Duas meninas, dois professores: interditos

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Duas meninas, dois professores: interditos
Clarice Lispector, Rio de Janeiro, 1969 (Acervo IMS)

 

Sofia

“Os desastres de Sofia” é um dos contos mais intensos de Clarice Lispector. Insere-se, originalmente, em A legião estrangeira (1964). Em tom autobiográfico, a narradora reporta-se à singular experiência que tivera, aos nove anos, em sala de aula com seu professor. A estrutura ficcional inconfundível, constituída de uma sintaxe densa que registra certa turbulência interior atada a um fluxo de pensamento capaz de reverberar imagens contundentes, por vezes indigestas, abismais – não menos dotadas de sublimação –, confia materialidade à aventura errante dessa ex-aluna que recapitula seu mau comportamento em classe. Cáustica e implacável é a tarefa de Sofia, que expõe insistentemente aos colegas a fragilidade daquele senhor “gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos” e com “paletozinho apertado”.

As manhãs do mestre e da discípula plasmam-se desta forma: do fundo da sala, sentada na última carteira que lhe fora designada, ela fala alto e encara-o com desafio, inibe-o até ele perder o foco e gaguejar. Mas o faz movida por um impulso binário de raiva e amor, na confusa esperança de despertá-lo para a vida diante da qual – intui a pequena Sofia – esse sujeito que “passara pesadamente a ensinar no curso primário” se acovardou.

O conto toma de empréstimo o título de uma novela escrita pela Condessa de Ségur (Les malheurs de Sophie [1858]), obra, aliás, que muitos leitores adolescentes da geração de Clarice percorreram. Sucede que os desastres impostos à personagem clariciana ultrapassam as reinações de uma criança peralta. A altivez dessa Sofia (do grego, sophía: sabedoria) implica tropeços de outra ordem, em travessia arriscada e dolorosa, que dá vazão à ignorância mais pura, inata, assertiva e paradoxalmente lúcida, que a autora de A paixão segundo G.H. (1964) potencializou no curso de toda sua literatura – uma ignorância que beira a genuína aprendizagem, cuja essência o léxico teima em perseguir e nomear.

Como é de se prever na trama de Clarice, o discurso insurge-se à revelia das convenções. O dual mede forças, provoca atritos, faísca. O professor personifica, nesse enredo, o adulto que a criança se vê compelida a salvar, sem saber ao certo do que e para que (“era como se, sozinha com um alpinista paralisado pelo terror do precipício, e, por mais inábil que fosse, não pudesse senão tentar ajudá-lo a descer”). O homem, que em vez “de nó na garganta tinha ombros contraídos”, avulta – prematura e proibitivamente – como paradigma de desejo à Sofia dos tempos de escola, época em que corria com vigor incomensurável pelo terreno expansivo e assimétrico do colégio, deslizando as mãos em troncos de árvores nos quais alunos entalham desenhos secretos e íntimos com seus canivetes.

Se eram essas as ações matutinas da protagonista, os devaneios noturnos traduziam diferentes inquietações: “De noite, antes de dormir, ele me irritava”; “(…) não falarei mais de mim no sorvedouro que havia em mim enquanto eu devaneava antes de adormecer”. E acrescenta: “eu estava sendo a prostituta e ele o santo. Não, talvez não seja isso. As palavras me antecedem e me ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito.”. Com efeito, tanto a matriz espacial quanto a temporal se destacam na tessitura. A narradora adulta, no presente do enunciado, opera na memória suas reminiscências escolares – recorda que, com treze anos de idade, lhe chega da varanda do sobrado a notícia “gritada” por um “ex-amiguinho” de que “o professor morrera naquela madrugada”. A revelação suscita mal-estar, ativa e mobiliza a intriga. Se não fosse essa súbita informação, o leitor talvez desconhecesse, em pormenores, a principal cena do conto.

Determinado dia, o professor atribui à classe uma atividade. Solicita o desenvolvimento de dada composição a partir desta historieta: um homem, sem dinheiro, sonha que descobriu um tesouro; logo, caminha mundo afora em busca da fortuna, mas não a encontra. Retorna então à sua humilde casa e, desprovido de comida, sustenta-se das raízes que cultiva no quintal; prospera e enriquece à medida que decide comercializar o próprio plantio.

Sofia é a primeira a concluir a lição: sai triunfante do recinto, com tempo a mais para o recreio. Contudo, quando os colegas já haviam finalizado a tarefa, resolve regressar à sala a fim de apanhar um objeto e é surpreendida pelo mestre, entre pilhas de cadernos. Desprevenida, apenas segundos depois a aluna se dá conta de que existe alguém ali: “Sozinho à cátedra: ele me olhava.”.

A passagem que se seguirá manifesta uma pungência extraordinária, exemplar do modo voraz e da tal força de autoria na penetração e no esquadrinhamento da condição humana. O professor, ao contrário do que supõe a indefesa Sofia, não revida o maltrato a que diariamente é submetido. Na realidade, encontra-se atônito porque acaba de ler a redação e se extasia com o horizonte (às avessas) interpretativo que a aluna de atitude arrojada oferece ao “tesouro” inscrito na fábula; está sobretudo maravilhado com o desfecho que ela confere à história.

“Os desastres de Sofia” traz a lume ingredientes caros à poética clariciana: um detalhe físico é, pois, ampliado e ganha conformação grotesca; um acontecimento resulta em desestabilização psicológica, culminando com estranhamento que gera vertigem e náusea; um silêncio é otimizado e alavanca uma linguagem de radiação insólita e avassaladora, cujo estilo, em dicção experimental, desenha associações inusitadas, serpenteado por figuras como o oximoro, a hipérbole, a sinestesia, acenando ao exercício fulgurante do fazer literário; uma voz feminina se mostra em perspectiva de alteridade e um inseto é referenciado.

