“Ela mereceu ser estuprada”

“Ela mereceu ser estuprada”
Gertrude Abercrombie, The courtship, 1949 (Foto: Reprodução)

 

Há quatro anos Mariana Ferrer trabalhava numa casa de eventos em Florianópolis.  Ela tinha 19 anos. André Aranha, um dos convidados, colocou droga em sua bebida e a estuprou. Todas as acusações de Mariana foram comprovadas por exames e testes periciais. Foi absolvido na primeira e na segunda instância.

O site The Intercept Brasil publicou parte da audiência da segunda instância. Sem que ainda existisse o batismo conceitual (isso ficará a cargo do juiz), ali estava o advogado tecendo a tese do “estupro culposo”.  Ele organizou as supostas perguntas a Mariana com técnicas de tortura. O torturador, em sua ferocidade discursiva, avança sobre a vítima sem deixá-la tempo para pensar. Altera o tom de voz, agita fotos e papéis. Não pergunta, acusa. Não escuta, grita. E humilha.

As camadas de violência sobre Mariana são justapostas. Ela aciona o Estado para demandar reparação: pede justiça. Argumentos fora do processo são acionados pelo advogado para negar a credibilidade dos exames periciais: Mariana postava fotos sensuais nas redes, Mariana usava roupas vulgares, Mariana vive da imagem. Diante da violência do advogado do réu, Mariana sucumbe. A sessão de tortura a desmonta. Ela tenta segurar o choro. Murmura “eu nunca fiz mal para ninguém”. Há quatro anos ela luta por justiça. A prova na justiça brasileira parece de pouca utilidade. O excesso de provas materiais que comprova o estupro e a droga no seu corpo não são suficientes para que seu lugar de vítima seja assegurado. “Prova” é uma coisa que o Estado inventou para continuar distribuindo desigualmente a justiça.

A estratégia da defesa parece óbvia: provar que a vítima é a única responsável pelo estupro. Diante do assédio da jovem, com suas roupas sensuais, o rapaz de boa família não teve escolha: foi coagido, por sua natureza de macho, a fazer sexo não consentido. Na performance do advogado do réu, somos levados/as a acreditar que a jovem deve ter sonhado (ou planejado em cada detalhe hitchcockiano) ter a sua primeira relação sexual em um canto qualquer com um desconhecido (rico) para depois fazer fama com sua própria desgraça.

Quando a decisão da justiça foi publicada chegamos à conclusão de que a estratégia do advogado foi eficaz. Uma nova figura nasce: “estupro culposo”. Vamos reencontrar Bolsonaro agora na pele de André. Quando Bolsonaro era deputado, afirmou, aos berros, que não estuprava a deputado Maria do Rosário porque ela não merecia. O que o verbo “merecer” sugere? Que a deputada não tinha os atributos necessários de feminilidade que despertassem o ímpeto de macho de Bolsonaro? A urdidura discursiva do advogado segue caminho próximo ao do homem que ele ajudou a eleger. Talvez ele tenha se inspirado em Bolsonaro. Mariana merecia ser estuprada. O seu cliente não fez nada mais do que atender aos desejos do seu próprio corpo acordados pelas artimanhas dessa jovem sedenta de fama.

Pergunto-me: a figura do “culposo” é, de fato, nova quando discutimos violência contra as mulheres? Qual seria a diferença entre o “estupro culposo” e o assassinato por “lavagem da honra”? No primeiro caso, a violência é desencadeada pelo comportamento da vítima: ela queria ser estuprada. A suposta vítima planejou seu próprio estupro porque tem um tipo de estrutura masoquista que encontrará, neste caso, prazer não na própria dor, mas na fama derivada da publicização dessa dor. No segundo, o assassinato (lavagem da honra) é a garantia de vida de quem comentou o crime, pois, a suposta desonra cometida pela mulher transformaria a vida do homem em não-vida. A história do feminicídio está atravessada por narrativas de homens que mataram para “limpar suas honras”.

Eis que o Estado reinstaura no seu interior a inversão amplamente analisada e denunciada pelos movimentos feministas: a transformação da vítima em ré. Nos dois casos, são as mulheres as responsáveis por suas desgraças. Está aberto o caminho para a invenção, pelo Estado, do feminícidio culposo. É o passado transformado em agora, no tempo presente.

Berenice Bento é doutora em Sociologia e professora do Departamento de Sociologia da UnB


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