Dossiê | A atualidade estratégica da semiótica

Dossiê | A atualidade estratégica da semiótica

 

 

O boom da semiótica como uma nova ciência ocorreu entre os anos 1960 e 70, tendo seu centro de distribuição na Europa Central e nos Estados Unidos. Como explicar essa explosão? Foi justamente nessas décadas que se deu o clímax da cultura de massas, já composta pelo jornal, cinema, publicidade e, então, amadurecida pelo rádio e pela TV como uma cultura da difusão de informações e entretenimento. Foram muitas as consequências socioculturais por conta das misturas na antiga separação entre cultura erudita versus popular, e também foram muitas as transformações psíquicas decorrentes de novos hábitos implantados no estilo de vida dos receptores. 

Na miríade de transformações, destaca-se o fim da soberania da cultura livresca como fonte exclusiva de conhecimento e de saber. Tornou-se, assim, imperiosa a necessidade de uma ciência que fosse capaz de estudar a profusão diferenciada de tipos de signo que brotam nos processos de comunicação visuais, verbo-visuais, verbo-sonoros, audiovisuais. Primeira lição a ser extraída: após a Revolução Industrial, com os novos aparelhos que ela trouxe para a produção, reprodução e difusão de tipos de signo diversificados, o universo da cultura e da vida cotidiana deixou de ser exclusivamente verbal. E os outros tipos de signo, antes reclusos às salas de teatro, concertos e museus, passaram a habitar nossos lares, entrando em nossa casa com a mesma facilidade com que entram a água e a luz. Importante lembrar disso, para que os rastros do passado sejam mantidos e ajudem a entender o atual estado de coisas que emergiu a partir da revolução digital. Quando falamos de comunicação e cultura, nunca se deve perder a dimensão do tempo, pois o imediato engana. 

Se há mais de meio século já era importante o estudo dos tipos de signo verbal nas suas misturas com signos extra, intra e infraverbais, aquém e além do verbal, o que dizer sobre o universo pós-digital? Se não estivermos enclausurados no “linguocentrismo”, não é difícil perceber que há dois séculos os signos entraram em processo acelerado de diversificação e crescimento no mundo, para os quais a digitalização e a cultura mediada por computador funcionam como um dínamo. Desde os anos 1990, o computador tem se transformado cada vez mais em uma mídia de todas as mídias produtoras de signos – signos que nele se misturam e se complementam em sua própria morfogênese e que são transportados no tempo e no espaço a uma velocidade que faz inveja à luz. Instaurou-se com isso a comunicação planetária, a galáxia da internet, hoje inundada por mídias sociais, motores de busca, aplicativos. E, junto com isso tudo, engendrou-se a inteligência coletiva, sempre paradoxal e contraditória, hoje monitorada pelos algoritmos de inteligência artificial. Estes, à sua maneira, dão conta da avalanche de dados que correm pelos ares e que já estão se abrigando nas próprias coisas ao nosso redor. O que se pode inferir disso? 

O mundo está demandando, exigindo uma atenção competente aos modos como os signos são capazes de produzir sentido, como se dão as passagens entre signos e quais são os processos multideterminados que entram em ação quando os signos são interpretados. A semiótica se propõe a realizar essas tarefas. 

Há várias correntes de semiótica, uma ciência que já nasceu diversificada. Há semióticas que tomam as operações modelares da linguagem verbal para entender como funcionam os outros sistemas de signos. Há semióticas, e são várias, que desenvolvem a análise dos discursos e dos processos de significação. Há ainda semióticas, de várias cepas, que apontam conceitos capazes de levar à compreensão dos fenômenos da cultura. Todas elas desenvolvem-se como ciências, criam uma teia de conceitos inter-relacionados que exigem esforço de aprendizagem e tomam algum tempo de dedicação e formação. Mas com a semiótica de C. S. Peirce, que será apresentada neste dossiê, há um problema sui generis

O ser humano é um ser semiótico por natureza. Isso significa que estamos dotados da capacidade de interpretar signos intuitivamente. A intuição, no entanto, é paradoxal, e ao mesmo tempo poderosa e sujeita a muitos equívocos que precisam ser testados para que tenham validade. O estudo da semiótica cumpre essa função de testagem de nossas intuições interpretativas, as quais, quando não passam pelo crivo da análise e da exposição à alteridade, terminam em crenças fixas e cegas. Nesses casos, em vez de funcionar como mediadores de nossos acessos à realidade, os signos passam a atuar como biombos opacos.

