Desculpem o desgoverno, estamos lacrando
(Arte Andreia Freire/Revista CULT)
Quando você aprende a acompanhar e a analisar governos e a política institucional, aprende em geral a observar com duas categorias. Primeiro, você passa a prestar atenção na política propriamente dita, ou seja, nas relações entre Executivo e Legislativo e entre maioria e minoria e nas interações dos partidos e das lideranças políticas entre si. Como diz acertadamente FHC: “Ou tem o terreno da política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num processo”. Além disso, e ao mesmo tempo, você precisa prestar atenção nas medidas substantivas produzidas pelo sistema político para responder às necessidades e demandas da sociedade. Neste conjunto estão principalmente as políticas públicas e as iniciativas legislativas.
Bem, lamento informar que estes dois parâmetros não servem para explicar os três meses já passados do governo Bolsonaro, nem parece haver indicação de que bastarão para o futuro. As duas dimensões sequer são o centro da atenção governamental nem onde o governo despende a maior parte da sua energia. Outras categorias concentram, de fato, o que importa a este governo e a principal delas é, inequivocamente, a ideologia. Lembram que no discurso de posse Bolsonaro enunciava, dentre os motes fundamentais do seu governo, “vamos retirar o viés ideológico de nossas relações internacionais”? Pois bem, paradoxalmente, não há como decifrar o que faz esse governo sem que se entenda que a sua prioridade máxima é a ideologização, não apenas das relações internacionais, mas de absolutamente tudo.
Primeiro a ideologização entendida como conversão dos brasileiros aos valores e princípios da direita conservadora. Mas não uma conversão por proselitismo, persuasão, convencimento. Não, trata-se de uma conversão forçada, de cima para baixo, à base de decretos, retaliações e ameaças. Segundo, uma ideologização que podemos chamar de categorial, por meio da qual tudo no mundo é classificado binariamente em direita e esquerda, nós e eles, certo e errado. No fim do dia, não há nada que não recaia nessa taxonomia simplória e não se explique a partir dela. As ações de governo, para completar a tragédia, serão todas baseadas nesta contraposição elementar.
E, como vemos na condução da reforma da Previdência, tudo o mais que não se refira à necessidade de ideologizar a realidade é tratada por Bolsonaro com fastio, tédio, quase a contragosto. Se ele pudesse, não faria uma reforma da Previdência, como admitiu. Se pudesse, nem governava, só bolsonarava e mais nada.
Querem uma prova disso? Vamos fazer uma breve resenha do que aconteceu na política nacional desde a quinta-feira passada. Naquele dia o Brasil estava em plena crise política, com Rodrigo Maia e o congresso pautando bombas e reclamando que o próprio governo precisaria articular no Congresso os seus grandes projetos legislativos (a reforma da Previdência e o pacote anticrime de Moro). E Paulo Guedes havia ido a uma comissão do Senado (e fugido de outra na câmara) onde se queixava de que a base do governo não estava se empenhando na sua reforma. Ou, seja, de todo lado havia uma constatação de que a tarefa mais básica de um governo, que é fazer política, não estava sendo feita.
O que faz então, o presidente da República? Em uma entrevista à Bandeirantes insinua maldosamente que o presidente da Câmara estaria “um pouco abalado com questões pessoais”, referindo-se à prisão de Moreira Franco. Maia é claro, reagiu, dizendo que Bolsonaro está “brincando de ser presidente”. Então, bem quando se precisava de um adulto fazendo política, o presidente se diverte fazendo o que realmente gosta, polemizar e pisar em ponta de pés, pois Bolsonaro só funciona no conflito. E conflito por quê? Porque na ideologia antipolítica de Bolsonaro e dos bolsonaristas não se pode fazer política, política é uma atividade vil e degradada, a “velha política” já acabou e o novo presidente, inclusive, diz não saber, sequer, o que significa a expressão “articulação”. Enquanto isso, no mundo real, naquele dia a bolsa despencou, o dólar subiu, e o Ipea revisou para baixo a previsão de crescimento do PIB.
