Dostoiévski: os anos de formação
Nos últimos anos, o Brasil tem recebido e produzido uma avalanche de biografias de escritores: uma verdadeira febre de livros que ocupam estantes, esmiuçando vidas, revirando velhos arquivos, pescando casos picantes que acabam dando o molho para uma receita editorial de sucesso. Mas quase todas essas obras se tornam rapidamente enfadonhas e, saciada a fome pela curiosidade rasteira, o cartapácio volta a estufar a estante. Durante a Bienal do Rio de Janeiro, a Edusp põe em seu estande uma das maiores obras do gênero que se tem conhecimento e que, por sua incrível capacidade de aliar reflexão crítica à biografia, foge a esse padrão da facilidade: Dostoiévski – As sementes da revolta (1821-1849), o primeiro de cinco volumes da biografia do escritor russo Fiódor Dostoiévski, escrita pelo crítico norte-americano Joseph Frank.
A confecção da obra inteira tomou mais de 40 anos da vida de seu pesquisador. O primeiro volume, publicado originalmente em 1976, se ocupa dos primeiros anos de vida do autor genial de O idiota e Os irmãos Karamazov. E é um trabalho profundo e que, pela sua qualidade, já é um dos clássicos da crítica literária contemporânea. Frank, professor emérito de Literatura Comparada na Universidade de Princeton e professor de Literatura Comparada e de Língua e Literatura Eslava da Universidade de Stanford, que, antes de partir para a escrita, passou 20 anos pesquisando, não só é um conhecedor arguto da obra de Dostoiévski como também se tornou uma referência internacional sobre a Rússia do século passado.
Ele se aproximou do estudo da obra de Dostoiévski quando preparava uma série de conferências sobre o existencialismo. “Com a finalidade de mostrar um quadro dos antecedentes históricos, comecei por uma análise das Memórias do subterrâneo, de Dostoiévski, como obra precursora da atmosfera e dos temas que encontramos no existencialismo francês.” Mas logo se viu guindado a aprofundar seus conhecimentos, tendo de examinar minuciosamente o ambiente sociocultural que, para ele, parecia ser o ponto de partida do escritor russo, nascido em Moscou em 1821.
“Resumindo em poucas palavras minha visão da obra de Dostoiévski, diria que ela é uma brilhante síntese artística das grandes questões de seu tempo, uma interpretação evidentemente pessoal, porém mais orientada do que outras para preocupações externas a ele mesmo”, conta Frank no “Prefácio”.
Como ele também afirma, seu interesse pela vida pessoal do escritor é estritamente circunscrito. “Quando descrevo o que está por trás dos acontecimentos da vida particular de Dostoiévski, apenas me aprofundo nos aspectos dessa expe riência cotidiana que parecem ter alguma importância decisiva – ou seja, naqueles que ajudam a compreender melhor seus livros.” Seu propósito é o de interpretar a obra de Dostoiévski, lançando mão de documentos de época, correspondências, memórias, testemunhos e textos críticos – além dos romances do autor.
Neste primeiro volume, Frank relata os anos de formação do escritor, sua infância entre brincadeiras e o olhar severo e educador do pai, sua relação de amizade com o irmão Mikhail, os anos de estudo na Academia Militar em São Petersburgo, o ingresso nos círculos literários com a publicação de seu primeiro romance (Pobre gente) e a reação hostil da crítica ao seu segundo livro, O duplo.
Frank vai relatando, assim, a vida do escritor pela perspectiva de sua obra, aproveitando para desfazer a “lenda” que acabou sendo criada em torno de Dostoiévski a partir do famoso estudo “Dostoiévski e o parricídio”, de Freud – para quem a epilepsia do escritor teria origem num trauma infantil (tese que, segundo Frank, tinha uma base documental bastante frágil, senão errada). Com tradução de Vera Pereira, Dostoiévski – As sementes da revolta conserva a elegância da escrita de um dos maiores estudiosos desse escritor que ocupa posição central na história da literatura universal.
(1) Comentário
Deixe o seu comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
Lido em 01-10-2023.