Entre a dor e o nada
Em Palmeiras selvagens, Faulkner intercala duas narrativas autônomas que sintetizam as duas linhas mestras de sua obra – a concepção trágica de romances como O som e a fúria e Absalão, Absalão! e o retrato pitoresco do sul dos Estados Unidos encontrado em livros como A cidade e Os invictos
A primeira peculiaridade que chama a atenção do leitor de Palmeiras selvagens, de William Faulkner, é o fato de que se está na verdade diante de duas narrativas completamente diferentes (“Palmeiras selvagens”, que dá título ao volume, e “O velho”), cujos capítulos vão se alternando até o fim sem nenhuma outra ligação aparente entre eles além da simples seqüência. Perguntado por que havia encaixado os capítulos de duas histórias autônomas, o próprio Faulkner se divertiu respondendo que, isoladas, as histórias seriam curtas demais para a publicação em livro. Mas acrescentou, mais sério, que elas tratam de “dois tipos de amor”, o que talvez desse uma pista para a relação entre elas. O bom leitor, entretanto, sabe que o mesmo aconteceria em quaisquer dois romances intercalados de um mesmo autor: procurando, sempre encontramos alguma conexão. E isso é particularmente verdadeiro em Faulkner, um escritor assombrado por algumas poucas obsessões que são recorrentes na sua obra inteira. As duas histórias já foram publicadas isoladamente em edições portuguesas, sob os títulos “Palmeiras bravas” e “O homem e o rio”. Assim, se o leitor preferir se concentrar primeiro numa das narrativas e depois na outra, pulando os capítulos como num “jogo da amarelinha” (mas, é bom lembrar, sem nenhum parentesco com a obra célebre de Cortázar), não perderá nada. De fato, ganhará intensidade, porque as duas histórias têm pesos bastante distintos, de certa forma sintetizando as duas linhas que, grosso modo, acompanham a sua obra – a concepção trágica irremissível de seus romances maiores, como O som e a fúria e Absalão, Absalão!, por exemplo, presente em “Palmeiras selvagens”, e o retrato mais pitoresco, ou mais bem-humorado, digamos assim, que ele faz de uma fatia congelada do sul dos Estados Unidos, encontrado em livros como A cidade (The town) ou Os invictos (The reivers – A reminiscence), e, aqui, em “O velho”.
“Palmeiras selvagens” conta a paixão vivida em poucos meses entre Wilbourne, um médico recém-formado, virgem aos 27 anos, e Charlotte, uma mulher casada, com duas filhas. A história começa já próxima do seu fim, com a linguagem serpenteante de Faulkner concentrando-se na noite em que Wilbourne pede ajuda a um outro médico para salvar Charlotte das complicações de um aborto que a levarão à morte, aborto que o próprio Wilbourne fez a contragosto. Dali, para trás, acompanhamos a crônica de uma tragédia anunciada (Faulkner, a propósito, foi uma das mais marcantes influências de Gabriel Garcia Márquez – livros como Crônica de uma morte anunciada e A paixão nos tempos do cólera têm arquiteturas tipicamente faulknerianas). Uma tragédia no sentido clássico do termo, na medida em que a vontade humana, no universo de Faulkner, será sempre uma pálida intenção, uma cegueira, um tatear perdido em meio à força avassaladora do destino. A escolha, para ele, é a realização de uma teimosia, de uma insistência, de uma obstinação secreta e indevassável – não há, de fato, escolha alguma. Os personagens de Faulkner não podem deixar de fazer o que fazem – parece que parte substancial de sua tensão narrativa caminha sobre essa lâmina. O resultado literário terá daí uma dimensão paradoxal: um dos mais revolucionários narradores do século XX sustenta toda a sua literatura num universo essencialmente conservador – não contra esse universo; Faulkner, de fato, o assimila, integra-se a ele para, quem sabe, melhor compreendê-lo. Nele, sentimos o peso e a memória escravocratas do sul dos Estados Unidos, a sombra fantasmagórica de uma guerra civil e de sua derrota metafísica, sentimos a sua visceral incapacidade de transformação, incapacidade que será em boa parte a matéria-prima de Faulkner, sempre atual – trazendo-o para o momento presente, podemos ver na obsessão milenarista recorrente e obtusa de George Bush, o filho, a exata expressão de um personagem de Faulkner.
