é somente a própria morte e nenhuma outra, porque, segundo ele, não se pode fazer a experiência da morte do outro. A morte é da ordem da singularidade absoluta e, portanto, da ordem do intransmissível. Ninguém pode passar a sua experiência de ter morrido para ninguém, até porque, no limite, ninguém pode ter essa experiência.  Pois, se, para morrer, basta estar vivo, por outro lado, não é possível estar vivo para poder fazer a experiência de estar morto. Daí que Heidegger descreva a morte, não enquanto um morrer (experiência no fim das contas impossível), mas enquanto um ser-para-a-morte. O que torna a morte uma experiência humana é o fato não de vivê-la, mas de estarmos todos indo em direção a ela.

A primeira parte do livro de Simone toca, a seu modo, em todos esses pontos. Como quando diz, em Os amigos se encontram tantos anos depois:

Os amigos prometeram que não demorariam
trinta anos para se encontrar ademais os amigos
sabem que não terão todo esse tempo
os amigos já começam a fazer os cálculos do tempo
razoável que lhes resta e talvez pensem vagamente
que esse desejo de rever esses amigos faça parte
de um desejo de dar passos atrás de arrastar
o tempo para trás ou é possível que pensem
sem muita clareza que há ilhas poças largos
um pequeno enclave ou algo como dobras do tempo
onde a morte parece não chegar

Ou nos belos versos de Quem sabe a morte, no fim:

Quem sabe a morte, no fim
das contas, seja uma coisa muito
natural, quem sabe rejeitá-la
seja algo, quem sabe, bastante
estúpido, algo assim como, quem
sabe, fechar o livro predileto
uma página antes do final

Ou ainda, em Primo, em que a morte do outro é apenas um expediente para encobrir a própria morte:

Sonhava às vezes com ele
na verdade estava ainda vivo
sua a morte tinha sido um engano meu
estava no lugar em que sempre esteve
comendo a mesma comida de sempre
vestindo as roupas que sempre vestiu
com os gestos que sempre foram os seus
mas me tratava como se eu fosse nada
na verdade quem tinha morrido era eu

Cito esses poemas apenas para mostrar que, em sua construção poética, Simone Brantes em nada ignora o que Heidegger nos ensina, e que ela não precisa dele, enquanto poeta, para saber disso, como Marguerite Duras não precisava de Lacan para saber o que ele sabia, segundo as palavras do próprio psicanalista francês.

Não há no livro de Simone nenhum desconhecimento da morte em sua dimensão mais radical e própria. Mas Meus mortos, embora fale disso também, fala sobretudo de outra coisa. Algo de que Heidegger, na segunda seção de Ser e Tempo, parece não ter-se dado conta. Ou talvez apenas isso não o tenha interessado. Trata-se não do problema da morte do outro (problema que, a rigor, não interessa à poesia de Simone), mas do outro como morto. Trata-se, portanto, de um modo de ser com o outro ou de um modo de nos relacionarmos com o outro, que implica, por outro lado, o modo como nos relacionamos e somos com nós mesmos. Essa dimensão é tão fundamental quanto aquela descrita por Heidegger e constitui de modo igualmente essencial toda existência humana. Não existiriam, nesse sentido, os vivos sem os mortos, para retormar o título do lindo conto de Joyce. Cada um tem um seus mortos e cada um sabe o que é conviver com eles, encontrá-los nos sonhos, mas também nos cômodos das casas vazias.

A primeira parte do livro de Simone Brantes descreve, assim, com uma precisão impressionante como é conviver com esses espectros e, dentre eles, com o espectro maior que é o pai morto, como lemos em um verso de Madame Mim:

um pai morto precisa de mim

Seria preciso, para pensar esse pai morto, ir, não a Heidegger, mas a Freud, talvez, até mesmo, ao pai morto de Totem e Tabu, para entendermos, afinal, que o trabalho de todo sujeito, assim como de toda a civilização, é, precisamente, fazer com que o pai esteja de fato morto, já que, de algum modo, ele nunca cessa de morrer, isto é, ele nunca está devidamente ou definitivamente morto:

O meu pai entra sempre
no meu sonho mudo e sai calado
tem o rosto nítido de quem
lavou a morte da cara
mas está sempre morto
por isso não fala

Há algo que a poeta de Quase todas as noites denuncia como a covardia dos seus mortos:

Meus mortos não estão encarapitados
no alto das árvores
não são eles que balançam
os galhos quando eu passo nos dias de calmaria
não estão debaixo da terra nem voam pálidos
sobre minha cabeça debaixo do céu azul
Aparecem nos sonhos e desaparecem
quando são cinco ou seis da manhã
meus mortos são covardes
não têm coragem
de viver

O trabalho de escrita de Meus mortos seria assim um longo e laboroso trabalho de enterrar esses mortos, não com a pá, mas com a palavra. A vida, então, não é apenas nosso caminho em direção à morte, nosso ser-para-a-morte, como quer Heidegger, mas também o modo como, nesse caminho, vamos enterrando nossos cadáveres, para podermos viver.

Nesse sentido, o poema que descreveria esse trabalho da escrita de modo mais fundamental, no livro de Simone, seria Reconciliação:

Minha vó cobria os santos
com um pano roxo
nos dias santos

Minha vó
se vestia toda de cinza
todos os dias

Minha vó
não gostava muito de mim
me achava muito
sem modos

Muitos anos
depois de sua morte
sonhei com minha vó
eu carregava no colo
um feixe amoroso
de ossos

No fim, esses cadáveres podem se tornar apenas um feixe amoroso de ossos, graças à escrita. E os mortos que visitam os sonhos da primeira parte do livro dão lugar a outros sonhos, mais marcados pelo desejo, em sua segunda parte. Em Quase todas as noites, depois de Meus mortos, somos presenteados com A moça sonha, uma série de poemas sobre moças que “se encontram pelas moitas”, que “marulham no fundo os líquidos de uma na outra”, que “se comem se comem se comem com as coxas”, como lemos em Como duas moças se encontram. Da primeira à segunda parte do livro, é como se fôssemos transitando da morte à vida, de um gozo mortífero ao desejo vital. E como se fosse o próprio amor a nos conduzir nesse trânsito. E como se fosse através da morte, atravessando-a, que chegássemos neste outro lugar. Os poemas dessa segunda parte fazem com que Simone Brantes se inclua na melhor tradição  lírica de Sapo de Lesbos. Aqui, a musicalidade de sua escrita atingisse píncaros de melodia tão agudos quantos aqueles que ela tinha atingido quando escreveu sobre a dor. Para prová-lo, deixo ao leitor essa maravilha em língua portuguesa que é o poema A moça que me inspira, vista:

A moça que me inspira, vista
tão pouco e de tão longe
é meu colchão, lençol, travesseiro
o que é de mim mais perto
onde me deito, foi feita
dessa matéria de bonecas
pobres (nem louça inglesa
nem corda) precisa da menina
que a aquece, beija e roda

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