Precisamos falar sobre a “direita jurídica”

Precisamos falar sobre a “direita jurídica”
No Brasil, os atores jurídicos que serviam aos governos autoritários continuaram a atuar no sistema de justiça com os mesmos valores (Arte revista CULT)

 

Sistema de Justiça e tendência ao conservadorismo

O direito, entendido tanto como um sistema normativo quanto como um conjunto de teorias e práticas, costuma ser apresentado como um obstáculo à transformação social. Isso porque as formas jurídicas (e o Estado é a principal “forma jurídica”) servem à manutenção das estruturas de poder. Ao produzir a norma a ser aplicada a um determinado caso concreto, os atores jurídicos partem (ou deveriam partir) dos textos legais, que são produtos culturais condicionados pelos valores dominantes no contexto em que foram produzidos. Há, portanto, um evento comprometido com o passado que não pode ser ignorado. E isso, por si só, permite afirmar a tendência conservadora do sistema de justiça.

Mas não é só. Há outro óbice hermenêutico para uma atuação transformadora no âmbito do sistema de justiça: a aplicação do direito está condicionada pela tradição em que os intérpretes estão inseridos. Há uma diferença ontológica entre o texto e a norma jurídica produzida pelo intérprete, isso porque a norma é sempre o produto da ação do intérprete condicionada por uma determinada tradição. A compreensão e o modo de atuar no mundo dos atores jurídicos ficam comprometidos em razão da tradição em que estão lançados.

Existem Intérpretes que carregam uma pré-compreensão inadequada à democracia (em especial, a crença no uso da força, o ódio de classes e o medo da liberdade) e, com base nos valores em que acreditam, produzem normas autoritárias, mesmo diante de textos tendencialmente democráticos. No Brasil, os atores jurídicos estão lançados em uma tradição autoritária que não sofreu solução de continuidade após a redemocratização formal do país com a Constituição da República de 1988. A naturalização da desigualdade e da hierarquização entre as pessoas, um dos legados da escravidão, por exemplo, continuam a ser percebidos na sociedade brasileira e, em consequência, também influenciam a produção das normas.

No Brasil, os atores jurídicos que serviam aos governos autoritários continuaram, após a redemocratização formal do país, a atuar no sistema de justiça com os mesmos valores, a mesma crença no uso abusivo da força, que condicionavam a aplicação do direito no período de exceção. Nas estruturas hierarquizadas das agências que atuam no sistema de justiça, os concursos de seleção e as promoções nas carreiras ficam a cargo dos próprios membros dessas instituições, o que também contribui à reprodução de valores e práticas comprometidos com o passado. O conservadorismo, porém, acabava disfarçado através do discurso da neutralidade das agências do Sistema de Justiça. Interpretações carregadas de valores conservadores eram apresentadas como resultado da aplicação neutra do direito.

Após a Segunda Guerra mundial, aumentou substancialmente a importância das agências estatais que compõem o sistema de justiça. O Poder Judiciário, em particular, passou a ser apresentado como o órgão estatal encarregado de garantir o Estado Democrático de Direito, modelo de Estado que se caracterizava pela existência de limites rígidos ao exercício do poder, e evitar a barbárie. Não funcionou. A tendência democratizante das Constituições foi ignorada. E, em pouco tempo, os limites que caracterizavam o Estado Democrático foram relativizados. Instaurou-se a pós-democracia.

Não se pode, pois, pensar a atuação dos juízes e demais atores jurídicos desassociada da tradição em que estão inseridos. Há uma relação histórica e ideológica entre o processo de formação da sociedade brasileira e as práticas observadas. Pode-se apontar que em razão de uma tradição marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico e os cargos no Poder Judiciário eram utilizados para que os rebentos da classe dominante pudessem se impor perante a sociedade, sem que existisse qualquer forma de controle democrático dessa casta, gerou-se um sistema de justiça marcado por uma ideologia patriarcal e patrimonialista, constituída por valores que se caracterizam por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão do outro e a confusão entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem.

A esperança depositada no Sistema de Justiça, que deveria ser um espaço de garantia da democracia, cedeu rapidamente diante do indisfarçável fracasso em satisfazer os interesses daqueles que recorrem a ele. Torna-se gritante a separação entre as expectativas geradas e os efeitos da atuação dos atores jurídicos no ambiente democrático. Não raro, para dar respostas às crescentes demandas, as agências do Sistema de Justiça recorrem a uma concepção política pragmática que faz com que ora se utilize de expedientes técnicos para descontextualizar conflitos e sonegar direitos, ora se recorra a instrumentos típicos do autoritarismo para manter da ordem.

