Luta por lucidez contra o grande culto da ignorância
Protesto de mulheres que ocorreu na Av. Paulista no dia 08 de março do ano passado (Foto: Nelson Antoine/Framephoto/Estadão Conteúdo)
No Dia Internacional da Luta das Mulheres, é importante entender a luta feminista e a dupla função, simbólica e prática, das manifestações políticas das mulheres
A paralisação internacional de mulheres nesse dia 8 de março tem uma função simbólica e prática ao mesmo tempo. O que há de mais instigante nela é a demonstração de que as mulheres estão unidas em nome de sua própria causa. No entanto, a causa das mulheres é, e sempre foi, a causa de toda a humanidade. A causa de cada minoria política – tendo em vista a contradição histórica que envolve as mulheres, em termos de gênero e sexualidade, enquanto maioria populacional – implica sempre a defesa desse ideal bastante abalado de uma sociedade baseada na dignidade da pessoa humana na qual direitos fundamentais deveriam ser assegurados.
Talvez não seja necessário dizer que ideais movem o mundo. E nunca estivemos tão distantes de alguns ideais, tais como o de humanidade, de dignidade, de liberdade. Vivemos, contudo, voltados a outros ideais, pois ao ser humano não é possível viver sem eles. Em nossa época o capitalismo tornou-se o ideal e com ele o consumismo e o produtivismo sem sentido. Esse ideal se apresenta disfarçado de puro pragmatismo, coloca-se também como forma de vida econômica e social em relação à qual não haveria outra alternativa. Vale a pena dizer que esse ideal é em si mesmo “desumano”, pois nele tudo é submetido à desumanidade do capital.
O desgaste da expressão humanidade, percebido pelos feminismos mais vanguardistas, se demonstra justamente quando cidadãos comuns bradam por mais humanidade, quando falam em “humanizar” isso ou aquilo e, ao mesmo tempo, agem de maneira antidemocrática e antissocial, seja por racismo, machismo ou até mesmo fascismo. A barbárie é capaz de se mascarar com aquilo que seria justamente a sua negação.
Há muito tempo as mulheres lutam pela causa da humanidade inteira, na qual quiseram ser incluídas como cidadãs. Ao longo da história, os direitos reivindicados por essa causa envolveram a educação, a saúde e o corpo. Feminismo é um nome bastante recente dado a essa luta. Que a palavra seja desagradável para quem não se interessa pelas potencialidades críticas e analíticas do feminismo, não deve ser motivo para ignorar seu conteúdo.
Ao mesmo tempo, toda novidade requer escuta e toda escuta requer atenção. A atenção é uma categoria cognitiva, uma categoria relacionada à inteligência, ao mesmo tempo que é uma categoria ética, relacionada ao comportamento. Ora, essa correspondência entre cognição e ética precisa ser pensada. Quem for à história do feminismo verá que ele se construiu como luta por direitos, mas essa luta esteve sempre ligada à luta por esclarecimento, por lucidez que animou muitas pessoas, sobretudo muitos filósofos – até mesmo os que caíram na contradição machista – no passado.
Machismo como culto à ignorância
O feminismo se construiu e vem se consolidando como um rico diálogo entre teoria e prática em cujo centro estão as questões de gênero, sexualidade, classe e raça. Em termos teóricos, podemos dizer que o feminismo é o que há de mais sofisticado e, em termos práticos o que há de mais revolucionário. Nesse sentido é que não se pode esperar que machistas por estupidez ou má fé, venham a compreendê-lo ou se interessar por compreendê-lo, pois o machismo é, sobretudo, uma forma de culto da ignorância que sobrevive por meio dela, enquanto o feminismo é a luta por esclarecimento.
Do homem que finge de tonto para não cuidar dos filhos ou que alega cínica e estupidamente que mulheres gostam de apanhar, até os débeis políticos que defendem propostas autoritárias como o fim da discussão sobre gênero, ou que chegam ao poder por meio de golpes como vemos no Brasil atual, o machismo é um culto da ignorância que tem uma utilidade prática, levar os machistas e o machismo ao poder. Não há machismo sem poder. Podemos dizer que o capitalismo é, nesse sentido, não apenas um sistema econômico e político que usa o culto da ignorância a seu favor, mas é ele mesmo a religião da ignorância.
A base mais consistente do feminismo atual demonstra seu primor teórico no que chamamos de feminismo interseccional e que, em tudo leva à ideia de feminismo dialógico, não como conversação com machistas (o que nunca passaria de uma ironia), mas como luta contra o machismo também por meio da intensificação do diálogo entre as mulheres de diferentes classes, raças e sexualidades.
A greve que vivemos hoje tem esse propósito, aproximar as mulheres delas mesmas, o que só acontecerá por meio de sua politização. O feminismo, nesse sentido, é uma revolução pela politização contra a alienação. As mulheres sob o jugo dos homens não são mais do que figuras alienadas e despolitizadas.
Nessa linha, o feminismo dialógico se propõe como processo de construção da transformação social. Necessariamente ele é o que há de mais difícil em termos práticos, sua proposta implica os mais complexos desafios teóricos e sociais. Realizar o feminismo interseccional e não esquecer o diálogo como reconhecimento da outra é a tarefa histórica desse momento.
(1) Comentário
Uma sorte ser contemporânea dessa feminista arretada. Te amo, Marcia!