O realismo de Faulkner tem assim essa face enganadora: talvez poucos escritores, como ele, apóiam cada sentido e palavra no mundo das coisas, no mundo brutalmente concreto dos objetos visíveis, no mundo que se desenrola interminavelmente ao olhar da narração, mas uma narração que avança sem saber exatamente o que está vendo, insistindo no olhar para melhor descobrir. E o que ela quer revelar não são as ações, as causas e os efeitos, nem mesmo o desenrolar do tempo e de suas conseqüências, na melhor tradição da narrativa americana, na literatura e no cinema. Em Faulkner, ao contrário, a ação não satisfaz nunca; aliás, nem mesmo interessa de fato, porque o mundo inteiro de seus romances já se explicita quase que na primeira página. Nas palavras de Sartre, em um ensaio sobre O som e a fúria, os heróis de Faulkner “nunca olham para a frente; eles olham para trás, enquanto o carro os leva adiante”. O que ele busca é a essência; não é exatamente o real, mas a verdade. O médico se aproxima da cabana onde Charlotte está morrendo “como se já vislumbrasse a verdade, a indefinida forma sombria da verdade, como se estivesse separado da verdade apenas por um véu”.
Se para a consciência moderna as coisas “não têm sentido” e o ser humano é uma coisa entre outras coisas, para Faulkner as coisas “perderam o sentido” e o olhar narrativo é uma busca interminável, necessariamente fracassada, de um sentido primeiro a um tempo obrigatório e inacessível. Daí a ilusão realista de sua obra: a brutalidade concreta de seu mundo vai se erguendo, de fato, sobre uma essência difusa e sempre inexplicada. A paixão de Wilbourne e Charlotte explode súbita e a narração não se detém no “processo”, digamos assim; há uma breve sucessão de fragmentos de cenas em que tudo se descreve, exceto o principal – os personagens de Faulkner não dialogam jamais; eles vivem monólogos intermináveis; tudo o que eles têm a dizer um ao outro já está escrito, e basta um olhar para revelar, ou adivinhar. E quando conversam – como na cena em que o marido de Charlotte oferece um cheque para a passagem de trem, no caso de ela querer voltar para ele –, a fala parece obedecer a um script intocável, a uma lógica transcendente e inacessível à ação humana. O diálogo em Faulkner não tem o poder de transformar. O casal apaixonado vai sucessivamente abandonando tudo – e mais ainda a “respeitabilidade burguesa” que num momento quase os contamina.
Wilbourne e Charlotte são expressões de uma vida alternativa contra o “sistema” que, na depressão dos anos 1930 (o livro é de 39), parece antecipar o ideário hippie dos anos 70, inclusive pelo seu essencialismo messiânico – mas há uma determinação superior nesse abandono. A busca de uma vida, digamos, “autêntica”, que parece mover a paixão dos dois, obedece de fato a uma ordem muito acima do arbítrio pessoal; o amor é uma condenação, não uma dádiva ou, menos ainda, uma escolha: “Estamos condenados, é claro”, diz num momento Wilbourne; “é por isso que tenho medo”. A obsessão pela mulher será, assim, mais um “chamado ancestral” que a expressão de um indivíduo: “Ele pensou em como o fracasso, agindo sobre ela como num homem ao investi-la de uma espécie de humildade digna, tinha contudo provocado nela a manifestação de uma virtude que ele nunca vira antes, uma virtude não só de fêmea mas profundamente feminina”.
Em outros momentos, o adjetivo “imemorial” dá essência à existência (observe-se a força do “como se”, na sintaxe de Faulkner, na perpétua luta de descobrir o que afinal ele está narrando): “Então Charlotte aparecia; eles paravam de falar e a observavam aproximar-se, desviando-se e esgueirando-se entre o amontoado de gente do bar e por entre os garçons e as mesas repletas, o casaco aberto sobre o uniforme simples e de bom gosto, o chapéu de lado, segundo a moda, posto ainda mais para trás como se ela o tivesse empurrado para lá com o antebraço num gesto feminino imemorial, advindo do cansaço feminino imemorial, aproximando-se da mesa, o rosto pálido e cansado também, embora ela se movimentasse vigorosa e afirmativamente como sempre (…)” – e a sentença faulkneriana avança em volutas atrás do sempre impossível (mas obrigatório) reconhecimento do mundo, em que cada gesto, detalhe, objeto e sombra, como na caverna de Platão, são sinais angustiantes de uma ordem superior inacessível.
