Alegria, expansão e metamorfose

Alegria, expansão e metamorfose
O escritor Eduardo Jorge (Foto: Carolina Ariza/Reprodução/Facebook)

 

Estamos sempre tropeçando na linguagem e é a partir desta queda que poderemos recolher os vapores de novas imagens. […] imagens que recuperem espaços de enigma, que nos coloquem diante de novas perguntas acionando assim territórios de esperança.

 Edson Luiz André de Sousa

 

Em 2004, Eduardo Jorge publicou um libreto de força impressionante, 50 exemplares: san pedro. O texto fragmentado parte de um jogo entre morada, relato, vídeo-dança, conversa, visita, poema etc., encartado num envelope pardo que se redesenha entre o selo que enobrece o papel de embrulho e a experiência do corpo habitante do antigo hotel, hoje uma ruína de fundação, no simbiótico bairro Praia de Iracema, em Fortaleza, no Ceará. Em que pese o nome aos frangalhos do quase mito, a personagem de José de Alencar, o bairro se rende ao prédio e, ao mesmo tempo, o desobedece. Com a estrutura parcialmente condenada, até meados dos primeiros anos deste século obtuso, podia-se viver ali. Assim é que aparece um projeto de pensamento em que o corpo sempre lança e lançará os dados a um limite intenso.

Ao mesmo tempo, o que poderia ser um primeiro trabalho – que reuniu, numa expansão, um grupo de bailarinos, videomakers, poetas suspeitos, amigos e a abertura da ruína entre visitada e moradia –, que resultou no libreto e num vídeo-dança, é também uma espécie de apagamento radical de um caderno anterior, ex-ame, que publicou em 2001, quando ainda era guitarrista de uma banda punk, a Diagnose. Os três anos que separam os dois pequenos livros engendram o corte produzido por san pedro [o santo, Quéfas; o cacto regado com mescalina e o antigo hotel], sem cicatriz aparente, no que veio a fazer depois esticando a lição da viagem e da visita, insistindo numa implosão da linguagem, numa conversa que se arrisca sem parar com Mallarmé ou Bataille, por exemplo, a de que estamos o tempo inteiro impedidos de dizer.

Os livros que vêm, depois, se empenham em traçar o impasse mais imaginativo do dispêndio: refazer a casa, numa silhueta ou contorno da casa como uma cronogeografia que se perde para sempre: Espaçaria [Lumme, 2007], Pa Pum [com Lucila Vilela, Coleção Exilir, prensa manual, editado por Flávio Vignoli e Ricardo Aleixo, 2011], A casa elástica (minisséries) [Lumme, 2015], como se fosse a casa (uma correspondência) [com Ana Martins Marques, Relicário, 2017] e, agora, Teoria do hotel [Selo Demônio Negro, 2018], em que retoma e re-expõe, com outra força não menos impressionante que a do mínimo san pedro, uma ideia de hotel como alegria, expansão e metamorfose, e não apenas mero espaço de passagem num joguinho simplório de idas e vindas, entradas e saídas, anonimato ou o repetitivo enfado de um não-lugar porque sem memória. Eduardo Jorge apresenta um hotel com memória, esta, que oscila porque esquece como um direito ou porque o direito é um fantasma que mora ao lado, tal como uma casa que se enuncia como uma testemunha para a utopia, ou seja, intervir agora, uma emergência: “A extensão à habitação, ao alojamento, à residência, à casa, decorre antes de mais do tempo concedido à ocupação de um espaço e vai até à ‘última morada’ onde reside o morto.”, como sugere Derrida.

Teoria do hotel impõe o gesto: a teoria é a prática da força porque exige pensamento, e não forma. Dividido em cinco partes e um p.s. [Ler, cavar com os olhos; Obras imperfeitas da imaginação; A língua precisa dos minutos; Tardes conjuntivas e Velômanas], o livro arrasta uma seriação que se repete numa transparência para o que difere; e aí eis a metamorfose, que é sempre gesto, logo algo fortemente contrário à transformação, o que o nome já aponta, ação. Encontra-se, para exemplo, sete poemas intitulados Teoria do Hotel, 6 Homens sem livros e 5 Velômana. E a cada um, um outro; a cada outro, um qualquer ou nenhum. O apontamento em distensão desse enlace, outro lance de dados que jamais abolirá qualquer lance de dados, pode ser lido no poema Gabinete físico de olhares, ao imaginar que todo hotel é também sempre um ateliê, uma armadilha para o trabalho: “lutando contra as ideias e dizendo para si, até esquecer, que escrever é físico”. Ou aquilo que Ernst Bloch anunciara: “pensar é transpor”.

Daí que o erudito e arejado posfácio de Eduardo Sterzi replique a transposição, primeiro, por exemplo, ao refazer o percurso do hotel em alguma poesia brasileira para dizer do que seu xará escapa inteligentemente e, depois, ao reivindicar o termo para o “impessoal da outra vida das palavras” até a ideia de uma “habitação da passagem” ou, mais longe ainda, do quanto “a casa é uma ilusão xenófoba”. Para isso indica que “quem diz hospitalidade diz também hostilidade (hospes, como sabem todos que leram Benveniste, deriva de hostis).” É como se Eduardo Sterzi nos lembrasse que o livro de Eduardo Jorge é moeda falsa, merda nos bolsos, o que figura ao anotar no poema Marco zero: 1990 [repisando Walter Benjamin] a cantilena de Sá Carneiro para Fernando Pessoa: “mas não tenho dinheiro” ou que “París es una invención de latinoamerica”. No poema Sexta-feira da paixão, escreve: “(Clínica do Louvre) // inútil oração / ao bradarem / incrédulos besta. / se existe um refrão / para dia de sol, / religião ambidestra: / os incrédulos meditam / o silêncio das bestas; / destruído o templo, / os pés sujos de terra, / as bocas distantes, fontes / da ausência – última / ceia, inúmeros insetos, / às dezoito horas, / repetem séculos passados.” E num fragmento do último poema da série manca Homens sem livros, anota: “Este é um livro falado, / ele passou pela língua, / em estado de notas seu / corpo saliva a palavra / em cada página, insônia.”

A força deste Teoria do hotel se demora no instante de um pensamento que treme o sentido do quanto a vida individual é limitada ou, como inscreve Maria Gabriela Llansol, do quanto “uma autobiografia é medíocre”. Eduardo Jorge alarga o corpo e o mundo até tocar a inexistência de um outro que só pode existir singularmente no impossível mágico e alegre da estranheza, isto que assusta tanto a quem precisa manter-se num centro, ocupar um centro, ser num centro etc. “Na Teoria do Hotel é a / espera que importa”: vapor de novas imagens, alguma esperança. E o mais bonito junto a tudo isso é que Eduardo Jorge tornou-se professor, sempre estudante, gosta de bicicletas e se veste como uma espécie de Alfred Jarry que poderia ter sido o mestre do francês que gasta para pensar mais perto de Charles Baudelaire ou, na indagação de um homem sem livros, quando se esforça para lembrar a língua hostil que carrega feito uma doença para dar aulas de literatura brasileira em Zurique.

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, Pasolini: retratações [com Davi Pessoa] (7Letras), avião de alumínio [com Júlia Studart] (Quelônio), Geografia aérea (7Letras), Jogo de varetas (7Letras), As mãos (7Letras), A forma-formante – ensaios  com Joaquim Cardozo (EdUFSC) e Maria quer o mundo (Edições SM)

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