Ensaio de Camus inspira disco de samba ‘existencialista’
Arte sobre foto de Albert Camus e obra de Nuno Ramos (Arte: Revista CULT)
Com participações de Juçara Marçal, Gui Amabis e Nuno Ramos, Sambas do absurdo, de Rodrigo Campos, é resposta a falta de sentido na vida cotidiana
Vozes entrecruzadas que cantam sem a definição de um ‘eu’, sons estrangeiros, perturbadores, deslocados do cotidiano e letras como “diz/ quem nasce da costela/ e boia na banheira/ agora toma forma/ e goza na memória” são alguns dos elementos que dão o tom ao disco Sambas do absurdo, idealizado por Rodrigo Campos, com participações de Juçara Marçal, Gui Amabis e Nuno Ramos.
O projeto, que será lançado na próxima sexta (28), tem inspiração em O mito de Sísifo (1942), de Albert Camus, em que um camponês é condenado pelos deuses a empurrar uma pedra para o alto da montanha, de onde ela continua a rolar incessantemente. Quando leu o ensaio, Campos percebeu repetições semelhantes na própria vida, e de alguma maneira se sentiu “acolhido” pelo texto.
“O absurdo causa esse medo de perder a referência, mas por outro ele te dá uma liberdade absurda: já que nada mais tem sentido, você pode ser quem quiser. Muda suas perspectivas”, diz. “No ensaio, o absurdo seria, em tese, essa falta de sentido da vida. Quis brincar com isso. E o samba é um gênero existencialista por excelência: se você ouvir Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, vai ver que todos são muito filosóficos, existencialistas, mas de uma maneira cotidiana.”
Ele menciona a visita de Camus ao país, em 1949, quando o autor e filósofo foi recebido com músicas de Dorival Caymmi: “Ele achou as músicas lindas e tristes, se identificou com o samba brasileiro, e de alguma forma percebeu essa melancolia”.
O compositor acredita que não há essa percepção sobre o gênero porque ele geralmente é cantado em rodas festivas, numa “atmosfera que relaciona todo brasileiro, sua história e a maneira como se formou o país”, longe de ares intelectualizados.
“Meus trabalhos têm tem uma relação direta ou indireta com o samba, às vezes como matéria prima, às vezes como gênero. É algo que já é do meu convívio, da minha formação, e por isso reconheço esse lado existencial, pois foi a coisa que mais ouvi na vida”, afirma.
O álbum contém oito faixas escritas por Nuno Ramos, todas intituladas “Absurdo”, apenas com uma indicação numérica que as difere. Para o artista, o disco é uma resposta indireta aos tempos atuais, à “absurdização” da vida em seus aspectos políticos e sociais.
“Estamos vivendo uma época de grande mudança e isso pede invenção”, afirma. “É uma virada forte, aparentemente conservadora, mas que como qualquer virada exige, insta muita potência e muita vontade. Vivo essa ‘absurdização’ como uma coisa que exige de mim uma voz, e acho que é isso que estamos tentando fazer.”