Não precisamos mais de “cabelo da Mulata, cabeleira do Zezé e Maria Sapatão”

Não precisamos mais de “cabelo da Mulata, cabeleira do Zezé e Maria Sapatão”

Em poucos dias, terá início o carnaval. Nos blocos de rua e nos bailes, ecoarão em alto e bom som as tradicionais marchinhas a animar as multidões: “O teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor, mas como a cor não pega mulata, mulata eu quero o teu amor” ou “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é? Será que ele é? [BICHA!] (…) Corta o cabelo dele!” ou então “Maria Sapatão, Sapatão, Sapatão, de dia é Maria, de noite é João”.

Antes, cantávamos todos cada uma dessas tradicionais marchinhas a plenos pulmões, embriagados pelo “tom jocoso” e pelo “deboche descontraído” das letras. Afinal, tais traços de jocosidade e descontração seriam a tradução perfeita da “essência” do carnaval, conforme experimentamos desde crianças.

De uns tempos para cá, contudo e felizmente, tem emergido certo incômodo, ainda bastante difuso, em relação a essas marchinhas e outras manifestações culturais que, se consideradas à época em que foram produzidas, eram “normais”, mas que, atualmente, já não geram o mesmo tipo de efeito cômico. Aliás, geram justa indignação.

Não há dúvida de que tudo deva ser lido em seu contexto e à luz de seu próprio tempo. Há meio século, apesar das vozes dissonantes e vanguardistas, não havia o mesmo grau de consciência crítica na sociedade e de acúmulo de lutas dos grupos vulneráveis retratados como objeto das “piadas” musicais.

Não dá pra dizer que Lamartine Babo, que compôs “O teu cabelo não nega”, por conta dessa música, era um racista. Mas a sociedade em que ele viveu era profundamente racista e, de algum modo, a naturalização de uma – suposta à época – inferioridade do negro em relação ao branco se faz expressar na sua composição. Chega ao extremo de dizer: “Mas como a cor não pega, mulata, então eu quero teu amor”.

Se a tarefa do folião neste carnaval não é então apontar o dedo e culpabilizar o autor da marchinha que já morreu há tempos, ele não pode se esquivar de pensar e criticar as estruturas que dão fundamento para essas construções culturais a fim de que não se perpetuem hoje as mesmas naturalizações que inferiorizam pessoas de outra cor, de outro gênero, de outra orientação sexual ou outra identidade de gênero.

Mais: não se justifica, hoje, a mera reprodução acrítica dessas manifestações culturais quando elas perdem algo de suas “auras jocosas” do passado e terminam assumindo mais claramente, em um momento em que o conflito sobre tais temas está menos velado, a função de reafirmar preconceitos e opressões contra grupos já estigmatizados e em relação aos quais há uma enorme dívida histórica.

 

Lamartine Babo, Carnaval de Lamartine, 1955

Carnaval sem preconceitos

Negrxs, mulheres, LGBTs, indígenas já sofrem o suficiente durante todo o ano e tudo de que não precisam é uma reafirmação simbólica e “engraçada” das violências sofridas enquanto pulam a festa carnavalesca.

Não se trata de aderir a uma “caretice” do “politicamente correto” ou “chato”, como alguns insistem em caracterizar qualquer tentativa de problematizar os privilégios do homem cis-branco-hetero, mas justamente compreender o papel central que tem o carnaval no imaginário político e cultural brasileiro, podendo contribuir para muitas mudanças necessárias.

O carnaval é a maior festa popular de nosso país. Mikhail Bakhtin, analisando o carnaval em outra época histórica, já destacava o potencial libertador do dele, ao ignorar “toda distinção entre atores e espectadores. Também, ignora o palco mesmo na sua forma embrionária. Pois o palco teria destruído o carnaval (e inversamente, a destruição do palco teria destruído o espetáculo teatral). Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval, pela sua própria natureza, existe para todo o povo”. É, assim, um jogo do povo com os privilégios, as hierarquias e os tabus.

Traduzido pro lado sul do Equador, onde parece – e só parece – não haver pecado, o carnaval manteve esse traço popular e ainda assumiu a marca da irreverência e da malemolência tipicamente brasileiras. Irreverência e malemolência, contudo, que muitas vezes traduzem-se na face – nem tão oculta – da violência e da opressão.

Se houvesse um “espírito” nacional, sem dúvida, o carnaval seria das suas mais perfeitas expressões: a mistura contraditória e sem equilíbrio constante entre diversão e violência, hierarquias e igualdades, tabus e liberdade, alegria e exclusão, afeto e assédio, enfim, a cordialidade e o conflito.

Sobre essas alternâncias, Bakhtin já afirmava “que todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões”.

Há, assim, uma ambiguidade constitutiva de valores e referências cruzados nessa folia que toma o espaço público das ruas. Homem “vira” mulher, mulher “vira” homem, pobre “vira” nobre, elite “vira” povo, negros e brancos tornam-se iguais, enfim, por quatro dias, as distâncias e os degraus sociais parecem todos se esfumaçar em confetes e serpentinas.

 

Carnaval é conservador ou libertário?

Por um lado, a transgressão dos papeis de gênero tradicionais, das normas rígidas de moralidade sexual e dos lugares sociais de classe que imperam na ordem brasileira conferem à festa um caráter de celebração da diversidade e da liberdade.

Por outro, a breve interrupção na ordem normal da dominação de classe, racial e sexual serviria apenas como um escape momentâneo ou um “direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia, que se chamava carnaval”, pra usar os versos de Chico Buarque. Esse torpor igualitarista e emancipatório, contudo, seria mais ilusório do que real, terminando com o retorno de cada um a seu lugar social bem determinado.

Autores como o antropólogo Roberto Da Matta e a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz discutiam já como as festividades carnavalescas sempre foram palco de inversões que, ao mesmo tempo em que desorganizaram, também reforçaram as rígidas estratificações da formação da sociedade brasileira, com todas as violências que a constituíram e a constituem cotidianamente.
Está cada vez mais evidente como machismo, racismo e LGBTfobia são a regra neste país que alcança recordes de violência, de todos os tipos, contra esses segmentos. A culpa, por óbvio, não é do carnaval e nem da alegria fugaz que ele propicia às pessoas. Mas ele não precisa contribuir para aprofundar esses abismos sociais e essas agressões preconceituosas.

É preciso pular muito carnaval, libertando desejos, corpos, sonhos e respeito. Podemos e devemos pensar em novas experiências de êxtase coletivo, de festa com alegria, de outras marchinhas que traduzam melhor as questões de nossos tempos. Enfim, de um carnaval atual.
No Brasil, há e sempre haverá diversos carnavais. Não se pode essencializar um suposto caráter “conservador” ou “libertário” dessa festa popular, tamanha sua complexidade. Ninguém precisa perder a folia dionisíaca com discussões teóricas sobre os sentidos da festa, mas atentar para não reproduzir preconceitos e opressões é uma tarefa e um dever de todxs nós, no carnaval e para além dele.

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