Nos dias seguintes, aparece uma turma para botar panos quentes nas relações com o Congresso e as coisas parecem se acalmar. Bolsonaro está de partida para Israel, mas o assunto em que se gasta mais energia ainda são as declarações do chanceler olavista Ernesto Araújo sobre não ter havido golpe militar e a autorização dada por Bolsonaro para que o 31 de março seja comemorado nos quartéis. Muitos militares se dizem constrangidos, uma juíza proíbe a comemoração a pedido da Defensoria Pública, enquanto um desembargador suspende a determinação, a pedido da AGU. Claro que vocês entendem que nesta nova era a Defensoria Pública e a AGU não têm nada melhor a fazer do que se meter nas tretas ideológicas de Bolsonaro. Enquanto isso, no mundo real, naquele dia o desemprego chegou a 12,4% e a população subutilizada do país alcançou 29,9 milhões de pessoas, o pico de uma série iniciada em 2012, segundo o IBGE. O que faz Bolsonaro ante o problema real do desemprego? Dá uma entrevista à Record, em Israel, atacando o IBGE, que produziu os números de que ele não gostou. “Parecem índices que são feitos para enganar a população”, completou o presidente.
No dia 1º de abril, Bolsonaro está completamente integrado ao Show de Netanyahu, que, como ele e Trump, não tem amigos no mundo. É quando promete criar um escritório de negócios em Jerusalém, para mostrar alinhamento ideológico à nova direita mundial, e, com isso, ao mesmo tempo, desagrada os israelenses, que queriam uma embaixada, e deixa furiosos os árabes, que queriam ser respeitados. No dia seguinte, no Memorial do Holocausto, onde se diz justamente o contrário, Bolsonaro ensina novamente ao mundo inteiro que o nazismo era, sim, de esquerda, porque tem “socialismo” no nome. Frase que ouviu de Ernesto Araújo, que a ouvira de Olavo de Carvalho, que deve tê-la ouvido das vozes que estão na sua cabeça. A reação internacional à estultice, como era de se esperar, foi enorme. Enquanto isso, no mundo real, um problema do FIES continua impedindo os alunos de se matricularem, os árabes ameaçam retaliar as exportações agrícolas brasileiras e a balança comercial do país fecha março com o menor superávit em três anos.
Nesta quarta, Paulo Guedes enfim vai à comissão da Câmara, mas como não tem a menor ideia de política nem de diplomacia, e não foi instruído ou protegido pela base do governo, pisa em todas as cascas de bananas que lhe jogam e em todas as pontas de pés que a sua dignidade ferida manda pisotear. Assim, as manchetes, chamadas e memes da quinta têm menos a ver com legislação e políticas públicas e mais sobre a sua reação ao ser chamado de “tchutchuca do mercado financeiro”. Por sua vez, Vélez, o moribundo ministro da educação, dá declarações negando de novo o golpe de 1964 e diz que os livros didáticos brasileiros serão ideologicamente revisados para refletir a interpretação da história adotada pelo bolsonarismo. Enquanto isso, no mundo real, a bolsa caiu e se registrou que, em três meses, o famoso programa Mais Médicos, do qual Bolsonaro dizia que estaria muito melhor sem os médicos cubanos, teve mais de 1.052 desistências de médicos do bem que iriam substituir os comunistas. É assim que a bravata ideológica bolsonarista apresenta a fatura a ser paga pelos pobres e desamparados dos grotões brasileiros, que ficaram sem os únicos médicos que tinham, por exclusiva razão de… ideologia.
Assim estamos. Em vez de política, temos ideologia. Em vez de políticas públicas, gestão e medidas legislativas apropriadas, temos mais ideologia. Quem precisa de substância, propostas materiais para resolver os verdadeiros e urgentes problemas nacionais, de alguém realmente governando o país? O importante é que temos conflitos cotidianamente procurados com afinco, frases de efeito e ações espetaculosas, lacração em abundância. E assim tem sido, dia após dia, a tão prometida e esperada nova política brasileira. Desculpem o transtorno, mas a diretora foi dispensada e a escola agora está sendo governada pelos meninos bagunceiros da 7ª série.
(2) Comentários
Boa tarde Wilson, sua coluna de hoje foi muito interessante. E elucidativa. Entendi que o “Biroliro” só consegue funcionar no conflito, acredito que com o “O de C” seja a mesma coisa. Governos anteriores também tiveram dias assim, de lacração, de doidera. Mas esse pessoal ainda não entendeu onde se meteu. Parece que o “Biroliro” quer fazer o mesmo que Jânio, sair e acha que vai voltar nos braços do povo. Isso já deu errado uma vez…
Isso de que o bolsonarismo se desvia das questões que seriam de interesse da população pra desviar o debate público para o de bate ideológico acho que mais ou menos já está se percebendo com clareza. A questão seria ir além e começar a se perguntar e ter mais claro pra que serve essa ideologização da política, porque ela serve a um projeto de poder, com certeza.