Na media em que cresce a atuação do Poder Judiciário, diminui a ação política, naquilo que se convencionou chamar de ativismo judicial. Isso revela um aumento da influência dos juízes e tribunais nos rumos da vida brasileira, fenômeno correlato à crise de legitimidade de todas as agências estatais. Percebe-se, pois, claramente que o Sistema de Justiça se tornou um locus privilegiado da luta política.

O distanciamento da população fez com que o Judiciário e o Ministério Público sejam vistos como agências seletivas a serviço daqueles capazes de deter poder e riqueza. Se por um lado, pessoas dotadas de sensibilidade democrática são incapazes de identificar nessas agências um instrumento de construção da democracia; por outro, pessoas que acreditam em posturas fascistas aplaudem juízes e outros agentes políticos que atuam a partir de uma epistemologia autoritária.

Não causa surpresa que parcela dos meios de comunicação de massa procure construir a representação do “bom juiz” a partir dos seus preconceitos e de sua visão descomprometida com a democracia. Não se pode esquecer que a mídia tem a capacidade de fixar sentidos e reforçar ideologias, o que interfere na formação da opinião pública e na construção do imaginário social. Assim, o “bom juiz”, construído por essas empresas como herói, passa a ser aquele que considera os direitos fundamentais como óbices à eficiência do Estado ou do mercado.

O distanciamento em relação à população gerou em setores do Poder Judiciário uma reação que se caracteriza pela tentativa de produzir decisões judiciais que atendam à opinião pública (ou, ao menos, aos anseios externados na opinião publicada pela mídia). Tem-se o chamado “populista judicial”, isto é, o desejo de agradar ao maior número de pessoas possível através de decisões judiciais (ou às corporações que constroem a opinião pública), como forma de popularizar a Justiça, mesmo que para tanto seja necessário violar direitos e garantias fundamentais. Assim, juízes passaram a priorizar a hipótese que a mídia aderiu em detrimento dos fatos. A verdade tornou-se dispensável e, por vezes, inconveniente.

O filósofo Theodor Adorno (Reprodução)
Adorno identificou características que revelam uma disposição ao uso da força em detrimento do conhecimento (Reprodução)

A nova direita jurídica

A transformação da tendência conservadora dos atores do sistema de justiça em práticas explicitamente ligadas ao espectro da chamada “nova direita” se dá a partir da adesão do mundo jurídico à racionalidade neoliberal. Essa racionalidade está na base do Estado Pós-Democrático, em que desaparecem limites ao exercício do poder econômico. Com o empobrecimento subjetivo e a mutação do simbólico produzidos pela razão neoliberal, que leva tudo e todos a serem tratados como objetos negociáveis, os valores da jurisdição penal democrática (“liberdade” e “verdade”) sofrerem profunda alteração para muitos atores jurídicos. Basta pensar no alto número de prisões contrárias à legislação (como as prisões decretadas para forçar “delações”), nas negociações com acusados em que “informações” (por evidente, apenas aquelas “eficazes” por confirmar a hipótese acusatória e que não guardam relação necessária com o valor “verdade”) são trocadas pela liberdade dos imputados, dentre outras distorções.

O neoliberalismo é, na verdade, um modo de ver e atuar no mundo que se mostra adequado a qualquer ideologia conservadora e tradicional. O projeto neoliberal é apresentado e vendido como uma política de inovação, de modernização, quando não de ruptura com práticas antigas. A propaganda neoliberal, de fórmulas mágicas e revolucionárias, torna-se no imaginário da população a nova referência de transformação e progresso. O neoliberalismo, porém, propõe mudanças e transformação com a finalidade de restaurar uma “situação original” e mais “pura”, onde o capital possa circular e ser acumulado sem limites. Os movimentos neoconservadores aparecem, então, como fundamentais ao projeto neoliberal porque se torna necessário “compensar” os efeitos perversos (e desestruturantes) do neoliberalismo através de uma retórica excludente e aporofóbica, bem como de práticas autoritárias de controle da população indesejada.