A segunda história de Palmeiras selvagens de certo modo ilustra, agora com a limpidez de uma parábola, o que acabamos de dizer sobre o mundo faulkneriano. Em “O velho”, nome que se costuma dar ao rio Mississippi nos Estados Unidos, uma personificação da natureza que fará todo o sentido na narrativa, conta-se uma história que terá como pano de fundo uma grande enchente do rio, tratada pelo romancista como um dilúvio de proporções quase bíblicas. Ou decididamente bíblicas, se a idéia do conto como parábola estiver correta. Com a enchente, os prisioneiros de uma fazenda penal da região são deslocados de caminhão; um deles, chamado apenas de “condenado alto”, em oposição a um “condenado baixo”, cai na água durante um translado com um bote e desaparece no rio. Mas ele sobrevive – e a narração inteira é a história do presidiário (que havia sido condenado por uma ridícula tentativa de assalto a um trem arquitetada inteira da leitura de folhetins) tentando desesperadamente chegar a algum lugar com o seu bote e se entregar à polícia para voltar à cadeia. Na louca deriva da enchente do rio, ao sabor das correntes e contracorrentes, marge ando uma geografia que sempre esteve ao lado dele e que ele nunca conheceu, o condenado acaba recolhendo uma mulher grávida prestes a dar à luz e todas as tentativas que faz de entregá-la sã e salva em algum lugar sólido fracassam – com a roupa de presidiário, é sempre expulso a tiros e se vê obrigado a voltar com a mulher para os caprichos da enchente até que chega a uma ilhota que emerge daquele mar e acaba por atender o parto da mulher.
Pelo bizarro da trama, esta é uma história mais leve do que a outra – há nela mesmo um toque de humor: o fato de que um condenado obtuso, cujo único projeto na vida é voltar a ser preso porque a fazenda penal é o espaço que lhe dá sentido, representa o depositário autêntico dos valores da humanidade. Quando finalmente volta à cadeia, já dado como morto, cria um problema burocrático, desatado enfim com o acréscimo de dez anos à pena por “tentativa de fuga”, o que ele aceita feliz, relatando sua aventura aos colegas do presídio enquanto ostenta o charuto que ganhou do diretor da prisão. Do ponto de vista da linguagem, é com a volúpia de sempre que Faulkner descreve a descomunal enchente do “Velho”, expressão de um destino imemorial, poderoso e ines crutável, a mãe Natureza, diante da qual o homem se move incerto sobre uma casca de noz. Mas, na sua ética calvinista, é preciso não desistir; não é o fracasso que representa a derrota, mas a desistência, mesmo que o projeto seja absurdo, estúpido ou inexplicável, como, em meio à miséria, rasgar um cheque de 300 dólares, ou, em outro plano, atualizando a tragédia, invadir o Iraque. Assim como o condenado volta à prisão por vontade própria, Wilbourne, condenado a 50 anos de cadeia por homicídio, num universo moral em que a simples idéia de “aborto” povoa o mundo do inferno, recusa a oportunidade de fugir oferecida justamente pelo marido de Charlotte. Em cada linha, Faulkner celebra a solidão – essa deusa hoje injustamente amaldiçoada – como o espaço por excelência da nossa grandeza. A dimensão da escolha, em Faulkner, não tem meios-tons: estamos “entre a dor e o nada”, como dirá Wilbourne.
Ler William Faulkner é uma aventura incomum, uma experiência que nos revela desde a arquitetura de uma narrativa que, embora tragicamente determinada, não perde a tensão do seu momento presente até a linguagem única, aquela serpente sintática que avança pelos fatos com o brilho e o espanto de quem os está vendo pela primeira vez na vida. A obra de Faulkner é o triunfo da narração como forma de reconhecimento do mundo. Para quem ainda não o leu, Palmeiras selvagens será um belo começo.
Cristovão Tezza
escritor, autor dos romances A suavidade do vento e Breve espaço entre cor e sombra (Rocco), entre outros, e do ensaio Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo (Rocco, no prelo). É professor do Departamento de Lingüística da Universidade Federal do Paraná