Distorcer é poder
O descompromisso e a desonestidade com o que se diz são características de nossa sociedade há tempos. Um modo especializado de desonestidade vem sendo usado constantemente. Se trata da inversão.
Sabemos que devemos prestar atenção no que nos é dito. Por outro lado, é um dever ético prestar atenção no modo como nós mesmos dizemos o que dizemos. Claro que ninguém vai conseguir atingir um grau máximo de consciência e expressar-se sempre da melhor forma. Por outro lado, é fato que as pessoas espontaneamente manipulam o que o outro diz. Mas não é porque as coisas são assim que elas não deveriam ser diferentes. Aí, no “dever-ser” é que começa o nível ético das relações.
A inversão é um tipo de distorção. No nível das relações entre pessoas particulares, sobretudo no que concerne à esfera privada, podemos dizer que a distorção é fruto de algo que chamamos genericamente de neurose. Ela atinge todas as relações. Pais e filhos, casais, amigos, todos aqueles que convivem e que, por conviver, falam uns com os outros, distorcem.
A neurose é uma categoria psicanalítica, mas ela é também uma categoria ética. Ela é uma manifestação da linguagem em que a desonestidade é inconsciente. O neurótico quer provar suas “teorias”, que ele pode criar nas mais variadas circunstâncias. E, para prová-las basta acionar o mecanismo da distorção. A distorção requer interpretação. Captar algo dito pelo outro e usá-lo para provar algo completamente diferente é a sua aplicação mais simples. Em geral, aquilo que se quer provar – a teoria do neurótico – não tem realidade alguma. Há, certamente, no modo de proceder do neurótico algo de cruel consigo mesmo e com o outro. Ele quer provar algo sobre si mesmo e o outro lhe serve como caminho da prova. O outro é manipulado no ato da manipulação do argumento.
A lógica da inversão depende da capacidade para distorcer. Ela pode parecer bem racional, mas em geral, apela, como qualquer falácia, a um espécie de drible argumentativo. Pela inversão basta colocar uma coisa no lugar da outra. Trocar o lugar de quem fala. A lógica da inversão está presente tanto na culpabilização da vítima, quanto na vitimização do culpado.
A inversão, por sua vez, não é uma mera projeção, como pode parecer. Ela é uma tática de poder que vai além da neurose e tem com ela a diferença de ser uma desonestidade consciente.
Alguém que na esfera privada é neurótico, na esfera pública pode ser um canalha. A posição do canalha é sempre burra, e fácil de desvendar. Mas vivemos no império da canalhice onde a burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu. Desvendá-la não tem mais muito valor. Ela se transformou no todo do poder.
No âmbito público, a tática da inversão vem sendo usada de um modo abjeto. O exemplo de um deputado homofóbico acusando o deputado Jean Wyllys de “heterofobia” seria patético se não estivéssemos em um país em que a promoção da canalhice tem sempre lugar garantido. O político, conhecido por suas declarações homofóbicas, que fazem apologia do preconceito e da violência, tentou fazer uso da tática da inversão pondo em cena algo perverso: de um lado, ele pensa que pode “lucrar” como vítima (como se existisse alguma vantagem em ser vítima), de outro ele tenta destruir a vítima real pondo-a na posição de algoz.
Enquanto o outro é tratado como culpado (Jean Wyllys enquanto “heterofóbico”), o suposto “culpado” está, na verdade, sendo atacado. O algoz se fez de vítima e ao fazer da vítima o culpado, ele o vitima em uma segunda potência.
Outro exemplo interessante se encontra na postura de alguns agentes públicos, que tem o dever de fiscalizar a lei, mas optam por atacar aqueles que efetivamente a cumprem, invertendo o jogo, como aconteceu recentemente na tentativa de jogar a opinião pública contra a juíza carioca Cristiana Cordeiro em razão das medidas socioeducativas impostas a adolescentes. Na era da distorção, cumprir a Constituição, defender a diferença ou os excluídos da sociedade de consumo, virou exceção, algo que é tratado como hediondo se a decisão acontece em desacordo com os preconceitos difundidos pelos meios de comunicação de massa.
O neurótico se torna vítima (aquele que se coloca como “desamado”) enquanto é culpado (do discurso no qual se constitui a neurose, uma fala oca e inútil, que serve apenas para jogar o mal estar neurótico sobre o outro). Tanto quanto o canalha o neurótico é sempre uma vítima de si mesmo que acaba vitimando os outros. A diferença entre o neurótico e o canalha é que se pode – em certo sentido – curar a neurose. O canalha é incurável. A pergunta é: por que nos deixamos representar por ele?