A partida de Fidel e a homofobia em Cuba

A partida de Fidel e a homofobia em Cuba

Jornada cubana contra a homofobia, ocorrida em 2013 (Foto: AFP/Getty)

Minha primeira viagem internacional, em 2005, foi pra Cuba. Antes mesmo dessa moda de a direita mandar “esquerdistas” pra lá. Fidel ainda era o presidente. Escolhi estar lá em um 26 de julho, acordei bem cedo para presenciar ao vivo um daqueles discursos intermináveis de celebração da Revolução Cubana. Mas, até a véspera, ninguém dizia onde seria o discurso, por questões de segurança.

Terminei descobrindo que seria fechado, no Teatro Carlos Marx. Fui até ali e um bloqueio militar  proibiu a entrada. Era fechado apenas para convidados. Voltei pro hotel e tentei assistir ao discurso pela TV. Confesso que dormi por umas duas horas e Fidel ainda falava quando despertei. Preferi sair com uns amigos pra beber e ouvir um jazz ali em Havana.

Coincidentemente, no dia anterior à morte de Fidel, estava em um café de Belo Horizonte, conversando com um amigo e olhávamos para um enorme pôster do Fidel em trajes militares na parede. Um senhor, de uma outra mesa, viu que falávamos sobre a foto e nos interpelou: “vocês acham que Fidel é um herói ou um bandido?”. Fiquei incomodado com a pergunta e logo respondi: “precisa ser um ou outro? Ele teve seus erros e acertos, ninguém é só herói ou só bandido na história”.

Essa pergunta me fez reviver o mesmo incômodo da visita que fiz, mais de dez aos atrás, a Cuba, marcado por um misto de admiração e perplexidade que não permite nenhuma opinião reducionista e simplista. Um pequena ilha, nas franjas dos EUA, que antes estava fadada a ser mais uma “republiqueta de banana” e bordel de gringos, embargada economicamente e sob constante ameaça, conseguiu alcançar índices de justiça e direitos sociais impressionantes para a América Latina, ajudando diversas outras nações com uma política externa de solidariedade internacional destacada, sobretudo na luta contra o apartheid, o colonialism e nas políticas de saúde.

Ao mesmo tempo, esse mesmo regime prendeu dissidentes, perpetuou-se décadas no poder, perseguiu homossexuais, restringiu liberdades fundamentais, militarizou a vida social, sempre em nome da continuidade da revolução e das conquistas sociais.

Cuba, assim, é um exemplo de um regime socialista, com significativas realizações de justiça social e igualdade material, mas que não conseguiu assimilar a diversidade sexual enquanto um valor fundamental democrático até recentemente, quando fez um balanço crítico e pediu oficialmente desculpas pelas perseguições.

Poucos anos após a Revolução Cubana, Fidel Castro já revelava, em entrevista, sua concepção da questão da homossexualidade: “(…) não se deve permitir que os homossexuais ocupem cargos nos quais possam exercer influência sobre os jovens. Sob as condições em que vivemos, por conta dos problemas que o nosso país enfrenta, devemos inculcar nos jovens o espírito da disciplina, da luta e do trabalho”. Isso sem mencionar os milhares de homossexuais enviados às Unidades Militares de Ajuda à Produção (UMAPs), em que o trabalho forçado e a “reeducação” eram impostos como uma maneira de criar o “novo homem”.

Essas UMAPs foram criadas em 1965 como locais para o cumprimento do serviço obrigatório para os que não estivessem em Unidades Militares Regulares ou estudando em Centros Militares de Ensino Tecnológico. A moral do trabalho era ensinada nessas unidades, aproveitando a mão-de-obra dos jovens nas plantações de cana.

No entanto, registros históricos têm revelado que as UMAPs da província de Camagüey funcionavam como campos de trabalho forçado, para onde foram enviados diversas categorias de dissidentes (políticos, culturais, sexuais, religiosos etc). Um dos campos foi especificamente reservado para homossexuais, com o seguinte mote na entrada: “El trabajo los hará hombres”, remetendo ao lema de Auschwitz. Essas unidades duraram apenas até 1967, mas receberam entre 30 a 40 mil jovens, com mortes decorrentes de torturas e sequelas decorrentes de abusos.

Mas não parou por aí essa perseguição. No ano de 1973, a Lei 1.249 passou a tipificar crimes contra os bons costumes e a ordem da família, punindo a demonstração pública da homossexualidade. No Código Penal de 1979, o crime de escândalo público é que foi usado para perseguir esses setores. Somente em 2010 é que Fidel reconheceu as violências e pediu desculpas aos homossexuais, sendo que sua sobrinha, Mariela Castro, tem feito um trabalho importante para o respeito à comunidade LGBT cubana, conforme pode ser visto no recente documentário “Revolução Sexual em Cuba” do premiado diretor Jon Alpert e lançado em 2015.

É verdade que a homofobia não começa com a Revolução em Cuba. O quanto esses fatos refletiam posições daquele tempo, daquela geração de esquerda, do machismo secular latino-americano, do peso da colonização espanhola, da influência religiosa católica em Cuba, são questões que merecem ser refletidas e aprofundadas. Ainda que tudo isso conte, nada disso, contudo, pode apagar a homofobia institucionalizada pelo regime cubano sob comando de Fidel.

Um indicador fundamental do grau de liberdade, inclusão e democracia de um determinado regime ou governo é a maneira como integra ou não as pessoas LGBTs nos discursos oficiais e nas políticas públicas. Ou seja, as diversidades e suas configurações ainda são um dos mais importantes termômetros da qualidade de uma democracia.

Essa ambiguidade do regime cubano não permite qualquer redução ao binarismo “herói e bandido”. Foram justamente essas infinitas matizes, contradições e tensões que tornaram Cuba uma pedra no sapato das direitas e das esquerdas. Aquelas não admitiam a insolência daquela pequena ilha em afrontar os EUA e todo o sistema mundial capitalista; estas, por sua vez, tinham dificuldades de assumir posições mais críticas e elaboradas com receio de que fossem lidas como alinhamento ao imperialismo norte-americano, silenciando sobre questões de democracia e de direitos humanos.

Fidel partiu na última semana. Não saiu da vida pra entrar na história, pois sua vida já se confundiu com a própria história há tempos. É uma notícia triste, mas, ao mesmo tempo, que deve nos libertar para um balanço crítico dessa experiência tão rica. Em meio a tantas adversidades, o povo cubano fez, entre erros e acertos, a parte deles. Cabe-nos, agora, fazer a nossa.

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