Desafios da Páscoa
(Foto: Reprodução)
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“Deixe meu povo ir.” Durante a Páscoa, celebrada no último fim de semana em todo o Ocidente judaico-cristão, a máxima dita e repetida por Moisés ao Faraó tornou-se o símbolo do protesto popular contra as intenções golpistas do premiê Benjamin Netanyahu nas ruas de Tel Aviv, atualizando o sentido da festividade.
Ateu como Freud, sempre nutri, no entanto, grande interesse pelo simbolismo da Páscoa, que celebra a liberdade (para os israelitas) e a ressurreição (para os cristãos). Acredito ser oportuno recordar alguns elementos da sua história em um contexto sociopolítico no qual a liberdade democrática e a crença em um mundo melhor para as gerações futuras vêm sendo continuamente ameaçadas.
A nome Páscoa vem da palavra Pessach, em referência à passagem do anjo da morte pelos lares judaicos – marcados na soleira da porta com o sangue do cordeiro sacrificial – durante o cumprimento da décima praga lançada por Jeová sobre o Egito, a morte dos primogênitos. Segundo o relato bíblico, foi apenas após essa praga que o Faraó, em dor pela perda de seu filho e de todos os primogênitos do Egito, humanos e animais, liberou os judeus escravizados para retornarem à terra prometida, guiados por Moisés. Mas pode-se recordar ainda outras passagens desse enredo: a revolucionária passagem de Moisés, de príncipe a líder popular; a milagrosa passagem dos judeus pelo mar vermelho; e a sua sublime passagem da escravidão para a liberdade.
Me deterei sobre três elementos que a celebração anual da Páscoa evoca e que, a meu ver, merecem nossa atenção: a indignação empática com a injustiça cometida contra grupos e sujeitos em estado de vulnerabilidade; os riscos da arrogância onipotente; e o apego excessivo a modos de vida que resultam em servidão voluntária.
Sobre a indignação empática
O acontecimento decisivo na transmutação de Moisés, de príncipe egípcio a líder do povo judeu, ocorreu quando Moisés não se conteve ao ver um capataz chicotear um escravo já exausto e matou o egípcio. O gesto homicida se superpôs ao controle racional, lhe revelando, por meio de um “ato falho”, sua origem judaica.
É instigante pensar que a narrativa bíblica nos remete à questão do valor da indignação empática frente à desumanização e à injustiça cometidas contra os mais vulneráveis, e nos rememora a importância da revolta para reverter situações de humilhação perpetuadas às quais nos habituamos a assistir, anestesiados e impotentes.
A Páscoa parece, portanto, nos advertir de que, se satisfeitos apenas com nossos privilégios em uma sociedade marcada pela injustiça, pela desigualdade e pela humilhação dos segregados, nos tornamos Moisés: príncipes oprimidos e alienados, focados no próprio umbigo e permanentemente amedrontados pela ideia de um dia estar do outro lado da roda da fortuna.
Da arrogância onipotente
O personagem do Faraó encarna, na mesma narrativa, o vício da arrogância que, mesmo frente à evidência dos limites de seu poder, insiste em manter uma imagem idealizada de si mesmo.
Em seu ensaio sobre o narcisismo, Freud nomeou de Eu ideal a instância psíquica constituída em nossa primeiríssima infância, quando temos a experiência de sermos “sua majestade o bebê”. O psicanalista francês Jacques Lacan nomeou esse momento do processo de constituição subjetiva de estágio do espelho, circunscrevendo o instante em que o bebê reconhece, com júbilo, sua própria imagem, identificada com as qualidades da perfeição e da onipotência refletidas pelo olhar embevecido dos pais, da mãe em particular.
No entanto, no processo de amadurecimento emocional, o Eu ideal se confronta com a “castração” imposta pelo reconhecimento da alteridade, contrabalançando seu narcisismo – ou “amor-próprio”, em sentido amplo – com o amor dedicado aos outros com quem partilhamos a aventura civilizatória – seja na forma da admiração, da amizade, do amor romântico ou familiar –, bem como o amor aos princípios que regem nossa convivência. Manter-se na posição de “majestade” indica uma enorme resistência a reconhecer nossa dependência mútua, e torna-se uma limitação severa de nossa experiência existencial.
Percebe-se que o processo de constituição subjetiva descrito por Freud acompanha os passos que culminaram no advento da modernidade, para a qual a morte do Rei foi um acontecimento decisivo. Freud inspirou-se também no mito darwiniano do assassinato do pai da horda primeva, que caracterizou outra passagem inesquecível, do estado de natureza para o estado de direito.
Manter-se na posição da arrogância onipotente tem um custo alto. Pessoal, social e, mesmo, ecológico. A arrogância, em suas formas de onisciência e onipotência, corrói os laços amorosos, segrega as diferenças, incrementando a violência entre grupos e sujeitos, e destrói a natureza da qual fazemos parte e dependemos para viver.
A celebração da Páscoa nos recorda, assim, que é preciso destronar o Faraó que habita a vida psíquica de cada um de nós bem como o imaginário coletivo, nos escravizando.
Da servidão voluntária
Acontece que libertar-se do Faraó internalizado não é tarefa fácil. O psicanalista Sándor Ferenczi descreveu o mecanismo da “identificação com o agressor” para indicar de que modo, frente à ameaça de abandono traumático, o sujeito tende a se apoiar justamente naqueles que o agridem e que tolhem sua liberdade, buscando, dessa maneira, alguma segurança.
É bela a explicação para o relato de que o povo judeu demorou 40 anos para atravessar o deserto e alcançar a terra prometida. Tratava-se de aguardar a emergência de uma nova geração que, nunca tendo sido escravizada, merecesse de fato adentrá-la. Almas nascidas livres que poderiam prescindir de bezerros de ouro e de outros mitos escravizadores. Almas imunes às saudades do conforto aprisionante do Egito e da servidão voluntária descrita por Étienne de La Boétie.
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A Grande Festa da Liberdade acontecerá quando a máxima adotada como símbolo pelos israelenses progressistas – reproduzida em um gigantesco estandarte carregado pelo povo nas ruas, no qual o rosto de Netanyahu aparece ornado com a coroa do Faraó – se tornar uma realidade para todos os povos que hoje se encontram escravizados, de corpo ou de alma. Dos palestinos de Gaza, oprimidos pelo interminável conflito entre o Hamas e o Estado de Israel, aos povos indígenas e ao povo preto que lutam por seus direitos no Brasil. Das mulheres iranianas e árabes que não querem ver o mundo através do véu, aos jovens cubanos que sonham em atravessar o mar, para citar apenas os que estão mais próximos do meu coração.
A Grande Passagem acontecerá quando enfim os povos oprimidos puderem proclamar, em alto e bom som: “vamos… para onde nosso espírito livre desejar ir”.
Daniel Kupermann é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP.