O que a distribuição de cargos no Executivo diz sobre o modelo de Estado que adotamos

O que a distribuição de cargos no Executivo diz sobre o modelo de Estado que adotamos

 

Um novo governo se prepara para assumir e a atenção pública se volta para a tensa questão da seleção de ministros de Estado. Depois virá o problema do preenchimento das secretarias, das presidências de órgãos da administração direta, das coordenações, e por aí afora até os cargos comissionados de livre nomeação. Uma parte da distribuição de cargos públicos será feita sob intensa cobertura e discussão pública, como é o caso de ministérios, algumas secretarias e algumas presidências e diretorias e outras nomeações e indicações importantes a critério do Executivo. Outra parte, mais numerosa, será de conhecimento apenas dos interessados e dos leitores do Diário Oficial.

É assim que governos são formados em toda a transição democrática, isto é, a partir de uma clara divisão de atribuições entre o povo e os mandatários eleitos. O povo escolhe livremente o mandatário, os detentores de mandatos têm o direito de escolher alguns ocupantes de cargos. Até aí, tudo bem, é assim no Brasil ou na Suécia, país que se orgulha de ter os mesmos funcionários públicos ocupando as mesmas funções não importa se o chefe de governo é de direita ou de esquerda.

Para a massa que fez o seu trabalho na escolha do presidente e do vice-presidente, agora cabe o papel de assistir à seleção dos ocupantes dos cargos que darão a forma definitiva ao governo que se estabelece. No máximo, pode pressionar, torcer, criticar, mas já não lhe cabe papel ativo em um processo que pode ser tão determinante quanto a própria decisão eleitoral recém-cumprida.

Por isso mesmo, grande parte da energia política do público nesses dias tem sido despendida no acompanhamento da escolha de ministros, inclusive para verificar se a lista de demandas e requisitos de cada grupo de interesse, partido ou facção social será ou não contemplada pelo presidente eleito. Assim, partidos, organizações sociais, grupos temáticos de lobby e pressão, formadores de opinião pública, ativistas de agendas específicas, pessoas e grupos que se engajaram na campanha vencedora, e até os cidadãos avulsos, apresentam reivindicações e vetos, discutem critérios e requisitos e buscam assegurar para a sua pauta ou grupo uma representação importante na lista dos ocupantes de cargos-chaves do Executivo Federal.

É aqui que começam as questões. O Estado é a forma institucional da comunidade política, que existe em função do povo, seu soberano, e para servi-lo. Há, contudo, vários modos de se constituir ou formatar o Estado, que, para simplificar, vou resumir em dois modelos extremos – o padrão republicano e o modelo patrimonialista e clientelista. E ambos passam pela quantidade cargos de nomeação exclusiva do Executivo e pelo modo e critério com que são distribuídos.

No modelo republicano, típico das democracias liberais mais avançadas porque corresponde inteiramente aos princípios que orientam esse regime, um governo tem um número bastante limitado de cargos para nomear, pois o Estado é basicamente conduzido por funcionários públicos de carreira, considerados funcionários de Estado e não de governo.

Aliás, o modelo republicano se orienta por uma distinção nítida e consistente entre o governo e o Estado, no qual o Estado, a República, é permanente, estável e é do povo, enquanto o governo tem meramente a função de conduzi-lo através de mandatos temporários e sob controle tanto de outros órgãos de Estado quanto da própria opinião pública. O governo dirige o Estado, não se assenhora dele, daí os cargos serem mormente exercidos por servidores de Estado e servidores não de quem governa.

No modelo patrimonialista, que é uma forma de gestão da coisa pública típica de autocracias ou de democracias regressivas ou incompletas, o governo tem à sua disposição um número excepcionalmente grande de cargos estatais para dar. Ou trocar. A burocracia estatal é limitada e controlada por funcionários do governo, não de Estado. Nesse caso, quem governa, eleito ou não, tem o Estado como patrimônio próprio – daí o nome patrimonialismo – para o seu gozo privado ou para o desfrute particular dos seus.

Nas democracias patrimonialistas, ao ganhar uma eleição o grupo vencedor como que ganha o Estado de brinde e bônus, para dele desfrutar como bem lhe aprouver, até ser deposto do Poder por outro grupo, que continuará a mesma prática. Assim, quanto mais cargos à disposição, melhor, pois os cargos são ocupados pelos controladores dos dutos por meio dos quais os recursos do Estado irrigam toda a sociedade, mas segundo o arbítrio, o critério e a conveniência de quem os comanda.

Esse modelo tem uma derivada conhecida como clientelismo, que consiste no fato de que o Estado, transformado em patrimônio de quem governa, serve também para estabelecer uma relação entre governante e o resto da sociedade (grupos de poder, facções, os cidadãos em geral) que será uma relação entre provedor/padrinho e cliente. O governo distribui os serviços públicos como se fossem favores pessoais ante os quais o usuário ou cliente de tais serviços contrai dívidas de fidelidade e a obrigação de retribuir.

Mas também distribui os cargos como uma forma de concessão de um recurso privado (na verdade, privatizado) que transforma o seu beneficiário, o nomeado, em alguém com obrigações e dívidas com relação aos provedores do benefício numa cadeia inexorável de dependência, vassalagem e o obrigações.

Ao conceder a um partido ou a um político um ministério ou uma diretoria de um órgão, o presidente entrega a este “beneficiário” um estoque enorme de cargos para nomear, cujos ocupantes contraem dívidas e obrigações com relação a quem os nomeia. No final das contas, os ocupantes de cargos públicos não têm responsabilidades e obrigações com relação ao público, o soberano do Estado liberal-democrático, pois as têm com quem os nomeou, que, por sua vez, terá obrigações com o seu padrinho político, numa cadeia ascendente inteiramente orientada pelo vínculo cliente-padrinho e completamente incompatível com o vínculo servidor-cidadão. A maior parte dos escândalos republicanos que levaram o país ao caos político dos últimos anos tem a ver a com isso.

Isto posto, momentos como este em que estamos situados, da distribuição de cargos por mandatários eleitos, nem são banais nem desprovidos de consequência. Uma forma de Estado se desenha aqui, e as políticas públicas decorrentes, a opção pela transparência e impessoalidade ou por opacidade e clientelismo, a decisão sobre se ao centro do Estado estará o interesse do cidadão ou o interesse dos nomeadores e nomeados, tudo se decide neste momento.

Em ocasiões como essa é que governos plantam as sementes para a desmoralização patrimonialista e clientelista do Estado e da própria gestão. O PT, por exemplo, começou o seu déficit republicano várias vezes nesse momento da partilha de poder, mas isso só se descobre quando o escândalo explode, alguns anos depois. De toda sorte, este pode ser o momento da formatação de um governo, mas frequentemente isso é só a capa, o embrulho, para o loteamento do Estado.

Por isso, é imprescindível perguntar quantos cargos de nomeação exclusiva do Executivo são ainda compatíveis com um padrão republicano? No Brasil, tenho certeza de que esse número é obsceno e leva, numa estrada reta e sem desvio, à corrupção e ao clientelismo. Mas, quem se atreve a reduzi-lo quando esse é o tipo mais sedutor de poder para quem é eleito governante?

Depois disso, podemos nos perguntar que critérios são aceitáveis e inaceitáveis para a distribuição de cargos no interior da Administração Pública em um modelo republicano de Estado? Pois, certamente, os costumes brasileiros neste quesito estão bem distantes das boas práticas republicanas.

E não esqueçamos que aqui se joga uma quebra de braço importantíssima. Os partidos fisiologistas brasileiros, que são tantos e não apenas os que respondem pelo rótulo de Centrão, lutam nesse momento para que o critério patrimonialista prevaleça sobre o republicano. A sua sobrevivência depende disso. Por isso, exibirão toda a sua força diante do presidente para mostrar o que ele tem a ganhar ou a perder trocando os cargos mais cobiçados de nomeação exclusiva do Executivo por votos parlamentares que lhe garantam a governabilidade.

Não se enganem, portanto, não é a política como sempre foi e sempre será. Mas uma escolha deliberada entre um Estado republicano e um Estado patrimonialistas, e as formas intermediárias que dão, em geral, tristes feições ao Estado brasileiro. A corrupção, o fisiologismo e o clientelismo, que são um problema atávico da nossa combalida democracia, geralmente nascem aqui.

 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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