A racionalidade neoliberal altera também as expectativas acerca do próprio Poder Judiciário. Desaparece a crença em um poder comprometido com a realização dos direitos e garantias fundamentais. O Poder Judiciário, à luz da razão neoliberal, passa a ser procurado como um mero homologador das expectativas do mercado ou como um instrumento de controle tanto dos pobres, que não dispõem de poder de consumo, quanto das pessoas identificadas como inimigos políticos do projeto neoliberal.

Dos sintomas autoritários na Magistratura

Pode-se, a partir dos caracteres da personalidade autoritária identificados por Adorno em 1950, apontar indícios de que também a potencialidade fascista de juízes brasileiros é um risco à democracia, em especial porque caberia ao Poder Judiciário impor limites ao arbítrio e não agir como fator antidemocrático.

Adorno identificou uma série de características que revelam uma disposição ao uso da força em detrimento do conhecimento e à violação dos valores democráticos. Basta prestar atenção em decisões e declarações produzidas por magistrados brasileiros para perceber que essas características se encontram presentes em significativa parcela dos juízes. Na magistratura brasileira podem ser encontrados, dentre outros sintomas: o convencionalismo: aderência rígida aos valores da classe média, mesmo que em desconformidade com os direitos e garantias fundamentais escritos na Constituição da República.

Assim, se é possível encontrar na sociedade brasileira, notadamente na classe média, apoio ao linchamento de supostos infratores ou à violência policial, o juiz autoritário tende a julgar de acordo com opinião média e naturalizar esses fenômenos; a agressão autoritária: tendência a ser intolerante, estar alerta, condenar, repudiar e castigar as pessoas que violam os valores “convencionais”. O juiz antidemocrático, da mesma forma que seria submisso com as pessoas a que considera “superiores” (componente masoquista da personalidade autoritária), seria agressivo com aquelas que etiqueta de inferiores ou diferentes (componente sádico). Como esse tipo de juiz se mostra incapaz de fazer qualquer crítica consistente aos valores convencionais, tende a castigar severamente quem os viola; a anti-intracepção: oposição à mentalidade subjetiva, imaginativa e sensível.

O juiz autoritário tende a ser impaciente e ter uma atitude em oposição ao subjetivo e ao sensível, insistindo com metáforas e preocupações bélicas e desprezando análises que busquem a compreensão das motivações e demais dados subjetivos do caso. Por vezes, a anti-intracepção se manifesta pela explicitação da recusa a qualquer compaixão ou empatia; o pensamento estereotipado: tendência a recorrer a explicações hipersimplistas de eventos humanos, o que faz com que sejam interditadas as pesquisas e ideias necessárias para uma compreensão adequada dos fenômenos. Correlata a essa “simplificação” da realidade, há a disposição a pensar mediante categorias rígidas.  O juiz autoritário recorre ao pensamento estereotipado, fundado com frequência em preconceitos aceitos como premissas; a dureza: preocupação em reforçar a dimensão domínio-submissão somada à identificação com figuras de poder (“o poder sou Eu”). A personalidade autoritária afirma desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”, razão pela qual opta sempre por respostas de força em detrimento de respostas baseadas na compreensão dos fenômenos e no conhecimento. Essa ênfase na força e na dureza leva ao anti-intelectualismo e à desconsideração dos valores atrelados à ideia de dignidade humana; a confusão entre acusador e juiz: é uma característica historicamente ligada ao fenômeno da inquisição e à epistemologia autoritária. No momento em que o juiz protofascista se confunde com a figura do acusador, e passa a exercer funções como a de buscar confirmar a hipótese acusatória, surge um julgamento preconceituoso, com o comprometimento da imparcialidade. Tem-se, então, o primado da hipótese sobre o fato. A verdade perde importância diante da “missão” do juiz, que aderiu psicologicamente à versão acusatória.

A tradição em que os atores jurídicos estão inseridos, as práticas autoritárias e a adesão à racionalidade neoliberal são fatores que permitem identificar uma “direita jurídica”, para além dos casos caricatos de atores jurídicos repetindo mantras neoconservadores nas redes sociais. Diante desse quadro, é importante reconhecer, também nesse campo, a importância da luta política e do desvelamento do conteúdo ideológico, disfarçado de “neutralidade judicial”, das decisões do Poder Judiciário.

RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano


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