Diário visual do golpe
Exército em frente ao palácio presidencial La Moneda bombardeado durante golpe militar, Santiago, Chile, entre 21 e 30 de set. de 1973 (Foto: Evandro Teixeira/Acervo IMS)
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“Vocês estão dizendo que estamos maltratando nossos meninos! Não estamos! Estão bem cuidados, bonitos e vou mostrar a vocês.” A voz do coronel chinelo chegava pelo telefone ao saguão do hotel Carrera, separado apenas por uma rua do Palacio de La Moneda, no centro de Santiago. Dias antes, um cerco militar golpista à sede do governo chileno resultara na morte do presidente Salvador Allende e na instauração de uma das mais sangrentas ditaduras da América Latina.
Um fotógrafo enviado pelo Jornal do Brasil ouvia o chamado do militar. Evandro Teixeira estava entre as dezenas de jornalistas de todo o mundo que acorreram ao Chile logo após o golpe de 11 de setembro de 1973. Cinquenta anos depois, a exposição Evandro Teixeira. Chile 1973, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, revisita o olhar de um dos mais importantes fotojornalistas brasileiros sobre o golpe capitaneado pelo general Augusto Pinochet. Depois de temporada no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, a mostra chegou no dia 30 de agosto à capital fluminense – onde Teixeira produziu a maior parte de seu acervo – e ficará aberta até 13 de novembro. Com a curadoria de Sergio Burgi, estão reunidas cerca de 160 fotos que retratam os dias de Evandro Teixeira em um Chile conflagrado, “com cuidado, a barriga doendo e a sorte atrás da gente”, como ele lembra em conversa com a Cult.
Além da mostra no CCBB, uma parte das fotos seguiu para Santiago para ser exposta no Museu da Memória e dos Direitos Humanos – ao ar livre e com acesso público. É a primeira vez que o Chile recebe os registros fotográficos de Teixeira sobre o golpe de Estado. Aberta no dia 10 de setembro, a mostra é uma parceria entre o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Cultura e o Instituto Moreira Salles.
Foi um périplo para alcançar o Chile naquele turbulento setembro de 1973. Ao lado do repórter Paulo César de Araújo, Teixeira partiu do Brasil no dia seguinte ao golpe. Com o espaço aéreo chileno fechado, ficou retido em Las Cuevas, na fronteira com a Argentina, até que, já em Buenos Aires, um avião da Cruz Vermelha levou um grupo de jornalistas até a capital chilena.
Em Santiago, andava-se com cautela e o toque de recolher soava às 18h. Naquela manhã, contudo, eram os próprios militares que convocavam a imprensa para o Estádio Nacional, um colosso arquitetônico para quase 50 mil pessoas construído nos anos 1930. “Eu conhecia o estádio na palma da mão”, conta o fotógrafo, que cobriu a Copa do Mundo de 1962 naquele mesmo lugar em que a seleção brasileira, com Pelé e Garrincha, se tornou bicampeã mundial.
Os presos políticos estavam enfileirados nas arquibancadas. O coronel chamou os jornalistas ao centro do gramado. “Estão vendo os nossos meninos? Todos bonitos e bem tratados.” Enquanto o militar apontava a arquibancada, Teixeira olhava em torno de si tentando encontrar a entrada para o porão do estádio. “Fui olhando, andando, encontrei o portão que descia, e pá!”
Teixeira escapou da vista dos guardas, desceu as escadas e deu de cara com os presos amontoados em uma cela no subsolo do Estádio Nacional. Entre a adrenalina do feito e o medo de ser pego, sacou ligeiro a Leica e disparou. De volta ao hotel, Teixeira revelou os filmes no banheiro e mandou as fotos por um aparelho de impulsos elétricos por sinal telefônico – a telefoto – ao Jornal do Brasil. Um descuido da censura, conta Teixeira, permitiu que a foto fosse publicada no jornal no dia seguinte. Encarcerados atrás de um portão enferrujado, na masmorra improvisada que antes fora a saída dos vestiários, os detentos encaram a câmera que quase perde o foco.
