É hora de enfrentar as passas, cidadãos!

É hora de enfrentar as passas, cidadãos!
(Arte Revista CULT)

 

Passamos a vida associando essa época da virada do ano a boas coisas, a prazeres que nem sempre nos visitam durante o ano “útil”. Nesse imaginário, dezembro e janeiro são meses de descanso, renovação, férias, décimo terceiro, viagens, encontros, confraternizações, presentes, amigos, festas, fartas porções de comida, altas doses de bebida, generosidade, compaixão, alegria. Sabemos que não é bem assim, na prática, mas embarcamos nessa, no limite das nossas possibilidades, e até que funciona por algumas horas, às vezes por alguns dias. Eterno enquanto dura.

Mas o Brasil (nem quero erguer mais a cabeça para olhar para o mundo) não dá folga e vai metendo profundas angústias no meio das boas sensações que a virada de ano pode, de fato, oferecer. Mais ou menos como as (indesejadas?) uvas passas que aparecem em todos os pratos da ceia natalina. E acho que não terei muita dificuldade para reunir pessoas que, como eu, preferem uvas passas no arroz às notícias do novo governo federal do Brasil. Pessoas que preferem uvas passas – no salpicão, no cuscuz, no bacalhau, no escambau – às tristezas e perguntas todas que infestam nossa cabeça neste dezembro que antecede um primeiro de janeiro traumático.

Por quê? Chegou a hora, enfim, de Bolsonaro assumir o poder. Se a simples existência dessa figura, como um deputado inexpressivo (mas nem por isso menos repulsivo) no programa da Luciana Gimenez, já azedava nossos melhores pratos; se a campanha eleitoral foi capaz de destruir nosso apetite; se as medidas de transição, das nomeações às declarações, conseguem ser mais amargas do que nosso pessimismo poderia imaginar; convenhamos, não temos muita razão para acreditar que teremos dias menos intragáveis a partir de sua posse. Pelo contrário. Infelizmente.

É triste, mas quem está de olho nos primeiros movimentos do novo governo não vai embarcar demais no clima de “renovação” da virada de ano. Mesmo os amigos mais empolgados, aqueles que me faziam acreditar que o “réveillon” era um momento de se “reanimar” para a vida, andam meio engasgados. Parece que as “passas” intragáveis do novo governo (e eu peço perdão às passas e seus admiradores por envolvê-las nesse assunto) já se espalharam por todo o cardápio e aumentam a dificuldade de engolir cada dia que nos aproxima do famigerado “Governo Bolsonaro”.

São muitas passas, muitas mesmo para simplesmente engolirmos. Você mastiga, mastiga, mas a “ração” não desce. Cada notícia que mordemos parece que cresce dentro da boca e gruda e engasga e tenta nos sufocar. Como é que vamos nos empolgar com o “ano que vem” enquanto não conseguimos engolir o que passou? Pior que isso: enquanto o que há de mais violento no nosso passado se insinua no futuro?

É “Trump 2020” no boné, é facada no SESC, é “bolsa-estupro”, retirada de obras sacras, exploração “racional” de reserva indígena, o motorista de 1,2 milhão de reais, caixa-dois que pede perdão, carteira de trabalho “emprego sem direitos”, armas, goiabas, laranjas, mais militares nos ministérios do que na outra ditadura, um ministro vestido de astronauta, o outro ganhou o cargo porque prendeu o adversário, outros são lunáticos que veem marxismo e comunismo por todos os lados… enfim, é passa demais para nosso modesto paladar democrático. Não desce.

É tanta passa que, como diz Drummond num daqueles poemas que sempre circulam em dezembro, “Receita de ano novo”, é impossível “parvamente acreditar/ que por decreto de esperança/ a partir de janeiro as coisas mudem/ e seja tudo claridade, recompensa,/ justiça entre os homens e as nações,/ liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,/ direitos respeitados, começando/ pelo direito augusto de viver”.

Tudo indica que teremos um ano bem difícil, um ano intragável. Não me sinto bem de pensar assim, muito menos de anunciar isso a meus leitores, justamente as pessoas a quem desejo o melhor ano possível, mas o país vai ter um ano dificílimo, os trabalhadores vão ter um ano difícil, os pequenos empresários, os empreendedores, os pejotas, os frilas vão ter um ano difícil. Quem trabalha com cultura e educação, lamento, vai ter um ano especialmente difícil. Duplamente difícil, porque, além das dificuldades concretas (as de sempre e as novas), vamos ter que ouvir os discursos do novo governo sobre essas áreas e outras, engolindo a seco as “ideias” que defendem.

Talvez eu tenha algum leitor que acredite que o próximo ano vai ser, realmente, um ano melhor, apesar de tudo que vai ganhando destaque no noticiário, assim como devo ter leitores que gostam de passas, muitas passas de verdade na ceia. Espero que aqueles estejam certos e, claro, respeito o paladar destes, mas vou me preparar para um ano de grandes dificuldades, com muita coisa difícil de engolir.

É o mesmo Drummond que diz: é “dentro de você que o Ano Novo/ cochila e espera desde sempre”. Talvez seja. De minha parte, estarei por aqui, nesta coluna, e nos lugares em que possa encontrar as pessoas pelas quais e com as quais dá gosto tentar acordar o ano novo – um tempo novo. Espero que vocês também estejam. Mais fortes depois das passas da ceia, mais fortes contra as passas do noticiário. E que 2019 seja um ano de muitas vitórias, principalmente daquelas em que não acreditamos ainda.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.

(2) Comentários

  1. Não gosto de uvas passas, não gosto de “passar as passas do Algarve”, não gosto sequer imaginar o que 2019 reserva ao nosso Brasil.
    Gosto de poesia e gosto de acreditar que é possível continuar a acreditar.
    Abraço amigo e fraterno deste lado de cá do Atlântico, baptizado pelo Tejo. isaFerreira

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