A semiótica que será apresentada ao leitor neste número da revista Cult é a semiótica de C. S. Peirce. Não é preciso exercitar o péssimo hábito de minimizar as outras semióticas para engrandecer a que escolhemos. O que está sob o pico do iceberg de nossas escolhas? Grande mistério. No caso das escolhas intelectuais, somos muito mais escolhidos do que escolhemos, pois operam aí a história de vida, a genealogia do pensamento e, last but not least, lembrando o Foucault do cuidado de si, as forças de atração que nossos guias exercem sobre nós. Diga-me quem são teus guias que te direi quem és. E, quando não há guias, o pensamento se dispersa como poeira no ar.

Peirce era cientista de laboratório, apaixonado pela filosofia e criador de uma lógica extensiva, concebida como semiótica, cujo propósito era compreender por que e como a inteligência e o conhecimento humano evoluem e crescem. Mas como se dá esse crescimento? Eis a questão. Peirce começou pelo estudo da fenomenologia, uma fenomenologia a céu aberto, muito distinta da famosa fenomenologia continental. A partir do exame de nosso estar no mundo, recebendo e absorvendo chuvas incessantes de perceptos, Peirce chegou a três categorias abstratas e universais – as quais de modo algum anulam as categorias particulares das regiões específicas das diferentes ciências, apenas ajudam a compreendê-las. Sobre a fenomenologia erigiu-se a semiótica como doutrina de todos os tipos de signos, suas distintas modalidades, seus diferenciados poderes referenciais e suas aptidões para serem interpretados. 

O mais importante, entretanto, é que a semiótica não é autossuficiente. Ela necessita da ética – e esta, da estética – para se complementar. Por fim, sobre os alicerces da fenomenologia e da tríade – semiótica, ética e estética – eleva-se a metafísica concebida como o estudo da realidade, que depende da mediação dos alicerces sobre os quais se funda. A concepção peirciana da ética e da estética, especialmente desta última, é originalíssima. A estética não é a ciência do belo, mas a ciência do admirável, para onde nossa sensibilidade, aquilo que de mais valoroso temos como seres humanos, deve ser atraída: para o admirável contribuir para o crescimento da razoabilidade no mundo. Por mais modesta que seja nossa tarefa, seu valor é medido pela capacidade de tornar o mundo mais razoável e, portanto, mais admirável.

Outra originalidade radical de Peirce encontra-se na noção triádica do signo, que funciona como um modelo lógico dinâmico, em perpétuo movimento e devir, do processo de crescimento dos signos, em função das interpretações que os humanos são capazes de produzir em cada momento de sua história – e que hoje exorbitam entre cacofonias, clichês, mas também preciosidades interpretativas que estão voando pelo mundo e que chegam aos terminais que agora habitam até mesmo a palma de nossas mãos. Urge desenvolver interpretações triádicas contra a herança mecanicista e cartesiana que ainda persiste. O Ocidente, pela própria natureza dualista das línguas indo-europeias, é vítima da praga até agora incurável das dicotomias. Não vem do acaso a cultura dos extremos, que infesta a vida social contemporânea. De nada adianta a pregação contra os discursos de ódio quando se continua preso à lógica das dicotomias, que é a fonte de todos os antagonismos. 

A convite da revista Cult, oferecemos ao leitor uma pequena viagem pelo país da semiótica. Viajar é preciso. Ainda mais necessário quando se trata das paisagens e paragens de um pensamento que fertilize. Que a viagem seja prazerosa e que traga consequências pragmáticas na vida de cada um, quer dizer, que funcione como guia para a ação deliberada e continuamente submetida à crítica. Essa é uma das lições do pragmaticismo peirciano. 

LUCIA SANTAELLA é professora titular e coordenadora do PEPG em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP.


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