Mesmo entre tanques, fuzis e patrulha constante, Teixeira pareceu usar no Chile a repetida máxima do fotógrafo americano Robert Capa: se suas fotos não são boas o suficiente, é porque você não chegou perto o suficiente. Sua câmera despreza as distâncias e escancara, no primeiro plano, armas e soldados, que fitam a lente que perturba a privacidade.
A mostra expõe ainda a série de fotografias que contam a morte e o funeral do poeta Pablo Neruda, que Teixeira havia conhecido no Brasil cinco anos antes. Como é corriqueiro na biografia de Teixeira, a história mistura oportunidade e tino de repórter. Foi também no saguão do hotel Carrera que ele soube, pela mulher de um diplomata, que o poeta agonizava no hospital. Quando rumou para lá e entrou sorrateiro por uma porta lateral, encontrou em um corredor o corpo de Neruda já sendo velado pela mulher, Matilde. Ele se apresentou e ela, lembrando-se dele na visita ao Brasil, pediu que a acompanhasse. “Ela sabia que, com a câmera, aquilo iria para o mundo”, diz Teixeira. No cortejo, vigiado de perto pelos militares, o Chile viu a primeira grande manifestação contra a ditadura recém-instaurada.
Lá como cá
Como um espelho no tempo, a mostra destina uma seção à ditadura militar brasileira (1964-1985). Nenhum outro cronista visual do fotojornalismo brasileiro deu à posteridade um conjunto tão célebre de imagens daquele tempo. Só em 1968 – ano em que se acirram as tensões que desembocaram no AI-5, em dezembro –, Teixeira produziu um conjunto de fotos que permanecem ainda hoje no imaginário do país sobre o binômio repressão-resistência: os protestos pela morte do estudante Édson Luís em meio à cavalaria em polvorosa no Centro do Rio, a Passeata dos Cem Mil no enquadramento que faz lembrar o mar de rostos dos Operários de Tarsila do Amaral, a caçada ao estudante que se estatela no chão perseguido por soldados na chamada Sexta-Feira Sangrenta.
Eram os anos de consagração de uma carreira cujos primeiros passos foram, de algum modo, encorajados por um curso de fotografia à distância que o lendário fotógrafo José Medeiros deu pela revista O Cruzeiro, no início dos anos 1950. Baiano de Irajuba, Evandro Teixeira chegou ao Rio de Janeiro no fim da década com uma mala e uma indicação para o Diário da Noite. Trazia já alguma experiência como fotógrafo do Diário de Notícias, de Salvador. No Rio, foi percorrer a cidade fotografando cerimônias de casamento e bailes de carnaval. Em 1963, chegou ao Jornal do Brasil, casa em que trabalhou por 47 anos, até o fim da versão impressa do jornal, em 2010.
Logo no segundo ano de JB, Teixeira começava a testemunhar de muito perto o desenrolar de uma embrionária ditadura militar. Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, ele foi acordado por um certo capitão Leno, oficial do Exército e amigo que se desencantava com a carreira militar. “Acorda! Tá acontecendo um golpe militar no Brasil e está partindo do Forte de Copacabana. Quer ir lá? Desce correndo!”
Teixeira morava na rua Júlio de Castilhos, a poucos quarteirões da fortificação militar no Posto 6 da praia de Copacabana. Tomou um copo d’água, pegou sua Leica M3 e a escondeu sob a jaqueta. O capitão e o fotógrafo combinaram de dar a Teixeira um nome falso de oficial para despistar a guarda. Ele entrou à paisana sob chuva e fez na contraluz a foto que foi à capa do Jornal do Brasil no dia seguinte ao golpe. Nas páginas internas, veio a foto do general Castelo Branco na chegada ao forte – o então chefe do Estado Maior do Exército se tornaria presidente no dia 15 de abril de 1964.
Quase dez anos depois, no Chile, Teixeira tornava a retratar um levante militar em um dos últimos países da América do Sul no qual, no início dos anos 1970, ainda vigorava uma democracia. Novamente, a mesma Leica, discreta e silenciosa, escondida sob a roupa. O mesmo fotógrafo que, em risco, se esgueira para despistar a guarda e capturar o instante decisivo. “Você não é o melhor do mundo”, diz Teixeira sobre si mesmo. “Você é um bom profissional, esperto, vivo. Tem que conhecer as coisas, tentar e nunca desistir”, ensina.