Com uma canetada, institucionalizou-se a cultura do estupro no país, diz Eleonora Menicucci

Com uma canetada, institucionalizou-se a cultura do estupro no país, diz Eleonora Menicucci
Eleonora Menicucci durante audiência pública sobre democracia e direitos humanos, em 2016 (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Socióloga e ex-ministra da Secretaria de Política para Mulheres no governo Dilma foi condenada a pagar indenização a Alexandre Frota após criticar apologia à violência

 

Em uma entrevista veiculada no dia 22 de maio de 2014 no programa “Agora é Tarde”, da Band, o ator Alexandre Frota admitiu ter violentado uma mãe de santo: em rede nacional contou que a deixou “de quatro”, levantou sua saia, agarrou-a pelo pescoço e, enquanto a estuprava, “fez tanta pressão na nuca da mulher que ela apagou”. Tanto a plateia como o apresentador, Rafinha Bastos, riram.

Socióloga e ex-ministra da Secretaria de Política para Mulheres no governo Dilma, Eleonora Menicucci, 72, foi condenada a indenizar Frota em dez mil reais por danos morais. Isso porque ela criticou o fato de o ministro da Educação, Mendonça Filho, ter recebido o mesmo Alexandre Frota em seu gabinete, dois anos depois o episódio, para discutir projetos ligados à educação, como o Escola Sem Partido.

A ex-ministra disse que Frota tanto assumiu o crime na televisão, como fez apologia ao estupro. O ator, que na época respondia a procedimento investigatório realizado pelo Ministério Público, defendeu-se dizendo que tudo o que fez foi contar uma“anedota em tom jocoso”. A ação, mais tarde, foi arquivada.

Na última quarta (3), Menicucci recebeu com “perplexidade” e “indignação” a sentença proferida pela juíza Juliana Nobre Correa, como relata à CULT: “Ela demonstra não conhecer a lei do Brasil, que coloca o estupro como crime hediondo e inafiançável”.

No entendimento da juíza, o direito de crítica da ex-ministra deveria ser “direcionado ao projeto relativo à educação”, e não à pessoa de Frota. Na sentença, afirmou ainda que o direito de crítica – “admissível, mas não ilimitado” -, somente é válido “quando alicerçado em alguma ideia construtiva para o leitor ou para quem a presencia”.

Conhecida por sua atuação no campo dos direitos das mulheres, Menicucci afirma que a decisão serve apenas para institucionalizar a cultura do estupro no Brasil, país em que, segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher sofre com a violência a cada onze minutos. Em entrevista à CULT, diz que pretende recorrer em todas as instâncias, critica as contradições do Judiciário brasileiro e atribui a condenação ao seu posicionamento no espectro político.

CULT – A decisão da juíza Juliana Nobre Correia contribui para perpetuar a cultura do estupro no Brasil?

Eleonora Menicucci – Claro. Quando eu recebi a sentença, primeiro fui tomada por um sentimento de perplexidade. Depois, quando li a sentença e vi que ela havia sido proferida por uma juíza, senti indignação porque essa juíza demonstra não conhecer a lei do Brasil, que coloca o estupro como crime hediondo e inafiançável. É a maior tortura que uma mulher pode sofrer na vida. Com uma canetada, ela institucionalizou a cultura do estupro no país. Essa sentença agrediu, revoltou e humilhou todas as mulheres brasileiras.

O fato de a condenação ter partido de uma juíza, uma mulher, mostra que o feminismo, apesar de bastante disseminado na sociedade, precisa expandir suas áreas de atuação?

O feminismo tomou conta de várias, de quase todas as esferas da sociedade brasileira, seja na área urbana, rural ou ribeirinha. O que precisa é que a cultura do patriarcado seja exterminada, a cultura do mando e da posse do homem sobre as leis e sobre as pessoas. O feminismo é um movimento que vem se expandindo cada vez mais, entre mulheres jovens, deficientes, negras, lésbicas, entre a população indígena, rural. Só não podemos olhar o feminismo como um movimento de classe média, algo que ele não é – no Brasil é um movimento fortíssimo que busca, briga e luta por agregar a desigualdade de gênero à desigualdade de classe. Mas sempre que conseguimos uma vitória ou temos uma derrota, como no meu caso, temos que refletir e continuar lutando para ampliar cada vez mais nossos espaços.

Como exterminar a cultura do patriarcado?

Educação. Enquanto ministra, fiz várias parcerias com o MEC (Ministério da Educação), como incluir os enfrentamentos da violência e a questão de gênero na Base Nacional Curricular, e fazer do tema da redação do Enem de 2015 a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Imagine, oito milhões de estudantes escrevendo sobre violência contra a mulher implica que oito milhões de famílias discutiram o tema naquele final de semana. Então é preciso educação, e a começar por dentro de casa: menina poder brincar com carrinho e menino com boneca. E mesmo quando não há filhos, numa relação entre duas amigas, duas mulheres, dois homens, enfim, é preciso construí-las com direitos iguais, de maneira livre e sem preconceito.

Na sentença, a juíza afirmou que o “direito de crítica é admissível, mas não é ilimitado”. Em outubro de 2016, no entanto, o Ministério Público arquivou a ação contra Frota por entender que acatá-la implicaria em cercear sua liberdade de expressão. A que atribui essa incoerência no entendimento dos dois casos?

Me assusta muito que a juíza tenha citado Alexandre de Moraes [atual ministro do Supremo Tribunal Federal] na sentença, porque essa frase é dele. O poder Judiciário no Brasil tem essas incoerências, e tem demonstrado em vários níveis todas essas contradições, além de uma postura política. Acho que fui uma vítima, não só por ter sido condenada, mas porque eu represento uma luta histórica das mulheres e porque eu era ministra do governo que foi golpeado, sem dúvida nenhuma.

Acredita que seu posicionamento político pode ter influenciado na decisão da juíza?

Tenho certeza. Eu sou uma mulher de posições, nunca escondi que fui presa política, que lutei contra a ditadura, que fui torturada, exilada e que no último ano estou na linha de frente da resistência contra o golpe.

Organizações de mulheres pretendem levar o caso à ONU (Organizações das Nações Unidas) e à OEA (Organização dos Estados Americanos). Como pretende prosseguir agora?

Vou recorrer em todas as instâncias. Na primeira audiência, em 6 de setembro do ano passado, o conciliador propôs um acordo, assim como o Frota – disse que já tinha se desculpado, e pediu que eu me desculpasse também. Respondi que não, porque não abro mão do que falei. Fazer acordo aqui significa jogar fora toda a minha história.

 

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