Eis alguns segmentos valiosos desta teia:

“Ao som de meu nome a sala se desipnotizara.

E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande e muito feio, e que ele era o homem da minha vida.

(…)

Para a minha tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamente os óculos. E olhou-me com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com as inúmeras pestanas, pareciam duas baratas doces.

(…)

Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara (…) como se um fígado ou pé tentassem sorrir, não sei. (…) Eu vi dentro de um olho.

(…)

Naquela mesma noite aquilo tudo se transformara em incoercível crise de vômitos que manteria acesas todas as luzes de minha casa.”

Joana

Se a convivência entre Sofia e o homem do “paletozinho apertado” ocorre em espaço público (a escola), a aproximação e as conversas entre Joana e o professor, em Perto do coração selvagem (1943), efetuam-se em compartimento privado: a sala de visitas da residência desse educador que oferece conselhos.

No romance de estreia de Clarice Lispector, a protagonista é adulta e casada, vive um conflito existencial e conjugal desmesurado. Otávio, o marido, possui uma amante; Joana, casualmente, conhece um homem e com ele se relaciona. O tempo delineia-se difuso para ela; há um vaivém de efêmeras lembranças. De fato, seu modo particular de interagir com o mundo apresenta-se digressivo: mimetiza o comportamento obscuro, o estado introspectivo e agudo de sentir dessa mulher.

O narrador, em terceira pessoa, mostra-se receptivo a todas essas impressões – conjuga sua voz discursiva às reminiscências da anti-heroína que fica órfã muito cedo, mora com os tios e, na sequência, é conduzida a um internato. Nessa altura da vida de Joana – fase tensa, de autoconhecimento e de incertezas (“a puberdade elevando-se misteriosa”) –, o instinto se expressa por meio da transgressão que caracteriza a mentira e o roubo de um livro.

A ida à casa do professor deve-se não somente à necessidade de proteção – outros motivos a fazem procurá-lo. A fala reflexiva e o status profissional desse sujeito que teria idade para ser seu pai; a possibilidade – ao término da entrevista – de escapar redimida e aliviada dos pecados cumulativos que pesam sobre si; a procura atordoante por entendimento – tudo isso inquieta Joana, tudo isso a incita.

Na primeira parte do livro, anuncia-se que o professor “milagrosamente penetrava no mundo penumbroso de Joana e lá se movia de leve, delicadamente”.

“– Não é valer mais para os outros, em relação ao humano ideal. É valer mais dentro de si mesmo. Compreende, Joana?”

“– Afinal, nessa busca de prazer está resumida a vida animal. A vida humana é mais complexa: resume-se na busca do prazer, no seu temor, e sobretudo na insatisfação dos intervalos. É um pouco simplista o que estou falando, mas não importa por enquanto. Compreende? Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso, piedade, bondade, é seu temor. (…)”.

Nesse território ambíguo, Joana testa seus próprios limites. Sente-se vigiada pela esposa do professor, motivo pelo qual cultiva um ódio e uma admiração por ela. É como se o ar de superioridade daquela mulher se justificasse por ter uma casa e um marido para cuidar. Deixa transparecer que ele tem horário para chegar ao trabalho: não seria justo empregar tanto tempo com uma menina desorientada.

E sem conseguir esboçar uma despedida, pois tivera a segunda tontura no dia, a órfã evade-se da casa. Antes, observa sobre a cristaleira reluzente uma “estátua nua, de linhas docemente apagadas como num fim de movimento”. Prossegue em direção à praia e deixa para trás “aquele homem forte”, cujos dedos se intercalam à capa e às páginas de um livro. Na areia, os pés da menina “afundavam e emergiam de novo pesados. Já era noite, o mar rolava escuro, nervoso, as ondas mordiam-se na praia.” Horas depois, de regresso à casa dos tios, entrega-se à voluptuosidade. Não por acaso, o capítulo retratado intitula-se “O banho”: “A água cega e surda mas alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira. O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes.”

Na segunda parte do romance, registra-se o reencontro com o professor. Joana não é mais uma menina – sua intenção é informar e ouvi-lo sobre o casamento com Otávio, que tem data marcada. Falta coragem à protagonista para contar as novidades: descobre que o professor foi abandonado pela esposa. Ele engordara, ficara doente; agora envelhecido, com “o grande corpo largado sobre a cadeira”, encontra-se disperso e de pijamas sob os cuidados de um jovem enfermeiro. A casa não mantém a conservação de antes; o que salta aos olhos da visitante, em vez da cristaleira, é o “relógio e a mesinha dos remédios”. Esvai-se a virilidade daquele que tinha cabelos negros – no momento, o “professor parecia um grande gato castrado reinando num porão”. Não bastasse, acidentalmente um de seus chinelos escapa do pé, e “seu pé de unhas curvadas e amareladas surgira nu.”.

Sofia e Joana

Evidentemente, as relações de convivência que Joana e Sofia estabelecem com os professores infringem a ordem do convencional. Clarice diagrama, já em Perto do coração selvagem, dominantes que ressaltam o lado oblíquo e intempestivo da vida. Em outros textos seus, professores reaparecem desempenhando papéis de menor ou maior prestígio – é o caso dos romances A maçã no escuro (1961) e Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), e do conto “O crime do professor de matemática”, em Laços de família (1960). Com a representação dessas personagens da arena do ensino, o conhecimento, em si, mais se pareceria com a enigmática figura de um matagal: grave e movediça… apaixonadamente encrespada.


RICARDO IANNACE é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Usp, professor de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do programa de pós-graduação da Usp e autor de A leitora Clarice Lispector (Edusp)

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